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Princípio da culpa nas contra-ordenações: imposição constitucional ou opção do

IV. O PRINCÍPIO DA CULPA NAS CONTRA ORDENAÇÕES

1. Princípio da culpa nas contra-ordenações: imposição constitucional ou opção do

Já se referiu antes que, actualmente, o carácter censurável da conduta é elemento da noção legal de contra-ordenação (art. 1.º do RGCO), pelo que só é sancionável a conduta voluntária culposa, inexistindo assim responsabilidade contra-ordenacional objectiva.

Também já se sublinhou em anterior capítulo que nem sempre a lei se referiu a tal censurabilidade.

De facto, o n.º 2 do art. 1.º do RGCO, com inspiração na OWIG alemã, na sua versão originária, previa o sancionamento independentemente do carácter censurável do facto, o que foi objecto do Parecer constitucional n.º 4/81 vindo tal posição a ser abandonada na revisão do RGCO de 1995, passando-se a

anotar a “censurabilidade” como elemento da noção de contra-ordenação122

. Note-se, de todo o modo, que há quem entenda que nem a própria OWIG alemã quis prever a responsabilidade contra-ordenacional objectiva. É certo que evitou utilizar a palavra “culpa” antes se referindo a “censurabilidade”, mas parece-nos que tal foi feito mais numa perspectiva de individualização dos ilícitos em causa, com uso de palavras diferentes, do que para categorizar um novo conceito, como já tínhamos adiantado.

122O primeiro dos diplomas sobre contra-ordenações em Portugal, continha, pois, um artigo que previa contra-

ordenações “independentemente do carácter censurável do facto” (art. 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho. A propósito da fiscalização preventiva da constitucionalidade de tal diploma foi elaborado o Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional onde se aludia que a coima se limitava a ser uma sanção não expiatória, que constituía uma mera advertência e que, assim sendo, o princípio da culpa, aplicável a crimes e contravenções, seria de aplicabilidade duvidosa ao domínio do ilícito de mera ordenação social, atenta a vontade expressa do legislador (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho).

Ainda assim, perguntar se o Direito contra-ordenacional, à semelhança do Direito Penal também é um Direito da culpa, continua a não ser pergunta destituída de sentido.

É que, como vimos, de entre os vários critérios mobilizados para distinguir crime e contra-ordenação, um dos mais antigos (ainda que ao nível do tipo de ilícito), é o da irrelevância ética do ilícito contra-ordenacional… Tal característica ao nível da ilicitude contra-ordenacional terá certamente reflexos ao nível da culpa para quem adopte um tal critério (o que, como predito, não fazemos em toda a linha).

Várias questões emergem, assim, nesta sede…

Será o princípio da culpa um princípio constitucionalmente imposto ao domínio contra-ordenacional?

E na afirmativa, que culpa é esta a que se alude na contra-ordenações? É uma culpa próxima da penal (já que em ambas estamos no domínio do Direito sancionatório)? Que especificidades existem?

Em que medida é que a culpa fundamenta a sanção contra-ordenacional? Em que medida é ainda o seu limite?

E como é que se fundamenta em sede decisória (administrativa e judicial) esta culpa nas contra-ordenações?

Mergulhemos, pois, na tentativa de delinear alguns contributos para a resposta a tais perguntas, sempre na perspectiva de analisar em que pontos o funcionamento do princípio da culpa contribui para a autonomia do Direito das contra-ordenações.

Não temos hoje dúvidas em afirmar que o princípio da culpa impregna o ordenamento jurídico contra-ordenacional. Mas será tal princípio da culpa constitucionalmente imposto nas contra-ordenações?

A questão suscita-se porque a Constituição da República Portuguesa se remete, nesta matéria, ao silêncio. O nó górdio da questão reside precisamente em saber que interpretação fazer de tal silêncio. Significará o mesmo que não se quis prever o princípio da culpa? Ou, ao invés, não foi necessário prevê-lo porque o mesmo é corolário de outros princípios como o

da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade ou até da presunção da inocência?

Em Espanha, v.g., onde pese embora inexista a figura da contra- ordenação como nacionalmente a concebemos, existe um estudo relativamente aprofundado do Direito Administrativo sancionador, nesse âmbito, o Tribunal Constitucional, por volta de 1990, tomou posição concluindo pela aplicabilidade do princípio da culpa ao dito Direito Administrativo sancionador, considerando a culpa como um pressuposto essencial de qualquer sistema sancionatório, pese embora o art. 25.º da sua Constituição

também não lhe faça referência expressa123.

Também no Brasil, inexistindo norma constitucional sobre a culpa no designado Direito Administrativo sancionador vem-se entendendo, como

explica CÉSAR LOURENÇO SOARES NETO, que a culpa é um princípio

constitucional implícito atendendo ao valor consagrado da dignidade

humana124.

Já em Portugal, se é certo que o legislador ordinário consagrou o carácter censurável da contra-ordenação logo no art. 1.º do RGCO, se bem se vir, nenhuma norma expressa existe na Constituição da República Portuguesa sobre a culpa (nem para o ilícito contra-ordenacional nem para o ilícito criminal), o que, naturalmente, empresta raízes mais fundas à polémica.

As vozes nacionais não são unânimes.

FIGUEIREDO DIAS entende que a culpa não é imposta constitucionalmente

ao Direito das contra-ordenações125. No mesmo sentido, (uma vez que

entenderão tratar-se de uma opção do legislador ordinário) parecem ainda ir SIMAS SANTOS E LOPES DE SOUSA lembrando que “Um dos princípios basilares

do Código Penal e do RGCO é o princípio da culpa (não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena). Na verdade, apesar de o ilícito de mera ordenação social não ter por base a formulação de uma censura de tipo ético-

123

Dando conta disso mesmo vide NUNO B.M.LUMBRALES, Sobre o Conceito, p. 204.

124

CESAR LOURENÇO SOARES NETO, «Responsabilidad Ambiental subjetiva no Direito Administrativo sancionador em

face da Lei 9.605/98», Ciência e Opinião, v. 2, n. 1 / 2, jan/dez 2005, p. 231.

125 J

pessoal, optou-se legislativamente por fazer valer também aqui o princípio da culpabilidade (nulla poena sine culpa) nos termos do qual toda a sanção

contra-ordenacional tem por base uma culpa concreta”126

.

Já TERESA PIZARRO BELEZA vai em sentido oposto dizendo que “A este

respeito o Prof. F. Dias defendeu que o princípio da culpa seria, de facto, imposto pela Constituição (art. 1.º, 13.º, 1 e 25.º, 1) mas só para o domínio do Direito Penal, não também para o domínio das contra-ordenações. Parece-me esta afirmação pouco fundamentada e discutível. Se a dignidade humana exige que o Direito Penal se baseie num princípio de culpa – o que me parece, desde logo duvidoso – não vejo porque isso não deva ser verdade quanto ao d.m.s.o. (direito de mera ordenação social). Se o problema se coloca em função da possibilidade de responsabilizar pessoas colectivas, então o problema põe-se também no Direito Penal, ainda que só em casos pontuais

elas possam ser autoras de crimes e sujeitas a penas”127

.

Também TIAGO LOPES DE AZEVEDO, relembrando não apenas a

Constituição da República Portuguesa mas igualmente o previsto a este propósito nos arts. 14.º, n.º 2 do PIDCP e art. 6.º, n.º 2 da CEDH, afirma de

modo bastante peremptório que “seria totalmente inconstitucional e violaria

igualmente o Direito Internacional que um Direito sancionatório contra- ordenacional afastasse o princípio da culpa e por isso sancionasse o agente infractor independentemente da culpa ou em medida maior do que a culpa da sua conduta. Note-se porém que, em termos gerais, a responsabilidade subjectiva no domínio das contra-ordenações não se confunde com a questão de saber se a culpa no direito contra-ordenacional tem, ou não, que ver com o

juízo de censura sobre a atitude do agente infractor”128

.

O Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou igualmente sobre tal questão no Acórdão de 26.04.2007, proferido no âmbito do P. n.º 01168/06

entendendo que “Não existem razões, nem legais, nem constitucionais,

inerentes à menor gravidade do ilícito, que tornem inadequada ou injustificada

126

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações, Anotações, p. 118.

127

TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, pp. 128 e 129.

128 T

(bem ao invés) a aplicação do princípio legal da culpa ao processo contra- ordenacional, até por que esse princípio exprime uma acentuação das garantias do arguido – cf., a este respeito, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 9-1-2007, proferido no recurso n.º 254/06.”

Assim, os defensores da tese de que a culpa é um imperativo constitucional alicerçam-se sobretudo no princípio da dignidade humana de que emana o princípio da culpa aplicável quer ao Direito Penal quer ao Direito das contra-ordenações.

De resto, note-se que em termos constitucionais, não deixa de ser impressivo o facto de o Direito das contra-ordenações, como Direito sancionatório que é, estar previsto no art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, por referência às garantias e limites criminais e não na parte alusiva à Administração (e certamente ninguém pensará em abolir o princípio da culpa do Direito Penal).

Contudo, a questão pode ainda perspectivar-se de uma outra maneira. Na verdade, poder-se-ia ainda basear o princípio da culpa não apenas (nem sobretudo) no princípio da dignidade humana mas no princípio da proporcionalidade.

Com efeito, o que se pretende com o princípio da culpa é não apenas fundamentar a sanção (e uma sanção sem culpa parece afectar ainda a dignidade humana) mas ainda limitar o poder punitivo do Estado na sanção que venha a aplicar (nessa medida jogando um importante papel o princípio da proporcionalidade).

Aliás, o princípio da culpa e o princípio da proporcionalidade têm entre si

relações muito próximas. Mesmo no Direito Penal WINFRIED HASSEMER, por

exemplo, adopta o entendimento de que o princípio da culpa decorre do

princípio da proporcionalidade129.

Acresce que, a acentuação do princípio da proporcionalidade no campo das contra-ordenações é também uma tendência que se pode ir beber ao

129

WINFRIED HASSEMER, «Perspectivas del Derecho Penal Futuro», tradução de Enrique Anarte Borrallo, Universidade

de Huelva, Revista Penal, também disponível em www.derechopenalenlared.com consultado pela última vez em 05.08.2012.

Tribunal de Justiça da União Europeia. Conforme nos dá conta LUÍS ARROYO

ZAPATERO, numa Europa com tradições jurídicas tão distintas como são as tradições românicas e germânicas e tradições dos países de Common Law, a “gramática comum europeia” deve repousar sobre a jurisprudência daquele

Tribunal, jurisprudência essa que vem “declarando incompatible com el

Derecho Comunitário o al CEDH los supuestos de responsabilidad objetiva que conducen a sanciones desproporcionadas. Este argumento excluye los casos más graves de responsabilidad objetiva, con el valor añadido de que lo hace penetrando com eficacia en todos los ordenamientos de la Unión, al provenir

de Luxemburgo”130

.

Em Portugal, imposto pela Constituição, como nos parece ser, ou mera decorrência da lei ordinária, do que não restam dúvidas é que o princípio da culpa perpassa o Direito das Contra-ordenações, como o RGCO em várias normas o insinua - cfr. v.g. arts. 1.º, 8.º, 9.º, 16.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 1, 26.º alínea a) e 51.º.