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As relações do Direito contra-ordenacional com outros ramos do Direito (Direito Civil,

III. O ACTUAL D IREITO DAS CONTRA ORDENAÇÕES : A SUA ( AINDA ALGO FRÁGIL ) AUTONOMIA

3. As relações do Direito contra-ordenacional com outros ramos do Direito (Direito Civil,

processos); O Direito das contra-ordenações como ramo autónomo enquadrável no Direito Público sancionatório

Como dizíamos, se as relações entre o Direito das contra-ordenações e o Direito Constitucional se podem ter hoje por serenas, o mesmo não se pode ainda dizer das relações com o Direito Penal e o Direito Administrativo, sendo que aquele ramo do Direito se diferencia ainda, como é óbvio, do Direito Civil.

Assim, a delimitação e a autonomia joga-se, pois, e desde logo, nas relações com o Direito Civil.

Pegando nas palavras de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “O problema

reside hoje, como no início, na delimitação das fronteiras do direito contra- ordenacional. E não apenas em relação ao Direito Penal, mas também, e crescentemente, em relação ao Direito Civil. É que a avalanche legislativa no âmbito do Direito das contra-ordenações invade muitas vezes o espaço clássico do próprio direito civil, como sucede nos casos em que as contra-

ordenações tutelam direitos e interesses estritamente subjectivos”89

.

De resto, mesmo sob o ponto de vista adjectivo, não raras vezes se colocam em cima da mesa as relações do Direito contra-ordenacional com o Direito Processual Civil ao nível da subsidiariedade.

A questão é sobretudo pertinente quando o RGCO seja omisso sobre uma determinada matéria processual, e bem assim o seja o CPP (para o qual o art. 41.º do RGCO remete) mas se possa encontrar solução no CPC (por via de nova remissão por força do art. 4.º do CPP).

Tal questão de exequibilidade prática da aplicação subsidiária do CPC ao domínio contra-ordenacional foi já testada a propósito, por exemplo, da aplicabilidade do art. 150.º do CPC (apresentação a juízo dos actos processuais, matéria actualmente regulada no art. 144.º na redacção dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) ao prazo do art. 59.º, n.º 3 do RGCO

89 P

relativamente ao envio às autoridades administrativas, pelo correio registado, de recurso de impugnação judicial.

Esta questão veio mesmo a ser objecto do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2001, de 20 de Abril de 2001 (D.R. nº 93, série I-A, de 20 de Abril de 2001). Em tal Acórdão entendeu-se que o art. 150.º do CPC nada tinha de específico quanto ao ramo processual civil, aplicando-se assim ao processo penal pela porta que o art. 4.º do CPP lhe abre. Entendeu-se em tal aresto jurisprudencial que não sendo o Direito contra-ordenacional um ilícito penal administrativo mas antes aproximado do Direito Penal o que sucede no âmbito do CPP (aplicação do CPC ex vi art. 4.º do CPP como referiu também o AUJ n.º 2/2000) deverá suceder de igual modo no âmbito do RGCO (aplicação CPC ex vi art. 4.º do CPP ex vi art. 41.º do RGCO).

Uniformizou-se assim Jurisprudência no seguinte sentido: “Como em

processo penal, também em processo contra-ordenacional vale como data da apresentação da impugnação judicial a da efectivação do registo postal da remessa do respectivo requerimento à autoridade administrativa que tiver

aplicado a coima – artigos 41.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de

Outubro, 4.º do Código de Processo Penal e 150.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2000, de 07 de Fevereiro de 2000” - cfr. Acórdão uniformizador de Jurisprudência de 08 de Março de 2001, Proc. n.º 00P3291.

PAULA MEIRA LOURENÇO, em comentário a tal Acórdão defende ser esta a boa jurisprudência na medida em que a ideia subjacente ao então art. 150.º do CPC quanto à utilização de novos meios de comunicação para entrega de peças processuais se aplicam ao processo contra-ordenacional já que se visa em geral uma maior comodidade das pessoas que se socorrem da Justiça, bem como o descongestionamento das secretarias judiciais, uma maior agilização e desbrurocratização de procedimentos, propiciadora de maior

celeridade, não sendo ainda de olvidar o contributo para a eliminação de

diferenças territoriais que o uso de tal novos meios de comunicação importa90.

Relações com o ramo civil (e processual civil) à parte, com maior relevo, é de sublinhar que ao longo dos tempos o Direito das contra-ordenações foi fazendo um movimento pendular, ora se aproximando do Direito Administrativo ora do Direito Penal.

Importa desde logo dar conta que existe uma corrente (hoje minoritária mas com alguma expressividade) que aproxima mais o Direito das contra- ordenações do Direito Administrativo do que do Direito Penal.

Nem penalistas nem administrativistas duvidam que ilícito penal e ilícito administrativo assumem contornos distintos.

Vejamos então o que a doutrina foi dizendo ao longo do tempo a tal propósito.

Já em 1945 BELEZA DOS SANTOS91 tentava clarificar os limites entre tais

ilícitos, sendo que a própria comissão revisora do projecto de EDUARDO

CORREIA da parte geral do Código Penal, logo na sua primeira sessão, aflorou

o tema da distinção entre ilícito criminal e ilícito administrativo92.

Num ponto de vista administrativista, MARCELLO CAETANO chamava a

atenção para a distinção que há que fazer entre o ilícito administrativo (pertencente ao “Direito do bem-estar social” a que presidem ideias de prevenção) e ilícito penal (Direito repressivo), sendo que, entre um e outro,

existe espaço para o ilícito contra-ordenacional93.

DIOGO FREITAS DO AMARAL, parte de dois diferentes tipos de bens jurídicos e passa ainda pela distinção entre prevenção e repressão, enunciando que “o Direito Penal visa proteger a sociedade contra os factos ilícitos graves que nela

90

PAULA MEIRA LOURENÇO, Da aplicação do disposto no artigo 150º n.1 do CPC ao direito de mera ordenação social,

anotação ao “assento” n.º 1/2001 de 20 de Abril, consultável em

http://www.cmvm.pt/CMVM/Publicacoes/Cadernos/Documents/d7546d15ad8041cfa9be04f43fe7a694paula_laurenco.p df , consultado a última vez em 20.08.2012.

91 B

ELEZA DOS SANTOS, «Ilícito penal administrativo e ilícito criminal», Revista da Ordem dos Advogados, 5, 1945, pp. 39

e ss..

92

Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Geral do Código Penal, 1ª sessão, Boletim do

Ministério da Justiça 140, 1964, pp. 235 e ss.. 93 M

podem ter lugar, e protege-a estabelecendo para esses factos as sanções mais graves que a ordem jurídica permite aplicar. Ora, o Direito Administrativo tem outros objectivos, como já sabemos: visa a satisfação das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar. Quanto à cultura e bem-estar nenhuma dúvida haverá, porque as diferenças são óbvias. Já quanto à segurança (…) enquanto o Direito Penal é um direito repressivo (…) o Direito Administrativo é, em matéria de segurança, essencialmente preventivo”. O ilustre administrativista dá mesmo o exemplo das contra-ordenações estradais

como fazendo parte do Direito Administrativo, dizendo que “O Direito

Administrativo, através de um dos seus diplomas, que é o Código da Estrada, impõe um certo número de regras de prudência quanto à condução de automóveis (…) Se o condutor violou essas regras, ofendendo o Código da Estrada, cometeu uma contra-ordenação: esta é a forma típica do ilícito administrativo (…) Actualmente, assiste-se a um amplo movimento pragmático de descriminalização, que levou a criar outro tipo de ilícito administrativo, ou

pelo menos não criminal: o chamado ilícito de mera ordenação social”94

. Este

critério é considerado por MARCELO REBELO DE SOUSA como excessivamente

simplista pelo que sugere uma distinção na qual se reserva o Direito Administrativo para a tutela de interesses públicos relevantes mas não essenciais para a colectividade, já que os essenciais serão tutelados pelo

Direito Penal95.

Outros autores administrativistas, como MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA vão

até mais longe, entendendo que o ilícito de mera ordenação social estando integrado no Direito Administrativo deverá pertencer à jurisdição administrativa (propondo uma distinção entre Direito Administrativo e Penal não apenas com

base nas ideias de prevenção/repressão mas também nas de

relevância/irrelevância ética das condutas)96, o que, quanto a nós é ir longe de

mais. Acerca desta tese de MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA refere MIGUEL PEDROSA

94

DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo – Vol. I, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 189 e

190.

95

MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, Vol I, Lex, Lisboa,1990, p. 62.

96 M

MACHADO que «a posição deste administrativista acerca da integração do ilícito meramente ordenativo no Direito Administrativo é um bom exemplo do risco que se corre com esta “descriminalização” de parte das infracções penais, pois, deixando de estar em causa a sua consideração autónoma com

suficientes garantias por parte do cidadão, realiza-se não uma

descriminalização, mas uma pura e simples “administrativização”»97

.

Já TERESA PIZARRO BELEZA, reconhecendo que “também o Direito

Administrativo pode pôr, e põe frequentemente em causa direitos fundamentais” parece adoptar uma solução de compromisso “entre a ideia de total autonomia desse Direito de mera ordenação social, mais próximo do Direito Administrativo, e a outra ideia de que, no fundo, mesmo esse direito de mera ordenação social pode pôr em causa os direitos individuais de uma forma

idêntica ao Direito Penal”98

.

De igual modo, também MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA,

(partindo do enunciado do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho que referia que a coima era “sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas” o que não foi alterado pelo Decreto-Lei n.º

433/82, de 27 de Outubro), parecem também inclinar-se, em certa medida,

para uma perspectiva administrativista quando afirmam que «À face da legislação portuguesa, o processo de contra-ordenação, na fase que decorre antes da remessa do processo a tribunal não deve considerar-se um processo judiciário ou para-judiciário, mas um verdadeiro processo administrativo, da competência de autoridades administrativas, com o qual se prosseguem fins

incluídos nos objectivos das autoridades administrativas. (…) Resulta destes

proclamados desígnios legislativos que o direito de mera ordenação social visa assegurar a realização de interesses públicos cuja prossecução se integra no âmbito funcional da Administração. Como actividade administrativa que é, justifica-se que, congruentemente, o controle judicial da mesma fosse atribuído aos tribunais administrativos e não aos tribunais judiciais. Isso, aliás, não

97

MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», p. 164.

98 T

passou despercebido ao legislador que, no preâmbulo daquele Decreto-Lei n.º 232/79, refere “Reconhece-se de boamente que a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos” E foi só por razões pragmáticas que se optou pela atribuição de competência aos tribunais

judiciais “pelo menos como solução imediata e eventualmente provisória”»99

. ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA também se deixou seduzir pela ideia da

preponderância do quadro administrativo nas contra-ordenações100 e também

AUGUSTO DA SILVA DIAS não deixou de constatar uma certa funcionalização e

administrativização do Direito Penal (e contra-ordenacional) actual no âmbito

de um Direito Penal numa sociedade do risco101.

Por outro lado, actualmente, a ideia da administrativização do Direito das Contra-ordenações poderá ter ganho maior destaque com a recente entrada em palco das entidades reguladoras, ideia a que, contudo, nos parece que

devemos resistir. A este propósito MÁRIO FERREIRA MONTE (que sublinha que a

contra-ordenação é um ilícito administrativo mas não de autotutela

administrativa102), alerta para o facto de “Com a erupção das entidades

reguladoras (…) concentrando poderes diversos, entre os quais os sancionatórios, poderes que são, diz-se, de “tipo para-jurisdicional”, é óbvio, que se põe em evidência a aproximação do Direito das Contra-ordenações ao

Direito Administrativo (…) Mesmo assim, é de Direito sancionatório que se

trata, sendo indispensável armá-lo de garantias que são próprias do Direito Penal e não do Direito Administrativo”, sendo que tal Autor estranha, com razão, o que parece ser a inversão do percurso percorrido, ao se reclamar uma maior administrativização das contra-ordenações reclamada por alguma

99

MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2ª edição,

Vislis, Lisboa, 2003, pp. 362 e 363 (citado: Contra-ordenações – Anotações). 100

ANTÓNIO DUARTE DE ALMEIDA, «O ilícito de mera ordenação social na confluência das jurisdições: tolerável ou

desejável», Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 71, Editora CEJUR, Setembro-Outubro, 2008, pp. 15 e ss.

101 A

UGUSTO SILVA DIAS,Delicta in se, pp. 579 e ss..

102

Diz o predito Autor a este respeito: “Trata-se de um ilícito de natureza administrativa e não penal, com uma sanção

própria, seguindo um processo específico, ainda que o Direito (processual) penal funcione como subsidiário. Não se trata, todavia, de um ilícito administrativo tout court, ou seja, um ilícito de autotutela administrativa.” – cfr. ,

doutrina por si citada e ainda pelo próprio legislador (referindo-se ao

anteprojecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) 103.

De igual modo, à aproximação do Direito Penal e contra-ordenacional a uma certa administrativização não é alheia a concepção de Estado como um Estado regulador, que intervém nas mais diversas áreas sociais e económicas.

É mediante tal constatação que SILVA SANCHEZ ensaiou um chamado “Direito

Penal a duas velocidades”: um constituído pelo Direito Penal clássico, com todas as garantias e princípios típicos do Direito Penal, e um Direito Penal com vocação intervencionista e regulamentadora, e portanto, mais administrativo, onde, não havendo cabimento para penas privativas da liberdade, não seria

necessário tanto garantismo104.

Não obstante o que vem de se expor, a corrente maioritária é a que aproxima, em maior ou menor medida, o Direito das contra-ordenações ao

Direito Penal, sem deixar de sublinhar a autonomia de cada um (v.g. EDUARDO

CORREIA, JOSÉ DE FARIA COSTA, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, MÁRIO FERREIRA

MONTE, MANUEL DA COSTA ANDRADE, GERMANO MARQUES DA SILVA, MIGUEL

PEDROSA MACHADO, ALEXANDRA VILELA,entre outros105).

Parece-nos, desde logo, uma perspectiva historicamente mais coerente já que a intenção que presidiu à instituição de um RGCO foi assumidamente a de criar um ordenamento sancionatório mas distinto do Direito Criminal.

103

Além dos já citados AA. DIOGO FREITAS DO AMARAL e DUARTE DE ALMEIDA convoca ainda a posição de EUGÉNIA

TEIXEIRA, O ilícito administrativo autárquico, dissertação de mestrado apresentada na Universidade do Minho, Janeiro,

2011 (inédito) e define a sua posição no sentido da rejeição de tal administrativização do Direito das Contra- ordenações - cfr. MÁRIO FERREIRA MONTE,Lineamentos, sobretudo nos Capt. II, ponto 3 a) e Capt. III ponto 3 b). 104

SILVA SANCHÉZ, La expansión del derecho penal, pp. 136 e ss. citado por ALEXANDRA VILELA,O Direito de mera

ordenação social, pp. 263 e ss.. 105

Questão idêntica se suscita no Direito Disciplinar. A tal propósito entendem alguns que é Direito sancionatório e que, nessa medida faz parte da Ciência total do Direito Penal, pelo que lhe é aplicável, subsidiariamente, o CPP. Outros entendem que “Como o procedimento disciplinar é um procedimento administrativo especial, de natureza sancionatória, cumpre, em primeiro lugar, no processo de integração de lacunas, esgotado o recurso à analogia dentro do próprio direito processual disciplinar, fazer apelo às normas e princípios de procedimento administrativo em geral (…) Só em seguida se recorrerá às normas e princípios do Direito Processual Penal (…) O CPP não será, assim, aplicável de forma automática, pondo em causa a autonomia do procedimento disciplinar sem qualquer ganho para os direitos de defesa, mas apenas na medida em que não vá contra a especificidade do procedimento disciplinar.” – cfr. LUÍS

VASCONCELOS ABREU, Para o estudo do procedimento disciplinar no Direito Administrativo português vigente: as

É ainda uma perspectiva coerente com o modelo legislativo vigente no nosso país já que, como predito, o Código Penal e o Código de Processo Penal são legislação subsidiária nesta matéria (cfr. arts. 32.º e 41.º do RGCO), sendo a nosso ver de todo em todo criticável que se afaste esta regra nas contra-ordenações sectoriais.

Concordamos pois que, sendo o Direito das contra-ordenações um Direito

sancionatório, importará «“não deixar fugir” o sistema das contra-ordenações

dos quadros do Direito Penal. E isto pelas garantias formais de legalidade e tipicidade que se sente não deverem ser afastadas, considerando as contra- ordenações como uma das categorias das acções ilícitas castigadas com uma

sanção estatal»106.

Por outro lado, como analisámos em antecedente capítulo, a nosso ver, a ilicitude contra-ordenacional não deve mais ser perspectivada como generalizadamente marcada por irrelevância axiológica das condutas que a integram. Ao invés, existirão contra-ordenações axiologicamente relevantes e até, como já vimos, protectoras de bens jurídico-penais relativamente aos quais não há necessidade de pena mas há carência de sanção contra- ordenacional. Ora, para quem assim pense, o Direito Administrativo joga mal com o sancionamento deste tipo de contra-ordenações, pelo que nos devemos aninhar no leito do Direito Penal e Processual Penal como Direito subsidiário em toda a linha, inclusive na fase administrativa (que é administrativa de um ponto de vista orgânico).

Mas note-se que falámos de aproximações.

É que o Direito das Contra-ordenações não pode hoje ser visto nem como Direito Civil, nem como Direito Administrativo nem como Direito Penal no sentido clássico ou de Justiça.

Trata-se antes de um Direito que adquiriu autonomia, independentemente da sua inserção.

EDUARDO CORREIA, no relatório do projecto de 1963 do Código Penal

Português, escrevia, a este propósito que “Verdadeiramente, estas violações

106 M

não representam um minus relativamente ao ilícito penal, mas constituem coisa diferente. Por isso, embora a intervenção do Estado, neste domínio salutista, se processe hoje por todos os lados, na mais larga medida, a tendência legislativa que lhe corresponde procura arrumar o respectivo ilícito –

formalmente determinado pela natureza das sanções que lhe cabem – num

domínio próprio do Direito: o respeitante às violações das normas de

ordenação social”107

.

Muitos entendem que o direito de mera ordenação social há-de estar

integrado naquilo que VON LISZT chamou de “Direito Penal total” e que abarca

não apenas o Direito Penal clássico ou de justiça mas ainda o Direito Penal secundário, o referido Direito de mera ordenação social e ainda outros direitos que sejam Direito sancionatório (v.g. Direito disciplinar) e daí as afinidades entre os mesmos, com inerentes dificuldades de delimitação e ainda em comunhão de problemas e de respostas.

Como vimos não é fácil delimitar materialmente o que seja crime e o que seja contra-ordenação e, independentemente da tese ou critério a que se adira, sempre a opção terá um contexto temporal e espacial próprio que é evolutivo. Há pois zonas cinzentas em que a distinção se torna mais difícil…

Uma dessas zonas cinzentas como já se havia dito, é, sem dúvida, a relação do Direito das contra-ordenações com o Direito Penal secundário (conjunto de normas punitivas, previstas em legislação extravagante, e que contêm na sua generalidade o sancionamento de carácter administrativo).

Tal afinidade fica a dever-se às próprias características do Direito Penal secundário (que se encontra sobretudo normativizado no Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro onde, de resto, coabitam contra-ordenações e crimes), que passam pela actuação sobretudo na área da economia e saúde pública, embora se alargue, v.g., ao ambiente, ao consumo, etc., protegendo essencialmente bens jurídicos supra individuais, através de crimes de perigo abstracto, nos quais, não raras vezes, aparecem conceitos indeterminados ou cláusulas gerais e ainda normas penais em branco.

107 E

De todo o modo, ainda que se possa entender que o Direito das contra- ordenações está integrado no que seja o Direito Penal total, isso não faz com que não se deva considerar o mesmo como autónomo.

Com efeito, o ilícito de mera ordenação social dever-se-á autonomizar (maxime do Direito Penal clássico ou de justiça e do Direito Penal secundário) em três vertentes: dogmática, sancionatória e processual.

Vejamos a autonomia dogmática, a que, aliás, mais nos importa108.

E importa-nos por duas razões essenciais: a primeira porque nos parece que a autonomia sancionatória e processual serão consequência da autonomia dogmática que se entenda existir no domínio contra-ordenacional, prendendo- se a segunda razão com o objecto do presente estudo. É que, debruçarmo-nos sobre a culpa nas contra-ordenações é debruçarmo-nos sobre um dos pontos que poderá ajudar a autonomizar, do ponto de vista dogmático, o Direito das Contra-ordenações.

Sobre tal autonomia dogmática refere EDUARDO CORREIA que “A referida