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IV. O PRINCÍPIO DA CULPA NAS CONTRA ORDENAÇÕES

2. Contributos para a caracterização da culpa nas contra-ordenações

3.3. Modalidades de imputação da culpa: a negligência e o dolo nas contra-ordenações

3.3.2. A negligência

3.3.2.1. Noção de negligência nas contra-ordenações

Ante o já citado art. 8.º, n.º 1 do RGCO importa, antes de mais, aferir do que falamos quando falamos de negligência nas contra-ordenações.

Em nenhum momento se define, no RGCO, o que é a negligência.

Face a tal silêncio, a questão que (mais uma vez) se poderá suscitar é a de saber se se há-de pedir de empréstimo a noção penal de negligência e suas modalidades do art. 15.º do Código Penal ou se a negligência contra- ordenacional, por si só, assume características específicas.

O legislador do RGCO não criou nenhum conceito contra-ordenacional de negligência, bem sabendo que o legislador penal o havia feito no art. 15.º do Código Penal aplicável subsidiariamente nos termos do art. art. 32.º do RGCO.

Assim, somos levados a pensar que, mais uma vez, do ponto de vista de

iure constituto, não parece existir alternativa a ter de pedir o auxílio do Código

Penal quando se queira buscar a noção de negligência e suas diferentes modalidades.

Nesse sentido parece ir quer a doutrina quer a jurisprudência.

ANTÓNIO BEÇA PEREIRA em anotação ao art. 8.º do RGCO remete

expressamente para o conceito e modalidades de negligência do art. 15.º do

Código Penal206. SIMAS SANTOS eLOPES DE SOUSA afirmam que “Mesmo que se

mostre excluído o dolo, ainda será possível censurar o agente pelo facto, se

206 A

tiverem sido omitidos os deveres de diligência a que se era obrigado segundo as circunstâncias e os conhecimentos e capacidades pessoais. Temos então a

negligência, sobre a qual o art. 15.º do CP estabelece o seguinte207”. Também

ANTÓNIO JOAQUIM FERNANDES expressamente afirma, em anotação ao art. 8.º do RGCO, que “O conceito de negligência – que consiste na omissão de um

dever objectivo de cuidado ou diligência – decorre do artigo 1.º do Código

Penal nas suas duas vertentes: negligência consciente (alínea a)) e

negligência inconsciente (alínea b))”208

.

Chegando-se à conclusão que se aplica o conceito penal de negligência, não se nos afigura útil dissertarmos sobre tal conceito já tão sobejamente desenvolvido doutrinalmente, pelo que nos limitaremos a relembrar o essencial.

A negligência supõe a prática de um facto ilícito típico que resulte da violação de um dever de cuidado ou diligência de que resulte um facto, sendo previsível tal facto ilícito à luz de um homem médio naquelas circunstâncias

concretas. Refere SELMA PEREIRA DE SANTANA a propósito do critério de

aferição da conduta negligente que «é recomendável o abandono da utilização de figuras fictícias na aferição da ocorrência tipicamente negligente, cabíveis elas em qualquer tipo de circunstância. A composição do “homem médio”, que venha a funcionar, como figura-modelo, para a determinação do dever objectivo de cuidado, deve levar em consideração que ele tem de estar inserido nas condições concretas do agente, ou seja, pertencer à sua categoria

intelectual e social, bem como ao seu círculo de vida»209.

Nos termos do art. 15.º do CP estar-se-á perante negligência consciente quando o agente, com falta de cuidado, represente como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização (al. a)), ao invés da negligência inconsciente que se

207

MANUEL SIMAS SANTOS E JORGE M.LOPES DE SOUSA, Contra-ordenações – anotações, p. 120.

208

ANTÓNIO JOAQUIM FERNANDES, Regime Geral das Contra-ordenações – notas práticas -, 2ª edição, Ediforum, Lisboa,

2002, p. 39. (citado: Regime Geral das Contra-ordenações – notas práticas).

209 S

consubstancia em o agente, com falta de cuidado, não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto ilícito típico (al. b)).

Assim, também no domínio contra-ordenacional se distinguirá a negligência consciente da inconsciente, o que não se confunde com aquela terminologia que distingue negligência leve, grave e grosseira. Conforme refere o Acórdão da Relação do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.11.1988,

Boletim do Ministério da Justiça n.º 381, p. 758, citado por ANTÓNIO BEÇA

PEREIRA210, “A negligência qualificada ou negligência grosseira é um conceito

independente da distinção entre negligência consciente e negligência inconsciente, pois pode haver negligência grosseira na negligência inconsciente como pode haver culpa leve ou levíssima na negligência consciente.”

É ainda de sublinhar que não se pode confundir a actuação com negligência grosseira com o facto de se ter praticado uma contra-ordenação qualificada pela lei como grave ou muito grave. Conforme refere, a tal

propósito, o Acórdão do STJ de 13.12.2007, no Proc. n.º 07S3655, “1. A

negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar. 2. O facto de uma infracção estradal ser classificada por lei como muito grave ou como grave não é suficiente, só por si, para integrar o conceito de negligência grosseira para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho, uma vez que o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária,

pois, sendo nesta mais premente o interesse da prevenção geral – com

recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo –

não se podem transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade adoptados naquela legislação. 3. Desconhecendo-se as razões que levaram o sinistrado a transpor a linha longitudinal contínua do eixo da via, quando descrevia uma curva para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, e a ir

210 A

embater de frente no veículo automóvel que, então, circulava pela outra faixa de rodagem, em sentido contrário ao seu, não é possível qualificar aquela sua conduta de negligentemente grosseira, apesar da mesma constituir uma contra-ordenação grave, à luz da legislação estradal.”

Esclarecidos tais pontos, importa ainda sublinhar que se constata que, no domínio contra-ordenacional, em muitas situações, quando comparada com a imputação penal, torna-se mais frequente imputar a contra-ordenação a título de negligência ao arguido. Isto sucede, além do mais, porque, em muitas contra-ordenações, o agente actua numa veste funcional, sendo que essa sua roupagem funcional tem a si inerente o dever de cuidado de conhecer determinadas regras e de se actuar em conformidade com as mesmas, o que nem sempre observa por descuido ou desatenção.

O caso do condutor é paradigmático. A menos que se alegue e prove uma causa de exclusão da culpa, o condutor deve ter conhecimento das regras estradais (aliás, há-de ter sido bem sucedido em exame que versa sobre o Código da Estrada para ter título que o habilite a conduzir) e de se pautar pelas mesmas.

Imaginemos também um suinicultor que despeja resíduos dessa actividade, directamente para um rio, sem qualquer tratamento. Assumindo a veste funcional de suinicultor, e mais uma vez caso não se alegue nem prova uma causa de exclusão da culpa, exige-se-lhe que tenha o cuidado de conhecer as regras jurídicas básicas do sector em que labora e que se paute pelas mesmas.

Como se refere no Acórdão do STJ de 06 de Julho de 2000, no âmbito do Proc. n.º 104/2000, citado no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de

21.03.2007, Proc. n.º 0647068: “Em certos casos – como na circulação

rodoviária – o juízo de imputação subjectiva a título de negligência encontra-se intimamente ligado, não só com a violação de deveres de cuidado genéricos, mas também com a omissão de cuidados específicos especialmente definidos e directamente impostos pela lei, os quais têm em vista a regulação de actividades perigosas (sendo-o a condução automóvel)”.

No sentido que dizíamos, veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09.09.2008, no âmbito do Proc. n.º 1680/08.1, quando

afirma que “Sendo que a autorização prévia assume um carácter deveras

importante no âmbito das operações de gestão de resíduos, consubstanciando tal falta de autorização uma infracção grave, atendendo também à medida da coima, que é significativamente elevada, pelo que estamos perante uma conduta particularmente perigosa, ela implica, além das regras gerais de cuidado, o cumprimento de regras especiais de cuidado, que se traduzem na observância ou proibição de violação das normas. Tendo em conta o que supra ficou consignado, ficou demonstrada a negligência inconsciente da arguida/recorrente.

Ainda no mesmo sentido, embora usando outra terminologia quanto à graduação da negligência, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães

de 20.10.2008, no âmbito do Proc. n.º 2508/07.2, afirmando que: “A sociedade

recorrente podia e devia ter obtido a necessária licença, já que estamos num daqueles domínios em que a existência da norma está perfeitamente interiorizada pelo ente social. Toda a gente sabe que há que tirar licenças para certas coisas e que uma delas é a afixação de anúncios, tabuletas e publicidade em geral, que tenham expressão pública. Não se trata de uma excepção da câmara municipal aqui em causa, de uma exigência excepcional ou inesperada. A recorrente é uma pessoa colectiva, uma sociedade comercial, que como tal, deve saber que, desde a própria constituição, todo o seu exercício, está normativamente regulado. Isto deveria alertá-la – de forma mais intensa do que aquela que se impõe a uma pessoa física comum – para o dever de se manter informada das normas aplicáveis à sua actividade ou às actividades complementares a que a satisfação do seu escopo social dê lugar. Ao não observar este cuidado, numa questão tão simples como a obtenção de uma simples licença camarária de acções publicitárias, exibiu um desinteresse que configura uma negligência grosseira.”

3.3.2.2. O princípio da excepcionalidade da sancionabilidade por