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O aspecto jurídico

No documento O interesse público no antidumping (páginas 104-108)

I. ASPECTOS FUNDAMENTAIS SOBRE O INTERESSE PÚBLICO NO ANTIDUMPING

1.3 A INDETERMINAÇÃO DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO

1.3.2 O aspecto jurídico

240 FREI, Klaus. Op cit. P. 83-95.

241 O receio da existência da tirania da maioria confirma-se em John Kenneth Galbraith (1992), que relata a existência nos Estados Unidos, hoje, de uma Ditadura dos Ricos ou da Cultura do Contentamento. Vive- se o pesadelo de uma “ditadura da classe satisfeita”, aquela que recebe os benefícios de bem-estar e está satisfeita porque diz ser a maioria. (GALBRAITH, John Kenneth. A cultura do contentamento. São Paulo: Pioneira, 1992, p. 63).

242 TOCQUEVILLE, Alexis. Op cit, p. 652.

243 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, 12 (1), maio 2000, p. 141-164.

105 Sob o ponto de vista jurídico, o interesse público é um princípio que justifica uma obrigação ou uma proibição. Ele permite justificar a aplicação de uma regra precisa, ou, ao contrário, revogar uma regra precisa.244

Um princípio pode assumir três formatos: ser um axioma, um postulado ou uma norma. O interesse público assumiu a forma de postulado, observado na experiência, ou seja, não é concebido como uma vontade geral inquestionável, nem tampouco é claro o suficiente para ser chamado de norma.

Embora seja aposto em várias legislações, e em outras tantas seja considerado, o princípio do interesse público é questionado. Discute-se se, diante de tantos interesses privados conflitantes e egoístas, diante do próprio interesse do Estado, muitas vezes tirânico, ainda existe a possibilidade de se delimitar e encontrar um interesse público. Tal fato fez com que alguns autores entendessem existir uma crise no conceito, marcada pelo choque de individualismos e pela dificuldade do Estado de compreender a noção da expectativa pública.

Humberto Bergmann Ávila faz uma breve e útil introdução sobre a definição de princípios, que cabe aqui ser mencionada para a melhor compreensão do interesse público explicado, no antidumping chamado de “cláusula” ou “teste”, mas que se trata de um princípio. O problema na definição e utilização de um princípio surge quando fenômenos distintos são explicados mediante o uso de denominações equivalentes, ou quando serve um princípio para explicar fenômenos descobertos em um mesmo objeto do conhecimento. Assim, eles passam a significar tudo, e, ao mesmo tempo, coisa alguma. A dogmática jurídica passa, ao invés de explicar enunciados, a encobri-los sob o manto dos princípios.

Para entender o que seja um princípio, o autor sugere fazer distinções quanto à sua finalidade e o objeto de conhecimento ao qual ele é extraído e ao qual deve manter referência. Consideram-se três as formas assumidas pelos princípios. Eles

244 Na Constituição Federal brasileira, por exemplo, o interesse público é mencionado diversas vezes (Art. 19, sobre cultos religiosos, art. 37, sobre contratação de servidores públicos, art. 57, sobre a convocação do Congresso Nacional, art. 66, sobre projetos de lei, art. 93, sobre a magistratura brasileira e sobre os julgamentos, art. 95, sobre as garantias dos juízes, art. 114, sobre a Justiça do Trabalho e no art. 231, sobre a exploração de domínios indígenas). Além dele, pode-se lembrar também que as expressões interesse coletivo (Art. 5 e art. 173) e interesse geral (Art. 5) são usadas também, embora sem definição precisa, no texto constitucional.

106 podem se comportar como axiomas (verdade inquestionavelmente aceita), postulados (obtido da observação da realidade) e normas (depende de positivação). Cabe definir, portanto, o que é o interesse público, defendido pelos Membros da OMC como uma cláusula a ser aposta em um acordo sobre antidumping, derivado da experiência, que permite a compreensão do fenômeno jurídico.

Um axioma é uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, não sendo possível nem necessário prová-la. Ele é auto-demonstrável ou óbvio. O axioma serve como ponto inicial para dedução e inferências de outras verdades. A palavra axioma significa o que é considerado válido, adequado, auto-evidente.245 Trata-se de um valor incontestável. Um bom exemplo de axioma no sistema jurídico dos povos civilizados é a dignidade humana. Ela é espelhada em cartas constitucionais ou leis diversas, mas nem precisaria ser. Ela é lógica e sua observância é esperada.

Postulados são possibilidades de conhecimento de determinados objetos. Ao contrário dos axiomas, os postulados são estabelecidos por meio de experiências reais, do senso-comum. Assim há os postulados normativos, que são a possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico. Eles não são suficientes para fundamentar uma decisão, mas explicam como pode ser obtido o conhecimento do Direito (princípios de hermenêutica). São exemplos o postulado da coerência e o postulado da integridade.246

Por fim, há a norma-princípio. Norma é o conteúdo de determinada prescrição, em função do qual o ordenamento jurídico determina, proíbe ou permite. A norma-princípio tem seu fundamento no Direito Positivo e é concretizável. A norma- princípio não pode ter caráter abstrato, mas, ao contrário, deve-se aplicar a um determinado grupo de indivíduos, uma sociedade. A regra do artigo 5º, da Constituição Federal brasileira, é um princípio-norma: todos são iguais perante a lei. Não é uma verdade universal, algo óbvio como um axioma. Tampouco é algo que se possa abstrair

245 São axiomas: Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si. O todo é maior do que a parte. 246 São postulados: Uma reta pode ser traçada de um ponto para outro qualquer. Qualquer segmento finito de reta pode ser prolongado indefinidamente para construir uma reta.

107 da experiência da sociedade. Ao contrário, é uma norma imposta a um determinado grupo, deve ser positivada.247

Diante das definições acima trazidas, cabe elucidar se o princípio do interesse público seria um axioma, um postulado ou uma norma-princípio.

Seria uma norma-princípio? A resposta é negativa. A Teoria Geral do Direito não permite a classificação do princípio do interesse público como uma norma- princípio. Seu significado abstrato não permite a positivação e compreensão desejável a uma norma-princípio. Além disso, ele não pode ser colocado em grau de hierarquia com outros princípios: se houver princípio a ser observado acima do interesse público, este deixará de existir, não sendo possível a sua minimização.

Também não se pode falar que o princípio do interesse público seja auto-explicável como os axiomas. Não há qualquer obviedade em seu conteúdo, não lhe é possível delimitar, muitas vezes, nem mesmo conhecendo sua finalidade ou motivação.

O interesse público é um postulado ético-político. Freqüentemente apresentado como pressuposto da ordem social, ele é visto como a realização da vontade geral, entregue a um ser externo a todos os indivíduos – o Estado – encarregado da sua realização. Sua validade não depende de qualquer positivação, vai existir mesmo se o ordenamento jurídico não o trouxer em qualquer previsão. Ao mesmo tempo, ele é fruto da observação, da experiência.

O interesse público no antidumping não é óbvio, mas, pela observação da realidade, pela experiência, mostrou-se presente e necessário. A necessidade de positivação pode trazer alguma discussão, já que um postulado não depende de positivação para ser reconhecido pela experiência. Alguns dirão que, para que sua aplicação seja respeitada por todos os Membros da OMC, ele deve estar claro no texto do Acordo Antidumping e nas legislações nacionais.

Defende-se, aqui, que a observação do interesse público é inerente à ação do Estado, como contratualista ou fruto de uma democracia, sendo impossível

247 ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, n. 24, 1998.

108 dizer que ele não exista. Ele é anterior a qualquer lei antidumping, qualquer acordo internacional.

O postulado é obtido do senso comum e permite o conhecimento do fenômeno jurídico, da lei. Ele não pode, por si, fundamentar a decisão, mas sim explicar como pode ser obtido o conhecimento do Direito. Por isso, está sempre atrelado ao interesse público uma justificativa, a explicação de como ele é interpretado naquele contexto ou momento. Esta explicação pode e deve ser positivada, sobretudo em um contexto multilateral, para que não se torne desculpa para a discricionariedade acima referida, inviabilizando, assim, a aplicação do referido instrumento (antidumping).

No documento O interesse público no antidumping (páginas 104-108)