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A crise do interesse público

No documento O interesse público no antidumping (páginas 108-112)

I. ASPECTOS FUNDAMENTAIS SOBRE O INTERESSE PÚBLICO NO ANTIDUMPING

1.3 A INDETERMINAÇÃO DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO

1.3.3 A crise do interesse público

Para que se possa compreender o interesse público no antidumping, é importante estudar a relação entre o desejo público e o que é interessante aos atores privados. Existe hierarquia, ou estes interesses são realmente distintos?

Alguns autores defendem que o Estado deve espelhar os desejos dos particulares, sendo-lhes fiel. O interesse público é a soma dos interesses privados, não existindo sobreposição do primeiro sobre o segundo. Outros autores defendem que os interesses privados são interesses de tal forma egoístas, que seria impossível falar em reunião destes interesses, ou em formação de um interesse diverso que seguisse as diretrizes emanadas dos interesses particulares, passando o interesse público por uma crise.

Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que diferenciar interesse público do interesse privado é um grande equívoco. Para ele, interesse público é uma forma, um aspecto, uma função qualificada do interesse das partes, não podendo se conceber que o interesse público seja contraposto e antinômico ao interesse privado. Não são os indivíduos que servem ao Estado, mas sim o inverso, ou seja, o interesse

109 público é que deve espelhar o conjunto de vontades, o conjunto dos interesses individuais.248

Hector Escola sustenta que o interesse público não é de nenhuma forma uma entidade superior ao interesse privado, não havendo contraposição entre eles. Eles são qualitativamente iguais, somente se distinguem quantitativamente, por ser o interesse público nada mais do que um interesse individual que coincide com o interesse individual da maioria dos membros da sociedade.249

Alexandre Santos de Aragão estuda o interesse público a partir da noção de Estado de Direito. A idéia de Estado de Direito parte de uma concepção estruturante de Estado e do Direito Público, que racionaliza e sistematiza as relações entre Estado e indivíduos, submetendo estes a uma estrutura hierarquicamente construída, que parte da Constituição e chega até as decisões concretas do Poder Judiciário e da Administração Pública. Ele lembra a concepção alemã de Estado de Direito, para a qual não importa o conteúdo das leis, são todas impostas pelo Estado e ao Estado (compreendidas aí como sua autolimitação), ou seja, o Estado só se subordina ao que ele próprio estabelece, o que era considerado por Duguit como a “institucionalização da barbárie” 250.

Conclusão necessária, para Aragão, é a de que todo Direito é estatal, ou seja, não há valor, regra ou costume que possa ser imposto ao Estado, já que ele tem o monopólio da definição do interesse público, somente se estes valores, regras ou costumes já tiverem sido encampados pelo próprio Estado. Todavia, é necessária uma metodologia adequada para limitar a subjetividade do julgador e do administrador na aplicação do Direito Público, já que eles não são mais os garantidores do interesse público titularizado no Estado, mas sim um instrumento da garantia, pelo Estado, dos direitos fundamentais.

Justen Marçal Filho resume as diferentes concepções de interesse público a partir do interesse privado. Em primeiro lugar, ele lembra a existência do

248 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 28.

249 ESCOLA, Hector. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 236.

110 interesse público como somatório dos interesses privados, que corresponderia ao interesse comum e homogêneo da totalidade ou da maior parte do povo. Não haveria diferença qualitativa entre interesse público e privado, mas sim e apenas uma diferença quantitativa. Em segundo lugar, ele apresenta a concepção de interesse público como somatório de determinados interesses privados. Existiriam alguns interesses privados egoístas que não poderiam se transformar em públicos.

No antidumping, há sempre um grande conflito entre as classes, como será visto adiante, mas isso não impede, em teoria, que o Estado encontre o interesse público. Quando aprovada a obrigatoriedade da observância do interesse público no Acordo Antidumping, os Membros da OMC deverão, sem qualquer interferência da maioria ou da somatória dos interesses individuais, formular uma concepção do interesse público no caso estudado. Este interesse público deverá transcender os interesses individuais e lhes ser superior.

Para explicar a relação entre o público e o privado, alguns autores falam da “crise do interesse público” e entendem que há vários interesses públicos, não somente um. Odete Medauar lembra que

“a uma concepção de homogeneidade de interesse público segue-se, assim, uma situação de heterogeneidade; de uma idéia de unicidade, passou-se à concreta existência de multiplicidade de interesses públicos. A doutrina contemporânea refere-se à impossibilidade de rigidez na prefixação do interesse público, sobretudo na relatividade de todo padrão de comparação. Menciona-se a indeterminação e dificuldade na definição de interesse público, a sua difícil e incerta avaliação e hierarquização, o que gera crise

na sua própria objetividade.” 251

A conseqüência mais indesejável desta pluralidade de interesses públicos é a subjetividade na interpretação e na ponderação dos interesses. Em conseqüência, muito poder é dado à decisão administrativa ou judicial, que se torna fonte principal de valores metajurídicos como segurança nacional, preservação da saúde pública, liberdade de expressão, entre outros conceitos. Como solução, Alexandre Aragão propõe que seja dada prioridade aos argumentos jurídicos que possam ser objetivamente condivididos coletivamente, em detrimento das afirmações genéricas mais ligadas às concepções pessoais e ao perfil psicológico de cada julgador. Para ele,

251 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992, pp. 181/182.

111 isso permite que sejam mais prestigiados argumentos ligados ao texto da regra a ser aplicada do que aos argumentos de caráter não estritamente jurídico.252

Alice Gonzáles Borges critica a visão de obras mais modernas, segundo as quais se estaria diante de uma desconstrução da supremacia do interesse público. Para ela, não há que se falar em desconstrução, mas sim em uma necessária reconstrução da noção. Ela sugere recorrer à justa e imparcial ponderação entre os diversos interesses, norteada pela obediência ao princípio da proporcionalidade. Releva a importância e pleno conhecimento dos fatos em jogo e a participação do cidadão.253

Certamente, o momento é marcado pela valorização de comportamentos individualistas e uma descrença na existência de um interesse público existente, já que os indivíduos estão mais preocupados com a proteção de seus interesses próprios do que com a defesa de ideais coletivos. O Estado, dentro desta realidade, tem dificuldade de se posicionar como defensor do interesse geral, face à diversidade de interesses da sociedade. Há também dificuldade de o Estado se posicionar tendo sua própria estrutura descentralizada. A criação de diversos órgãos e institutos, com o objetivo de conseguir atender às demandas crescentes de uma sociedade numerosa, faz com que o poder seja dividido entre diversas instâncias administrativas e, com isso, também é dividido o poder de definir o que é o interesse público daquela sociedade. Diante da contestação do papel do Estado como garantidor do interesse público, há um enfraquecimento de sua legitimidade. Isso ocorre, sobretudo, no domínio econômico.

Entretanto, embora vários autores apontem para uma crise no conceito de interesse público, seja ela marcada pela supervalorização dos interesses individuais, seja ela marcada pela existência de vários interesses públicos, prefere-se defender a necessária reconstrução desta noção. Há, sim, vários interesses em conflito. Há, sim, muito individualismo na sociedade moderna. Contudo, cabe ao Estado, como legítimo representante do interesse, tanto como titular do contrato, quanto como representante

252 Ele lembra que isto não significa descartar a possibilidade de interpretações evolutivas das leis, mas estas devem seguir minimamente a sua letra, que constitui “o início e o limite, negativo e positivo, de toda interpretação”. Op cit. p. 1143.

253 BORGES, Alice Gonzáles. Supremacia do Interesse Público: desconstrução ou reconstrução? Interesse Público. v. 37, ano 2006, p. 37.

112 democrático, ditá-lo de acordo com as diretrizes que lhe são postas no caso concreto. Como se defendeu anteriormente, ele não é a soma nem o interesse da maioria, é independente. Como postulado ético-político, ele é entregue a este Estado, para que este, com base na experiência e observação, bem como no poder que lhe foi concedido, delimite seu conteúdo.

No documento O interesse público no antidumping (páginas 108-112)