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A vontade geral para Rousseau como limitadora do poder do Estado

No documento O interesse público no antidumping (páginas 98-102)

I. ASPECTOS FUNDAMENTAIS SOBRE O INTERESSE PÚBLICO NO ANTIDUMPING

1.3 A INDETERMINAÇÃO DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO

1.3.1 O aspecto político

1.3.1.1 A vontade geral para Rousseau como limitadora do poder do Estado

A partir do momento em que a sociedade passou a se preocupar com o interesse do individuo, com o homem racional, nasceu a inquietação do homem em relação à formação de uma organização social capaz de assegurar o Bem Comum.225

Rousseau defende que o ato de associação encerra o compromisso do público com os particulares e dos particulares com o todo, não podendo, assim, aplicar- se a máxima do direito civil de que ninguém é obrigado aos compromissos assumidos consigo mesmo (pois há grande diferença entre obrigar-se consigo mesmo ou com um todo do qual se faz parte).

225 Aristóteles ressaltou a defesa do bem comum como forma boa de governo e o descreve como objetivo a ser seguido por todos os membros da comunidade. O homem, como animal social, mesmo que não necessite de assistência mútua, deseja viver junto, reunindo-se pela existência de um interesse comum, na medida em que cada um deles pode participar de uma vida melhor. Seriam estruturadas todas as constituições cujo objetivo maior é o bem comum. Quando o governante decide pensando em seu bem próprio, há um governo desviado. (Aristóteles, Política, Universidade de Brasília, Trad. Maria da Gama Kury, p. 89.) A questão também chamou a atenção dos filósofos dos séculos XVII e XVIII. A Maquiavel se deve a intenção de libertar a política dos conceitos morais e religiosos, em busca de um Bem Público pela noção da estatização. Hobbes deixa claro que o Bem Comum não é um reflexo da ordem natural exterior aos indivíduos, mas uma criação da vontade humana. O Leviatã, personagem criado por ele, ilustra o Estado Social, criado para salvar o homem do Estado do Terror e manter a ordem e a paz. Para Locke, Montesquieu e Rousseau, o bem comum é uma limitação ao poder do Estado, ele existe somente para proteger os interesses particulares.

99 O Estado é o representante, por contrato, do interesse que é distinto da soma dos interesses particulares. O contrato institui a formação de um terceiro interesse, baseado na vontade geral, mas que não é a sua simples soma. Ao mesmo tempo, este Estado está vinculado a esta vontade geral, não podendo atuar além dela, o que seria considerado como tirania.

Rousseau tornou-se o grande entusiasta da teoria da “vontade geral”, justificando que o homem perderia, pelo contrato social, sua liberdade natural e o direito ilimitado, ganhando a liberdade civil e a propriedade de todos os bens que possui. O pacto social reduz-se, para ele, nos seguintes termos: “Cada um de nós reúne sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e nós recebemos num corpo cada membro, como parte indivisível do todo.”226

Uma vez postos os princípios (o homem busca seu interesse particular, o interesse comum não tem existência natural) e o projeto definido (construir um interesse comum a partir dos interesses particulares e garantir ao homem sua liberdade natural), começam as verdadeiras dificuldades. Como passar do interesse particular ao interesse comum?227 Por qual miraculoso mecanismo as vontades individuais poderão se fundir na “vontade geral”, aquela do corpo político, do Estado?228

A solução é, em princípio, contratual. A ordem social é fundada em convenções. É exatamente da existência de interesses individuais conflitantes que surge a necessidade do estabelecimento das sociedades. O homem nasce livre, porém está acorrentado em todos os lados. A realização do interesse individual depende da existência de um contrato social, uma livre associação de seres humanos inteligentes, que por vontade própria decidem formar um tipo de sociedade à qual passam a obedecer. Assim, comprometem-se a não se opor individualmente à vontade do Estado (a primazia da vontade geral). O “Contrato Social” de Rousseau explica que os homens têm, por natureza, direitos que lhes permitiriam viver bem sem a sociedade.

226 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social: Princípios do Direito Político. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 32.

227 Esta é um dos principais questionamentos na aplicação do interesse público no antidumping. Haverá sempre pelo menos dois interesses opostos: o interesse da indústria doméstica e o interesse do exportador. Embora o Estado não deva considerar, mas apenas ouvir, o interesse do exportador, este interesse pode ser coincidente com o interesse daquele que compra seus produtos dentro do país investigador. Como passar destes dois interesses distintos a um só interesse?

100 Rousseau também assume que, muitas vezes, há diferenças entre a vontade de todos e a vontade geral, entendida a vontade de todos como a soma de vontades particulares. Contudo, estas vontades se destruirão entre sim, nas deliberações, restando, para a soma das diferenças, a vontade geral.229

Para Rousseau, “a vontade geral dirige as forças do Estado segundo

os fins de sua instituição, que é o bem comum: porque se a oposição de interesses particulares se tornou necessária para o estabelecimento das sociedades, foi o acordo destes mesmos interesses que a tornou possível. É o que há de comum entre os diferentes interesses que forma o elo social, e se não existe qualquer ponto sobre o qual estes interesses concordam, nenhuma sociedade existirá. Ou é unicamente sobre este interesse comum que a sociedade deve ser governada.”230

Rousseau distingue a “vontade geral” (que necessariamente vislumbra o interesse público) da “vontade de todos” (que pode ser composta da soma dos interesses particulares). A partir desta distinção, situa-se o soberano, na assembléia, como realizador da vontade geral, nunca da vontade de todos.231

229 ROUSSEAU, Jean-Jacques. p. 49.

230 J. Rousseau. Du Contrat Social (1762), livre II, cap 1, Paris, Gallimard, citado por Guylain Clamour, Intérêt Général et concurrence, Dalloz, Nouvelle Bibliothèque de Thèses, p. 167.

231 Poucos autores se preocupam com as nuances de vocabulário, distinguindo interesse comum de interesse público e, ambos, de interesse geral. François Rangeon faz a leitura de tais diferenças em Rousseau. O interesse comum é a soma dos interesses particulares. Para que exista interesse comum, é necessário que exista um elo entre as pessoas que compõem aquela coletividade, que faz com que os interesses sejam coincidentes. É necessário que os interesses tenham a mesma força, sob pena de o interesse mais forte dominar o mais fraco. O interesse comum nada mais será do que o interesse destas pessoas. O interesse público deve ser compreendido como o interesse próprio da coletividade criada. Uma vez instituído, o corpo político adquire um interesse que lhe é específico, o interesse público. Assim, o contrato social significa um compromisso recíproco do público com os particulares. Embora o público seja composto dos particulares, ele possui uma existência própria. O público tem uma vontade pública e, como toda vontade, tem um objeto, o interesse público. Não é possível dizer que o interesse público se resuma à soma dos interesses particulares. A comunidade é muito mais do que o conjunto de interesses dos seus membros, ela adquire uma existência distinta destes. A formação de uma comunidade pressupõe um processo de institucionalização política e o surgimento de organismos de vida própria, alheia à existência das vontades individuais que o constituíram. O processo de formação desta comunidade passa pela transformação do interesse comum em interesse público. O interesse público não é formado a partir dos interesses particulares. Ao contrário, ele os ultrapassa e passa a lhes ser superior. Os interesses individuais passam a ser observados, nesta coletividade, a partir dos interesses públicos. Já a vontade geral, para Rousseau, é a soma de interesses que podem ser diferentes, a favor e contra, positivos e negativos, nascendo a vontade geral da associação destas diferenças. Quanto mais diferentes as vontades, mais geral é o interesse.231 (RANGEON, François. L’ideologie de l’intérêt général. Paris : Economica,1986, p. 119.)

101 Não é necessário sequer que as cláusulas deste contrato sejam escritas, enunciadas formalmente, bastando que sejam tacitamente admitidas e reconhecidas. Contudo, se tais cláusulas exagerarem o proposto, deverão ser consideradas nulas. O soberano faz parte da assembléia de associados, não podendo se esquecer de que deve velar pelo poder que lhe foi delegado para a função específica: a preservação da vontade geral. Isso previne o totalitarismo 232

A concepção de Rousseau de contrato social não abarca, contudo, a discussão da luta de classes e do conflito de interesses. Sua utopia de igualdade e liberdade é inspirada na democracia vivida por ele na cidade de Genebra e pressupõe uma unidade pequena, uma comunidade homogênea com uma diversidade limitada de interesses.233

A Revolução Francesa marca o fim de um período em que o interesse público era confundido com o interesse do rei. As aspirações individuais passam a ser base da sociedade e o individualismo domina sob dois postulados: a igualdade e a liberdade. A idéia do bem comum como fonte do interesse público é substituída pela idéia de que a vontade individual constitui a base da soberania. O Estado Liberal caracteriza-se como defensor dos interesses individuais234, mas, ao mesmo tempo, é insuficiente para conter alguns vícios, como a exagerada acumulação de poder e o crescimento da desigualdade social.235

Surge, pois, a fase democrática, em que a necessidade de participação do povo na organização do Estado, na formação e na atuação do governo torna-se essencial para garantir a sua vontade e resguardar a liberdade e a igualdade.236

232 CARRACEDO, Jose Rubio. Democracia y legitimacion del poder em Rousseau. Revista de Estudios Politicos, n. 58, Outubro-dezembro, 1987.

233 FREY, Klaus. Descentralização e Poder Local em Alexis de Tocqueville. Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. 15, p. 83, Nov. 2000.

234 A noção de interesse público no Estado Liberal estava ligada à de ordem pública, traduzindo-se em uma missão exclusivamente política. A justiça, a polícia e as finanças estavam entre os domínios de ação do Estado, sendo a segunda a principal. (LINOTTE, Didier; MESTRE, Achille. Services Publics et Droit Public Économique. Paris: Librairies Techniques, 1982, t. 1, p. 52).

235 VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria Geral do Direito Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 14.

236 ABREU DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado, 16 ed. Saraiva, São Paulo, 1991, p. 128.

102 Neste contexto, transparecem as idéias de Tocqueville. O jovem magistrado francês embarca para os Estados Unidos, em busca de aventuras e conhecimento, e se depara com uma sociedade ancorada em ideais diferentes daqueles nos quais se inspirava seu país. Decide, então, observar a democracia norte-americana e escrever sobre ela, defendendo que o Estado, o “delegado” da vontade geral, não seria capaz de conter o individualismo moderno, sendo necessária a instituição de um sistema participativo.

No documento O interesse público no antidumping (páginas 98-102)