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aspectos da política externa brasileira, no centro internacional indiano

A interdependência é uma das principais ca-racterísticas da vida internacional de nossos dias. Fala-se muito sobre esse conceito que, algumas vezes, é apresentado em termos que não oferecem senão um novo disfarce para fórmulas ultrapassadas de pensar. Nes-sa linha, os países do Sul se tornaram ainda mais dependentes do Norte, e o fenómeno

Conferência do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, sobre "Aspectos da Política Externa Brasileira", pronunciada no Centro Internacional Indiano, em Nova Delhi, em 5 de março de 1984.

inverso não ocorreu; o Norte seria, ainda, na prática, motor que gera o crescimento e a retração económica global e o lugar onde as decisões políticas fundamentais são to-madas.

De um ponto-de-vista pragmático, acredito que podemos concordar com o fato de que

existe uma medida de verdade naquela afir-mação. Contudo, ela esconde um fator de profunda importância. Vivemos num pe-ríodo de mudanças aceleradas, e a ideia que apresentei reflete muito mais a condi-ção em que o mundo se encontrou até ago-ra do que a situação paago-ra a qual nos dirigi-mos. Não leva, assim, em consideração algu-mas tendências básicas que já estão ocor-rendo na cena global.

A interdependência é uma via de mão du-pla. Tanto em termos práticos como mo-mento do raciocínio político, está baseada — e estimula — a ideia de que todas as na-ções são soberanas e iguais e que os princi-pais agrupamentos de países do Norte e do Sul deveriam imaginar formas novas de co-operação entre si em moldes igualitários e mutuamente proveitosos.

A própria interconexão da economia mun-dial — para não falar da esfera política — tece um panorama complexo e integrado. Felizmente, reconhecemos desenvolvimen-tos positivos neste cenário, tais como a emergência da mutualidade de interesses entre diferentes países e especialmente en-tre os países do Sul.

Acredito que essa seja uma das razões por-que eu estou aqui. A crescente mutualidade de interesses entre o Brasil e a fndia torna oportuno que reforcemos o nosso diálogo e nosso intercâmbio, tanto em nível bilateral quanto multilateral.

Embora relativamente nova, a história da aproximação entre os países do Sul já é sig-nificativa e promissora. Não estamos mais nos primeiros passos de nossa caminhada. O poderoso movimento pela descolonização, que galvanizou a vida política do planeta foi um dos mais impressionantes marcos do processo de crescente consciência, da parte de nossas nações como um todo, de nossos legítimos interesses.

O espírito nascido em Bandung e que se desenvolveu nas primeiras Reuniões dos

Países Não-Alinhados mostrou progressiva-mente o vigor desse Movimento, no qual a índia desempenhou um papel crucial. A UNCTAD trouxe este espírito para o nível económico multilateral e, mais uma vez, a formação natural de núcleos para a agluti-nação dos países em desenvolvimento em organizações internacionais demonstrou a viabilidade de nossa colaboração.

O Brasil, como nação latino-americana, foi parte integrante desse processo global desde sua origem. Apoiamos sinceramente a inde-pendência dos países irmãos da Ásia, da África e da América Latina; construímos cuidadosamente uma política de reforçar a cooperação entre os países em desenvolvi-mento; temos sido dos mais ativos promo-tores do esforço coordenado para o estabe-lecimento de uma Nova Ordem Económica Internacional. Essa tem sido a nossa orien-tação por mais de vinte anos.

Se, de um lado, durante esse período, o progresso tem sido desigual e faltaram transformações práticas e institucionais, é inquestionável, de outro lado, que os países do Sul cresceram em estatura política e de-senvolveram a sua própria visão do mundo. Acabaram-se os dias em que as atitudes das Grandes Potências eram a principal referên-cia para nossas ações e reações. Hoje, conti-nuamos muito interessados em cooperar com os países do Norte para resolver pro-blemas de interesse geral. Mas, temos nossas próprias ideias, que enriquecem nosso rela-cionamento. Baseamos nossos esforços em certos interesses comuns e esperanças e es-tamos dispostos a trabalhar com nossos próprios meios, ainda que limitados para realizar esses interesses e satisfazer essas es-peranças.

Para alcançar nossos objetivos, confiamos em algo diferente do divisionismo ideoló-gico e político, que nós superamos através do respeito pela autodeterminação pela identidade nacional. Contamos, essencial-mente, com nossa disposição e criatividade

para superar os problemas da pobreza. Esta-mos organizados para a cooperação igualitá-ria, livre dos constrangimentos de poder e dominação, e objetivando o desenvolvimen-to recíproco, a satisfação mútua, e resulta-dos compartilharesulta-dos.

Cooperação e diálogo, relaxamento de ten-sões e compreensão são hoje mais do que nunca necessários. A situação internacional de nossos dias está num processo de cons-tante deterioração. O aprofundamento de crises regionais em várias áreas do mundo e a crescente confrontação entre as Superpo-tências combinam-se com uma crise econó-mica de dimensões globais que afeta todos os países e regiões e resiste às terapias orto-doxas. O quadro resultante, como o Presi-dente do Brasil assinalou em seu discurso perante a Assembleia Geral das Nações Uni-das em 1982, lembra dramaticamente os acontecimentos que precederam à Segunda Guerra Mundial.

As crises regionais que agora dominam a agenda internacional são em si mesmas con-sequências de profundos fatores estruturais. Não serão resolvidas adequadamente a me-nos que as questões subjacentes específicas sejam atacadas. A dinâmica sócio-política de cada região envolvida é um fator chave que, como princípio geral, deve ser tomado em consideração de tal forma que soluções legítimas possam ser encontradas. É apenas razoável admitir que os esforços construti-vos e os pontos de vista dos países de uma região tenham prioridade na consideração dos problemas daquela região, livres de in-terferência externa.

Essa situação pode ser vista claramente se enfocamos, por exemplo, as condições dos oceanos Índico e Atlântico Sul. Nada pode ser mais legítimo e positivo do que o desejo dos países de cada uma dessas duas áreas de criar as bases para sua paz e segurança nas regiões referidas, mantendo-as livres das re-percussões das tensões globais.

Esta é a nossa posição fundamental em rela-ção ao Atlântico Sul: queremos que seja

vis-to, acima de tudo, de uma perspectiva hori-zontal, como um meio para promover a co-operação entre países em desenvolvimento da África e da América Latina, e não de uma

perspectiva vertical, como cenário para con-frontação entre potências estranhas à área. Queremos mantê-lo livre das rivalidades ex-ternas que tendem a dividir nossos países em vez de uni-los e a aumentar a militariza-ção e instabilidade em vez de promover a segurança.

Esses princípios também se aplicam a situa-ções como as da América Central, da África Meridional e do Oriente Médio, em que, co-mo regra, o envolvimento Leste-Oeste ten-de frequentemente a alargar o escopo dos conflitos, a aprofundar as rivalidades locais, a encorajar atitudes de intransigência, em vez do diálogo, e a reduzir as possibilidades de soluções justas e duradouras.

Assim como outras regiões do Terceiro Mundo, a Ásia tem, lamentavelmente, sido o cenário de muitos desses conflitos regio-nais. Se tais conflitos são o resultado de fatores locais ou globais ou se de uma inte-ração de ambos, suas repercussões são, cer-tamente, de natureza mundial. Este é o caso do conflito de Campuchea, ocasionado pela invasão desse país por forças vietnami-tas. Acompanhamos com atenção especial os esforços empreendidos pelos países da ASEAN e outras partes interessadas em al-cançar uma solução compatível com o prin-cípio da autodeterminação e não-interven-ção. Outro exemplo é a situação do Afega-nistão, que é fonte de séria preocupação para a comunidade internacional. Temos reiteradamente condenado a invasão sovié-tica e estamos esperançosos quanto a uma pronta solução para o problema. O papel mediador desempenhado pelo Secretário Geral da ONU é essencial e esperamos que seus esforços com vistas a uma solução ne-gociada obtenham êxito.

Em relação aos problemas da América Cen-tral, favorecemos tratamento diplomático e negociado das tensões, de tal sorte que um

clima de entendimento possa ser criado, em lugar da confrontação e polarização ideo-lógicas. 0 problema centro-americano não pode ser reduzido à confrontação ideoló-gica. Nem é possível remover suas dificulda-des pela força. Confiamos no espírito de responsabilidade e independência dos paí-ses centro-americanos. Confiamos na demo-cracia e no pluralismo, como um sistema de convivência interna e de paz externa. Por essa razão, apoiamos os esforços do Grupo de Contadora para a articulação de uma so-lução pacífica para os problemas da América Central.

Em relação ao Oriente Médio, o Brasil, em companhia da imensa maioria da comunida-de internacional, favorece uma paz justa e duradoura, baseada na retirada de todos os territórios ocupados pela força, na imple-mentação do direito do povo palestino à autodeterminação e independência e no re-conhecimento do direito de todos os Esta-dos da região a viver em paz dentro de fron-teiras internacionais reconhecidas.

O Brasil condena enfaticamente o apartheid como uma clara violação dos mais funda-mentais direitos do ser humano. Também repudiamos as políticas de intimidação e agressão que têm sido praticadas contra os Estados da Linha de Frente da África Meri-dional e a ocupação ilegal da Namíbia, cuja independência tem sido indevidamente atrasada. Reiteramos a necessidade para uma solução justa dos problemas da área para que os povos da África Meridional, que tanto sofrem, possam finalmente se de-votar às tarefas cruciais do desenvolvimen-to.

Como o Presidente Figueiredo assinalou em seu pronunciamento, anteriormente men-cionado, o Brasil "vê com grave preocupa-ção a ampliapreocupa-ção do processo de transferên-cia para as áreas menos desenvolvidas de tensões geradas pela confrontação entre as Superpotências. A política de prestígio e poder com relação ao Terceiro Mundo en-gendra divisões e afeta seriamente as pro-postas de cooperação entre as Nações em

desenvolvimento. E firma posição brasilei-ra — e, pabrasilei-ra tanto, estamos dispostos a pres-tar nossa contribuição — que esse processo deve ser urgentemente estancado e reverti-do".

Devemos opor-nos ao divisionismo e lutar firmemente pelo respeito, estrito e comple-to, da Carta das Nações Unidas e dos prin-cípios básicos do Direito Internacional, tais como a autodeterminação, a não-interven-ção e a solunão-interven-ção pacífica de controvérsias. Estamos profundamente convencidos de que essa moldura política e jurídica éa me-lhor forma de proteção de nossos interesses e de promoção dos mais altos ideais da humanidade.

Estamos também profundamente preocupa-dos com a persistência e aprofundamento da corrida armamentista nuclear entre as Superpotências, que não apenas desvia re-cursos tão necessários para a promoção do desenvolvimento e da dignidade, mas tam-bém nos obriga a viver com uma paz sinis-tra e provisória, que é a balança do terror. Favorecemos discussões verdadeiramente significativas com o objetivo de colocar um termo a essa corrida insana e de alcançar o desarmamento geral e completo, sob efeti-vo controle internacional. Ao mesmo tem-po, continuamos a nos opor às políticas dis-criminatórias que prejudicam nosso acesso à tecnologia nuclear para fins pacíficos. Nessa matéria, a posição brasileira é clara e bem conhecida: não objetivamos produzir armamentos nucleares em nosso país mas devemos estar aptos a desenvolver nossa capacidade nuclear para fins pacíficos. A índia e o Brasil são países que não po-dem ser vistos, como membros de qualquer grupo específico de nações. Em nosso caso, temos relações extremamente boas com a América Latina como um todo e particular-mente com todos os nossos dez vizinhos fronteiriços. A África, à qual estamos liga-dos pelo Oceano Atlântico, contribuiu para a formação de nosso povo e de nossa cultu-ra. A Europa, é óbvio, sempre esteve

pre-sente. Nossas relações com os Estados Uni-dos da América são diversificadas e madu-ras. Mas estamos ligados ao mundo inteiro por um sistema bem desenvolvido de rela-cionamentos e através de uma política ex-terna universalista, interessada, acima de tudo, na paz e no desenvolvimento. Não pertencemos a qualquer bloco militar ou aliança intercontinental. Lutamos por nos-sos próprios interesses nacionais.

Por razões culturais, geográficas, históricas e económicas, o Brasil é ao mesmo tempo um país ocidental e do Terceiro Mundo. Posso c i t a r , de n o v o , o Presidente Figueiredo, quando afirmou que: "Integra-do no mun"Integra-do ocidental, o Brasil deseja rea-lizar suas aspirações nacionais com pleno respeito à liberdade, à democracia e aos di-reitos da pessoa humana. Esses altos valo-res, bem como a tradição ocidental do plu-ralismo e de igualdade entre as nações, for-mam um quadro que faculta ao Brasil atuar fora do constrangimento hegemónico de Superpotências ou de pressões ideológicas adversas".

Como um país do Terceiro Mundo, o Brasil está particularmente interessado em incre-mentar suas relações com os países do Sul, em termos de igualdade, respeito mútuo e benefícios recíprocos.

Estamos entre aqueles países que estão in-teressados em forjar uma Nova Ordem Eco-nómica Internacional, baseada em paz justa e em desenvolvimento equitativo, livre de dominação, paternalismo e rivalidade. Esta-remos sempre prontos a lutar por um mun-do em que as relações de cooperação preva-leçam sobre as relações de poder.

No último meio século, a economia mun-dial não experimentou crise tão profunda, tão duradoura, e tão ampla. Enquanto suas consequências de longo prazo são causa para séria preocupação, seus efeitos imedia-tos já se constituem em uma fonte poten-cial de instabilidade sopoten-cial e uma pesada limitação nas condições de vida de um gran-de segmento da humanidagran-de.

O primeiro traço expressivo da crise é o de que afeta tanto as nações desenvolvidas quanto às nações em desenvolvimento. Seus efeitos não conhecem uma clara fronteira geográfica, não estão limitados a certos setores da economia. A interdependência tornou a economia global uma realidade e não mais uma abstração teórica.

Tal situação não nos deve levar, contudo, a imaginar os efeitos da recessão, das altas taxas de juros, do protecionismo são senti-dos de forma igual pelas economias do Nor-te e do Sul. Ao contrário, a crescenNor-te inNor-te- inte-gração dos países em desenvolvimento na economia internacional, e a emergência de uma economia verdadeiramente global mos-tra seu lado vulnerável quando confrontada com a ausência de compreensão em relação à necessidade fundamental de uma maior cooperação económica. Chegou o momento de entendermos a necessidade de transfor-mações. Esperamos que a rise económica traga essa lição, duramente aprendida. A longo prazo, os riscos associados com a pre-servação do estado atual do sistema finan-ceiro, monetário e comercial são certamen-te maiores do que aqueles derivados de uma reestruturação racional e inovadora da eco-nomia mundial.

Desde os anos sessenta, na sua luta para promover o desenvolvimento, os países em desenvolvimento tiveram uma fase de cres-cimento económico. Em meados dos anos setenta, esse processo foi acompanhado de uma inflação mundial e da necessidade de reciclar os superávits dos países produtores de petróleo, o que estimulou a expansão do crédito internacional. Fortes flutuações em alguns parâmetros chave afetaram decisiva-mente a continuidade do crescimento eco-nómico e engendraram uma duradoura re-cessão. A década presente revelou que a duração e a profundidade da crise econó-mica são mais fortes do que inicialmente imaginaram aqueles que são incapazes de entender as inadequações estruturais do sis-tema económico internacional. Pagamentos de juros altos e baixas receitas de

exporta-cão têm sido uma fonte importante de pre-ocupações.

trução de um sistema económico interna-cional mais equitativo, mais equilibrado.

A dimensão da dívida do Terceiro Mundo tem mostrado que o impacto adverso das taxas de juros crescentes tem sido forte-mente doloroso, especialforte-mente porque coincidiu com o declínio de cerca de um terço do poder de compra das exportações de "commodities" nos anos de 1981 e 1982. A programação das obrigações do serviço da dívida enfrenta uma dificuldade adicional derivada do corte nos emprésti-mos para o mundo em desenvolvimento e o aumento das tendências protecionistas nas nações industrializadas.

Eu não gostaria de encerrar essas palavras sem mencionar um aspecto específico da cooperação internacional que espero se pro-vará amplo e promissor. Refiro-me à cha-mada cooperação Sul-Sul. 0 amplo escopo do tema nos leva à questã do futuro do Terceiro Mundo. Acredito que não deve-mos ver as perspectivas do Terceiro Mundo com a visão limitada pelas tendências cor-rentes. O panorama económico desolador que enfrentamos não nos deve desviar dos objetivos de cooperação ampla, que nossos países devem promover e aprofundar.

Não há dúvida de que existe a necessidade de ajustamento. Esse processo, contudo, não deve ser nunca visto como um encargo unilateral dos países em desenvolvimento. Nossos esforços para construir uma base industrial mais forte e o desenvolvimento auto-sustentado estão agora seriamente ameaçados por uma situação anormal em que estamos sendo transformados em paí-ses exportadores de capital para o mundo industrializado.

Não devemos nos recusar a ver as conse-quências positivas dos recentes sinais de recuperação na economia dos Estados Uni-dos. Mas, esse acontecimento, tão esperado, ainda não produziu efeitos em escala inter-nacional. Nossa avaliação é de que a recupe-ração parcial não deve ser vista como uma alternativa para necessidade, profundamen-te enraizada, de uma Nova Ordem Econó-mica Internacional. Sua agenda é obviamen-te matéria ampla e está aberta ao debaobviamen-te internacional. Seus objetivos, porém, de-vem certamente ir além da gerência da crise e incluir as legítimas aspirações para a

cons-Sou dos que acredita que as crises não são apenas tempo de sofrimento, mas também momento para transformação. Identifico claramente um enorme potencial para a cooperação entre países do Terceiro Mun-do. Se a presente crise pode ensinar-nos al-go será a necessidade de buscarmos novos caminhos, novas formas de relacionamento.

A existência de interesses mútuos entre os países do Terceiro Mundo e a luta para su-perar nossas dificuldades é o melhor estí-mulo que temos para promover formas ino-vadoras e construtivas de cooperação no campo das consultas políticas, intercâmbio de experiências e assistência mútua.

É dever de nossas sociedades continuar o caminho para um relacionamento mais es-treito e para forjar formas novas de coope-ração que nos ajudem a superar a crise pre-sente e a construir um futuro melhor para os nossos povos e para a humanidade. Muito obrigado.

comunicado conjunto