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guerreiro, em nova délhi

Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores,

Ramiro Saraiva Guerreiro, em Nova Delhi, em 6 de março de 1984, por ocasião do jantar que lhe foi oferecido pelo

Ministro dos Negócios Estrangeiros da índia, Shri P.V. Narasimha Rao

Senhor Ministro,

Permita-me agradecer, em primeiro lugar, suas saudações calorosas e suas cordiais pa-lavras de boas-vindas. Interpreto-as menos como uma expressão protocolar de hospita-lidade, que como o reconhecimento do sig-nificado simbólico da minha visita: no que diz respeito a nossos vínculos mútuos, ela significa, ao mesmo tempo, continuidade e mudança.

Continuidade, porque não é esta a primeira visita à índia de um Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Como sabe Vossa Ex-celência, um dos meus predecessores esteve neste país há exatamente dezesseis anos, por ocasião da 11 Sessão da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desen-volvimento. Nesse fórum multilateral, nos-sas duas delegações trabalharam juntas, co-mo já haviam feito no passado, e mais uma vez reafirmaram sua dedicação ao objetivo comum de introduzir uma Ordem Econó-mica Internacional mais equitativa. No pla-no bilateral, a visita contribuiu para fortale-cer nossa amizade, que data do acesso da índia à independência, e proporcionou um quadro para o desenvolvimento futuro das nossas relações, através da Assinatura de

um Acordo de Comércio e de um Acor-do Cultural. Desde então, os Acor-dois países aproximaram-se um do outro, através de numerosas visitas e contatos. Fomos honra-dos, em particular, pela visita ao Brasil da Primeira-Ministra Indira Gandhi, em 1968. Seguiram-se muitas outras visitas, tanto de caráter político, quanto empresarial. Nesse sentido, minha visita é parte de um proces-so em curproces-so, que com ela não se iniciou e certamente prosseguirá depois dela.

Mas esta visita também significa mudança, pois cada nova iniciativa no campo das rela-ções internacionais é de certo modo um no-vo começo. O ambiente internacional trans-formou-se nos últimos dezesseis anos, e com ele transformaram-se nossas sociedades e políticas nacionais. Sabemos agora, mais claramente que nunca, que nenhuma opor-tunidade pode deixar de ser explorada, ne-nhum esforço pode ser omitido, nene-nhuma ocasião de mal-entendimentos pode aflorar, se quisermos atingir o objetivo, que é o nos-so e seguramente também o do Governo de Vossa Excelência, de lançar as bases para uma relação estável e duradoura entre nos-sos dois países. A visita pode, efetivamente, ser um novo começo, se ajudar o Brasil e a índia a aprofundarem o conhecimento do

seu potencial recíproco e do seu respectivo papel nas questões internacionais, e a tradu-zir essa consciência em termos operacio-nais.

Nesse sentido, uma nova partida está defini-tivamente ao nosso alcance. Permita-me examinar, brevemente, Senhor Ministro, as principais áreas que em nossa opinião po-dem e devem beneficiar-se de um impulso renovado.

Senhor Ministro,

A cooperação política pressupõe como con-dição mínima uma convergência de opi-niões em torno de um amplo espectro de temas. Pode essa convergência ocorrer entre dois países, como os nossos, que parecem diferir tão profundamente em suas histórias e em suas tradições culturais?

Há mais de uma década a Primeira-Ministra Indira Gandhi declarou que "a política ex-terna deve estar relacionada ao pano de fundo histórico e geográfico de cada país. Vemos o mundo a partir de onde estamos. Outros países vêem o mundo a partir de onde estão. Assim, não podemos ver as coi-sas do mesmo ângulo. Temos alguns países como nossos vizinhos. A relação que com eles mantemos é importante. Outros países, mais distantes, são vistos de outro ângulo". Concordamos, sem dúvida, com essa afir-mação. Nossa própria política externa é uma projeção de nossa identidade nacional, modelada por fatores geográficos e históri-cos. Ao mesmo tempo, esses determinantes não devem ser vistos como absolutos. A geografia pode em si ser corrigida pela his-tória. Assim a vizinhança é um produto da geografia, mas a boa vizinhança depende da ação consciente do homem. As distâncias geográficas tendem a tornar-se cada vez mais relativas, nessa era das comunicações por satélite e do transporte ultra-sônico. A índia e o Brasil pertencem a duas tradições históricas fundamentalmente distintas, mas a relatividade até dessa diferença é atestada QGIO fato de que as mesmas correntes

histó-ricas que levaram à descoberta do Brasil le-varam à inserção da fndia, para o bem ou para o mal, no sistema político europeu. Há dois anos, saudando o Presidente Samora Machel, de Moçambique, a Primeira-Minis-tro da fndia disse que "A frota de Vasco da Gama trouxe a Europa a Vosso litoral, as-sim como ao nosso". O mesmo se aplica ao Brasil. Nossa descoberta, em 1500, foi de certo modo o subproduto de uma expedi-ção portuguesa à fndia.

É nesse sentido que devemos interpretar a frase da Senhora Gandhi segundo a qual "vemos o mundo a partir de onde esta-mos". Com efeito, o mundo nunca percebi-do in vácuo, mas sempre a partir de um lugar definido. Para a fndia e o Brasil, esse lugar está claro. Pertencemos inequivoca-mente ao Ocidente e a fndia ao Oriente, mas apesar da profecia de Kipling, podemos encontrar-nos, e já nos encontramos, no es-paço social, político e económico do Ter-ceiro Mundo. Este é o nosso solo comum. Em consequência, frequentemente partilha-mos percepções semelhantes sobre a nature-za da crise mundial, sobre a situação dos países em desenvolvimento, e sobre a neces-sidade de uma reestruturação básica da or-dem internacional, tanto política como económica.

Acabei, no Centro Internacional Indiano, de descrever em suas grandes linhas a política externa brasileira, e espero que tenha f i -cado claro até que ponto as nossas opiniões sobre questões mundiais são semelhantes. Sem repetir aqui o que foi dito naquela ocasião, basta assinalar que temos ambos uma clara consciência dos perigos suscita-dos pela corrida armamentista, pela tentati-va de estabelecer esferas de influência, pela superposição em cenários regionais da con-frontação global Leste-Oeste, pelas sequelas do colonialismo, pelo apartheid, pelo não reconhecimento ao povo palestino dos di-reitos humanos e nacionais básicos. Preocu-pam-nos a crescente tendência de resolver controvérsias pela força ou pela ameaça da força, e o armazenamento insensato de ar-mamentos nucleares, que põem em risco a

própria sobrevivência da espécie, e se baseia na falácia de que a geração de insegurança global pode aumentar a segurança nacional. Enfim, preocupa-nos a falta de disposição dos países desenvolvidos de agir construti-vamente com vistas ao estabelecimento de uma Nova Ordem Económica Internacio-nal, como se demonstra pelas dificuldades processuais para o lançamento das negocia-ções globais, e recentemente pelo fracasso da VI UNCTAD.

A fndia e o Brasil têm trabalhado, conjunta ou separadamente, para a solução desses problemas em foros muItilaterais. Conjuga-mos nossos esforços, repetidas vezes, nas Nações Unidas, na UNCTAD, nos Grupos dos 77 para obtenção de soluções justas. Como observadores à última Conferência de Cúpula do Movimento Não-Alinhado, ti-vemos o privilégio de testemunhar os esfor-ços da índia, dentro do mesmo espírito. Como foi dito pelo Presidente Figueiredo em mensagem à Senhora Gandhi, "o Brasil tem acompanhado o Movimento dos Países Não-Alinhados, com interesse e esperança, desde sua criação. Nele identificamos uma intenção justa e necessária em prol da paz e da redução das tensões internacionais". Nossa confiança no futuro do movimento renovou-se quando a fndia assumiu a res-ponsabilidade de coordená-lo. Em conse-quência o movimento terá à sua disposição a dedicação da Senhora Gandhi à causa da paz mundial e do desenvolvimento, e sua excepcional experiência e talento diplomá-tico.

Mas a cooperação e os objetivos partilhados no nível multilateral não bastam. Acredita-mos que chegou o tempo para uma coope-ração bilateral mais estreita. Em vista do grande número de temas em que nossas posições são semelhantes ou convergentes e mesmo daqueles em que possamos divergir, seria aconselhável contemplar mecanismos de consulta apropriados, nos quais pudésse-mos periodicamente intercambiar pontos de vista sobre questões mundiais. As moda-lidades desses mecanismos podem ser

deta-lhadas no devido tempo pelos dois Gover-nos.

Senhor Ministro,

Apoiamos a declaração da Conferência so-bre Cooperação entre Países em Desenvol-vimento, reunida em Caracas em 1981, de que "a cooperação económica entre países em desenvolvimento não é um substituto à cooperação global entre países em desen-volvimento e desenvolvidos". Mas nesse pe-ríodo de crise, devida em grande parte a fatores que escapam a nosso controle (tal como o protecionismo nos países desenvol-vidos e as altas taxas de juros que agravam o ónus da nossa dívida) e caracterizada por uma ameaçadora estagnação no diálogo Norte-Sul, a cooperação entre os países em desenvolvimento torna-se crucialmente im-portante.

No espírito da Conferência de Caracas, acreditamos que o Brasil e a fndia têm uma especial responsabilidade em proporem o exemplo de uma fecunda cooperação Sul-Sul. Dispõem ambos de um grande terri-tório, e de recursos naturais abundantes. Estão entre os países mais populosos do Terceiro Mundo. Têm as duas maiores eco-nomias entre os países em desenvolvimento não-exportadores de petróleo. Seu nível de crescimento industrial é comparável. Seu comércio externo é amplo e diversificado. Juntos, e trabalhando em cooperação com outros países em desenvolvimento, podere-mos lograr muitos resultados cuja obtenção seria mais árdua se agíssemos separadamen-te. O crescimento do nosso comércio bilate-ral é uma ilustração tangível do progresso alcançado nos últimos anos. Assim, entre 1978 e 1983, o volume global do nosso co-mércio mais que duplicou, ascendendo de cerca de 114 milhões de dólares a mais de 260 milhões de dólares. Mas estamos longe de satisfeitos com estes resultados. Muito resta a fazer para assegurar um crescimento estável e equilibrado do comércio. A com-posição qualitativa das nossas exportações mútuas está igualmente abaixo do nosso potencial: estamos certos de que com boa

vontade, teríamos a possibilidade de forne-cer um ao outro itens mais significativos em termos das prioridades nacionais de desen-volvimento.

Uma área importante na cooperação econó-mica, além do comércio em bens físicos, é a área de serviços. O Brasil e a fndia desenvol-veram sistemas sofisticados de consultoria e engenharia, que poderiam ser benéficos pa-ra ambos os países. Veríamos com ppa-razer uma oportunidade de participar mais ativa-mente dos projetos indianos de desenvolvi-mento, através do fornecimento de

know-how que adquirimos num amplo espectro

de áreas que vão desde grandes complexos hidroelétricos até a construção de rodovias, e receberíamos com agrado ofertas seme-lhantes de cooperação por parte da fndia. As modalidades dessa cooperação são múl-tiplas. As concorrências competitivas inter-nacionais oferecem uma oportunidade pro-missora para nossa participação recíproca em projetos de desenvolvimento. Explora-ríamos de bom grado a possibilidade de es-tabelecer empreendimentos conjuntos com a índia, que não precisariam limitar-se a nossos próprios territórios, mas poderiam operar em terceiros países. A participação conjunta em concorrências realizadas em certos mercados poderia aumentar nossa competitividade nesses mercados, e assim melhorar nossas perspectivas de êxito. Para discussão desses temas e outros, de nature-za económica e comercial, estamos propon-do o estabelecimento de uma comissão mis-ta, através de um protocolo adicional ao Acordo de Comércio assinado em 1968. Es-tou certo de que esse mecanismo propor-cionaria um quadro institucional útil para canalizar a nossa cooperação económica. Senhor Ministro,

Um dos milagres da fndia moderna foi o crescimento impressionante de sua base científica e tecnológica. A fndia dispõe ho-je do terceiro maior reservatório de enge-nheiros e cientistas, depois dos Estados Unidos e da União Soviética. Observo, de

passagem, que muitos cientistas indianos, da melhor qualidade, já trabalham em uni-versidades e centros de pesquisa no Brasil. Alguns dos centros tecnológicos da fndia estão entre os melhores do mundo.

Esse resultado não emergiu espontanea-mente. Foi o fruto de uma política firme e de uma filosofia abrangente. Segundo a Pri-meira-Ministra da fndia, "a ciência não po-de ser confinada a laboratórios ou universi-dades, mas deve ser parte da educação, da saúde, de todos os aspectos de desenvolvi-mento; assim como da vida no lar, no cam-po e na fábrica. A ciência não deve seguir caminhos trilhados, mas indicá-los, não de-ve simplesmente reagir a problemas, e sim antecipá-los".

Não surpreende, assim, que a fndia tenha logrado alcançar sucessos notáveis, desde o espetacular programa espacial que culmi-nou com o lançamento, pela nave espacial Challenger, há poucos meses, do satélite INSAT I B, até áreas como processamento de dados e bio-tecnologia.

Sentimo-nos no Brasil justificadamente or-gulhosos com os nossos avanços nessa área. Permita-me Vossa Excelência mencionar apenas o progresso alcançado no setor de informática, através de uma política gover-namental coordenada, visando a produção nacional de certos tipos de computadores, e na tecnologia do álcool combustível, o qual substituiu quase inteiramente a gasolina em nossa frota automobilística. Existe campo, portanto, para uma cooperação mutuamen-te vantajosa na área da ciência e mutuamen-tecnologia. Estamos atualmente negociando um Acor-do de Cooperação Científica e Tecnológica, que abrirá caminho para a cooperação in-terinstitucional entre os dois países.

Senhor Ministro,

Permita-me finalmente mencionar a necessi-dade de dar maior substância ao Acordo Cultural, assinado em 1968. Já existe um leitorado de literatura brasileira na universi-dade Jawaharlal Nehru, e como já disse,

professores indianos trabalham atualmente em universidades brasileiras. Existe um cur-so abrangente de Sânscrito na Universidade de São Paulo, com vários semestres de dura-ção.

Mas muito resta fazer. Estamos consideran-do a possibilidade de inaugurar um Seminá-rio sobre a 1'ndia na Universidade de Brasí-lia, nos próximos meses. Podemos contem-plar a organização de festivais cinematográ-ficos nos dois países, e de exposições ilus-trando, por exemplo, certas interações cul-turais entre a índia e o Brasil. Quando Vos-sa Excelência for ao Brasil, o que espero venha a ocorrer no futuro próximo, terá a oportunidade de ver um conjunto de escul-turas representando profetas bíblicos — e obra do Aleijadinho, um dos nossos maio-res artistas do século X V I I I — e observará a impressionante semelhança entre essas es-culturas e as expostas no Convento de São Caetano, em Goa. Este é apenas um exem-plo de certas surpreendentes correntes cru-zadas que se desenvolveram no plano cultu-ral entre a fndia e o Brasil, ao longo dos anos.

Exploremos portanto, de forma realista, compatível com os recursos disponíveis, as perspectivas de uma cooperação cultural mais ampla entre os nossos dois países.

Senhor Ministro,

Não posso encontrar palavras mais apro-priadas para encerrar meu discurso que o an-tigo texto védico, ainda vivo hoje, como tantos outros da multimilenar tradição in-diana: "Possa haver bem-estar para o povo, possam os governantes proteger o mundo, seguindo o caminho da justiça; possa o mundo inteiro ser feliz". O desenvolvimen-to económico e social, a paz mundial e, em consequência, uma vida melhor para a hu-manidade: são essas, em essência, as três es-peranças manifestadas pelo texto, e deve-riam ser os três objetivos visados por nossos países, em sua nova trilha de colaboração.

Em minhas observações iniciais, referi-me a um novo começo. Comecemos.

Convido todos os presentes a acompanhar-me num brinde à saúde de Sua Excelência o Presidente Giani Zail Singh e Sua Excelên-cia a Primeira-Ministra Indira Gandhi, à prosperidade crescente do povo indiano, à amizade perpétua entre a fndia e o Brasil e à felicidade pessoal de Vossa Excelência e da Senhora Rao.

Muito obrigado.