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Minha visita ao Paquistão pretende inaugu-rar uma nova fase em nossas relações bilate-rais. Temos uma base expressiva de conta-tos, especialmente na área diplomática, mas reconheço que as potencial idades a explo-rar são imensas.

Como fazê-lo? É fundamental, penso, que busquemos equilibrar, em nossos relaciona-mentos, os interesses concretos e o conheci-mento recíproco. Laços fortes e permanen-tes entre os Estados exigem, além do inter-câmbio económico e da cooperação

técni-Conferência do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, no Instituto de Estudos Estratégicos

do Paquistão, em Islamabad, em 4 de março de 1984.

ca, a construção de uma moldura de conhe-cimento, de compreensão mútua. E, nesse caminho, um aspecto decisivo é o do diálo-go político sobre a realidade internacional. Um dos temas, que se tornará central no diálogo Brasil—Paquistão, será, sem dúvida, o de como entendemos a realidade interna-cional, o que significam suas tendências, de que forma somos afetados pela conjuntura, de que forma podemos modificar situações. Pela sua própria natureza, é este um com-plexo de preocupações que vai além do

contato diplomático e engaja setores diver-sos da sociedade, como a comunidade aca-démica.

Neste sentido, a oportunidade de falar ao Instituto de Estudos Estratégicos, que con-grega eminentes personalidades paquista-nesas, e, de certa forma, sugerir ideias e no-ções sobre os rumos desse diálogo me grati-ficaram muito. Assim, gostaria de tomar, como linha central de minhas palavras, a questão da formulação da política externa brasileira. Daria ênfase a certos diagnósticos que orientam a ação diplomática brasileira

e que estão ligados à nossa condição de país em desenvolvimento e que, portanto, pode-riam guardar pontos de aproximação com a situação paquistanesa.

Quando iniciamos uma reflexão geral sobre a posição dos países em desenvolvimento no mundo de hoje, um dos primeiros ele-mentos a considerar é o contraste entre nossas necessidades, que se ampliam cons-tantemente, e um quadro internacional ten-so, refratário às reivindicações e propostas que fazemos, tanto na área da economia quanto na política. Os dois lados da equa-ção não se completam, e exigem de nós, países em desenvolvimento, esforço perma-nente de criatividade e imaginação políti-cas.

Do lado das necessidades, se observarmos o percurso histórico dos países em desenvol-vimento, veremos que, em regra, dois fenó-menos acontecem: em primeiro lugar, as so-ciedades nacionais se tornam mais comple-xas; o tecido social se diversifica, as exigên-cias de desenvolvimento se ampliam, e, em consequência, alargam-se as formas de pre-sença no processo internacional. São dois movimentos que se dão simultaneamente, o de complexidade interna e o da amplia-ção da presença internacional, e, nesse sen-tido, as tentativas de fechamento e autar-quia aparecem como coisa rara, excepcio-nal. Em segundo lugar, a presença do Ter-ceiro Mundo no sistema internacional nun-ca foi politinun-camente passiva. Ao contrário, procuramos, sempre conjugar a presença

com uma compreensão própria do cenário internacional e com formas próprias de atuação sobre o sistema internacional. Em suas diversas dimensões, há uma nítida li-nha que nasce com o diagnóstico, passa pe-la articupe-lação política, ganha sentido insti-tucional, e finalmente vai valer como peso político específico dos países em desenvol-vimento no sistema internacional. Os exem-plos são muitos. Na área económica, é a linha que nasce, ainda nos anos cinquenta, na CEPAL, por exemplo, com as análises sobre deterioração dos termos de intercâm-bio e que culmina na UNCTAD, e, mais recentemente, se desdobra nas tentativas de Negociações Globais e outras reuniões de amplo escopo para lidar com a crise inter-nacional. A busca de conceitos próprios, de mecanismos que traduzissem a vocação de autonomia, também se dá no campo da po-lítica, com o movimento pela descoloniza-ção, com a luta pelo desarmamento, com os esforços não-alinhados.

Neste longo percurso, aprendemos, nós, países do Terceiro Mundo, apesar de sua evidente heterogeneidade, a trabalhar poli-ticamente de forma conjunta, harmoniosa, e criando formas de associação política en-tre Estados, que tinham sentido verdadeira-mente inovador. Não nos associamos, como nas alianças tradicionais, com objetivos imediatos de poder, ou "contra" um grupo de Estados adversários, mas, fundamental-mente, para implantar modalidades de con-vivência internacional, que, se aceitas, tra-riam benefícios para toda a comunidade in-ternacional. Duas outras características des-se já longo percurso histórico ressaltam: o processo de atualização constante, que res-p o n d i a às necessidades crescentemente complexas de nossas sociedades e do siste-ma como um todo (é sempre bom lembrar que fenómenos novos vão acontecendo ao longo desses anos, e, só para dar exemplo, na área da economia, assinalo a expansão das empresas multinacionais) e, além disto, o perfil diplomático, essencialmente nego-ciador, que sempre teve o conjunto de insti-tuições e instrumentos que foram

articula-dos. É claro que, ao longo da história, terão ocorrido dificuldades e disputas, a harmo-nia e o consenso nunca foram perfeitos, nem fáceis, mas eu sublinharia que os ideais básicos nunca foram traídos. Nossos ideais, que não são utópicos, permanecem fortes e válidos, e, hoje mais do que nunca, repre-sentam caminho de saúde económica e po-lítica para a sociedade internacional.

Hoje, numa conjuntura marcada por tantas formas de crise, a distância entre o comple-xo de posições, conceituações e reivindica-ções do Terceiro Mundo, e as "respostas" do sistema internacional são imensas. Nem sempre foi assim. Embora o percurso tenha sido marcado mais por frustrações e desa-lento do que por êxitos, houve situações históricas em que passos adiante foram da-dos; em regra, a partir de penosos esforços políticos dos países em desenvolvimento. A vitória do movimento pela descoíonização foi um dos êxitos; os ganhos institucionais, tanto na área económica quanto política, foram outros. Mas, hoje, a desesperança rei-na.

As nossas soluções acentuam as vantagens da negociação e pedem que a cooperação seja a regra a organizar a vida internacional; do lado das Superpotências, a tendência às soluções unilaterais ganha terreno. As nos-sas soluções pedem que as formas democrá-ticas, estribadas em princípios como o da igualdade soberana dos Estados, prevaleçam nas disputas e nos conflitos; do lado das Potências, nunca se usou com tanta natura-lidade o argumento da força e do poder. Quando pedimos que, em cada tema inter-nacional, não se deixe de considerar a di-mensão ética, que dá solidez às soluções, contrapõe-se, do lado das Potências, realis-mo de curto prazo, de fugaz eficácia. As consequências desse quadro são nefas-tas. E, são nefastas não só para os países em desenvolvimento, mas para todo o sistema internacional, que vive bloqueado, com ten-sões acumuladas e irresolvidas. O clima de confrontação e de exacerbação retórica no âmbito global das relações entre as

Super-potências traz consequências extremamente negativas. De nosso ponto de vista, e nisto compartilhamos o diagnóstico da maioria dos países em desenvolvimento, especial-mente graves são a corrida armamentista, a criação de um clima de incerteza no sistema internacional em que a guerra nuclear passa a ser ingrediente no universo das pressões políticas, a concentração da agenda interna-cional em temas estratégicos em detrimento da necessidade de renovação e reforma da ordem internacional, a ligeireza com que se interfere, ostensiva ou sorrateiramente, nos assuntos internos de terceiros, e, finalmen-te, a questão da transferência de tensões para as crises regionais.

A persistência das tensões regionais tam-bém preocupa. Se traduzem questões histó-ricas, por vezes seculares, não deixa de ha-ver, frequentemente, e, de forma profunda, processos de transferência da tensão global para o campo regional, com efeito agravan-te sobre a crise.

Processos de intervenção, que, em regra, ge-ram espirais negativas, tendem a se tornar perigosamente corriqueiros, e tenta-se, até mesmo legitimá-los. Aqui, a dissonância en-tre o nosso poder de afirmação política e a afirmação política do poder é enorme, e fica marcada, por exemplo, em episódios como o da interferência soviética no Afega-nistão, condenada pela unanimidade dos países em desenvolvimento, e que, ainda as-sim, não se arrefece, depois de quatro anos. De forma similar, é triste verificar a perma-nente precariedade da situação do Oriente Médio. Multiplicam-se as formas de confli-to, e, assim, abandona-se um dos temas cen-trais da crise, que é o da necessidade de que os palestinos tenham um Estado com base em equitativa autodeterminação.

Outra área onde se cruzam as questões re-gionais, os fenómenos estruturais de pobre-za e insatisfação social, e as tensões globais, é a América Central. A posição brasileira na matéria pede que, nas soluções, respeite-se de forma estrita o princípio da

não-inter-venção, atente-se à complexidade das raízes da crise, e caminhe-se exclusivamente por processos negociadores e diplomáticos, co-mo tenta o Grupo de Contadora.

Também o continente asiático tem sido ce-nário de graves crises. Muitas das quais, de-generaram, infelizmente, em confrontações militares. Por exemplo, a invasão de Cam-puchea pelas forças vietnamitas produziu uma crise política cuja solução ainda não está à vista. O Brasil tem votado a favor de resoluções, nas Nações Unidas, que pro-põem uma retirada de Campuchea de todas as tropas estrangeiras, e garantam a neutra-lidade, a independência, a soberania, e a in-tegridade territorial daquele país. Outra cri-se, afetando mais imediatamente o Paquis-tão, é a provocada pela invasão soviética no Afeganistão. Essa agressão, que ainda per-dura, constitui uma flagrante violação da obrigação de todos os Estados de abster-se, em suas relações internacionais, do uso da força, contra a soberania, a integridade ter-ritorial e a soberania dos demais Estados. Estamos acompanhando com atenção os es-forços mediadores desenvolvidos pelo Se-cretário Geral das Nações Unidas, e espera-mos que uma solução negociada se concre-tize a breve prazo, de molde a assegurar a pronta retirada das tropas soviéticas, e o direito do povo afegão de determinar sua própria forma de governo, livre de qualquer forma de intervenção externa.

Ao examinarmos a situação de crise econó-mica mundial que atravessamos, vamos des-cobrir fenómenos de impasse que se aproxi-mam, conceitualmente, do que descreve-mos na área política. Não preciso referir as deficiências e deformações da ordem eco-nómica internacional, que encontram ex-pressão particularmente dramática na reces-são que vivemos. Pretendem os países do Norte perpetuar, através de protecionismo, formas de divisão do trabalho que se torna-ram obsoletas. Pretendem fechar-se em ins-tituições cuja vocação se esgotou e cujas regras desconhecem as necessidades atuais da ordem internacional. Procuram, defen-dendo soluções de curto prazo e limitadas a

situações emergenciais, ignorar a necessida-de necessida-de reformas amplas, que tomem a pers-pectiva de longo prazo, e que partam da noção de que o progresso do Norte passa em boa medida pelo desenvolvimento do Sul.

Feito esse rápido balanço da conjuntura in-ternacional, penso que terei descrito uma das chaves conceituais da atitude diplomá-tica brasileira: de um lado, compreende-mos, como a maioria dos países em desen-volvimento, que é forte e clara a necessida-de necessida-de mudança da ornecessida-dem internacional; necessida-de outro, também compreendemos que forte e clara é a resistência à mudança. No proces-so, as tensões e as crises não arrefecem; an-tes, se agravam.

Já apontei que o contraste entre a necessi-dade de mudar e a resistência à mudança está ligado aos interesses em que se mante-nham as assimetrias de poder. Estaremos condenados a viver neste equilíbrio precá-rio, em que se combinam, de forma sinistra, a ameaça de um holocausto nuclear com a proliferação da miséria absoluta? Estare-mos condenados a ver no sistema interna-cional uma teia de constrangimentos, que só premia o poder e as soluções de força? Não quero trazer aos Senhores receitas defi-nitivas, seja de otimismo seja de pessimis-mo. Minha atitude é a de buscar o diálogo, procurar entender, a partir da conversa mais franca, o que poderemos fazer daqui para frente, para estimularmos as mudanças no sistema que acreditamos úteis e efetivas. Não temos, na diplomacia brasileira, pana-ceias nem lições a dar.

Sabemos que é necessário que se criem, a curto prazo, e em todas as áreas, estruturas ágeis de diálogo e negociação. As linhas e orientações da mudança são conhecidas, e é necessário alimentá-las de vigor político. Trajetórias individualistas, esforços hege-mónicos, terão sempre o sinal da precarie-dade. Equilibrar, no movimento de mudan-ça, o verdadeiramente nacional com a reno-vação do sistema é um dos desafios

funda-mentais de nosso tempo, tanto para os di-plomatas e homens de estado, quanto para os intelectuais.

De outro lado, é preciso criar um clima de confiança entre os Estados para que as dife-rentes formas de negociação não sejam vis-tas como capitulação. É fundamental reva-lorizar a diplomacia, não como uma das pontas dos instrumentos de poder, mas mo veículo para esforços criativos de co-operação e de conciliação entre os Estados. Em resumo, quero praticar com os Senho-res o mesmo exercício de diálogo, sempre em bases iguais, que temos mantido, como traço essencial, da diplomacia brasileira. Até aqui, apresentei aspectos da interpreta-ção da realidade internacional que o Brasil certamente compartilha com outros países. De outro lado, gostaria de indicar, de forma infelizmente resumida, outros aspectos de nossa presença internacional, que talvez nos individualizem.

Em primeiro lugar, diria que existe uma di-mensão de números, estatística, que deve ser levada em consideração quando se fala da presença internacional do Brasil. É a grandeza do território (8,5 milhões de Km2), da população (125 milhões), do PNB (o oitavo do Ocidente), e, também, as dimensões da presença económica, tanto comerciais (cerca de 40 bilhões de inter-câmbio em 1983), quanto financeiras (dívi-da externa de mais de 90 bilhões de dóla-res). A "administração" dos números envol-ve evidentemente uma série de atitudes e construções diplomáticas. Uma das mais importantes é justamente a de lidar com a questão territorial, já que temos dez vizi-nhos, e, ao longo da história, conseguimos criar excelentes bases de convivência, de tal forma que, hoje, não temos nenhum atrito que mereça menção na América Latina (e no mundo).

Os números da presença económica colo-cam outro tipo de problema, como o da

necessidade de termos extremo cuidado nos esforços de promoção comercial, que cor-respondam, de forma efetiva, às necessida-des de divisas do país. Também, quando analisamos a questão demográfica, e assina-lamos as diferenças de renda, a persistência da pobreza, criamos sensibilidade especial para a necessidade de transformações na or-dem económica que favoreçam o desenvol-vimento que permita absorver contingentes de mão-de-obra que são postos anualmente no mercado de trabalho.

Um segundo elemento peculiar é a varieda-de das formas varieda-de presença. Somos latino-americanos, o que nos dá uma moldura de atuação diplomática, que se forma com ba-se na ideia de não-intervenção, do respeito aos tratados, da solução pacífica, do com-bate às hegemonias, e que, hoje, traduz-se por mecanismos de cooperação extrema-mente sofisticados e amplos, como exem-plifica a construção da barragem de Itaipu. A presença africana é extremamente impor-tante na formação da nacionalidade e cria pontes extremamente sólidas no nosso rela-cionamento atual com a África. A nossa ba-se cultural é Ocidental, e repudiando as aberrações dos valores do Ociden-te, aderimos àqueles que são permanentes, o pluralismo, a tolerância, a democracia, o respeito aos direitos individuais. Recebe-mos emigrantes de todas as partes do globo, inclusive asiáticos, o que nos predispõe de uma forma especial para um diálogo univer-salista. Somos também um país Atlântico, onde estamos procurando desenvolver, com nossos vizinhos africanos, a tese de que o oceano que nos liga antes que nos separa deve ser livre das tensões estratégicas, e vol-tado fundamentalmente para abrigar esque-mas de cooperação. Por nossas realidades, somos um país do Terceiro Mundo, e algu-mas das consequências e implicações inter-nacionais dessa condição já as expus na par-te inicial de minha palestra.

Um terceiro elemento que nos individualiza é o da tradição diplomática. Temos um ser-viço diplomático organizado há mais de 100 anos. Isto terá contribuído para que

aceitemos o sentido permanente dos inte-resses nacionais. A moderação, a busca de coerência e consistência, a sintonia entre a retórica e a prática, entre os princípios e a ação, tem sido uma das características per-manentes da ação diplomática brasileira.

Dessa forma, procuramos criar bases de confiança com nossos parceiros, de tal for-ma que praticamos hoje ufor-ma política exter-na de cunho universalista, com abertura real, busca de formas de ação conjunta, em todos os quadrantes do globo. A confiança impulsiona o universalismo, sobretudo na medida em que, hoje, não mantemos qual-quer contencioso internacional grave. Te-mos controvérsias normais que não configu-ram conflito e que têm sido invariavelmen-te conduzidas pelos canais diplomáticos.

Somos um país sem conflitos internacio-nais.

De uma forma ou outra, a soma desses ele-mentos reforça as linhas básicas da ação di-plomática brasileira, sempre voltadas para descobrir, na ação concreta, o melhor cami-nho para a solução de paz, para o encontro que favoreça o desenvolvimento. Somos, por isto, profundamente afeitos ao diálogo, gostamos do diálogo, como o melhor dos exercícios diplomáticos, sobretudo quando feito, como aqui, com sentido de equilí-brio, em bases de respeito mútuo, e na bus-ca de verdadeira compreensão mútua. Não existe melhor base para a ação conjunta, para dar passos adiante na construção de uma ordem internacional melhor.

comunicado de imprensa