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4.   De regresso ao plano fechado: orientações para o futuro 123 

4.3. Dimensões de configuração e efeitos das orientações prefigurativas

4.3.3. As aspirações dos jovens portugueses

Em Portugal, a produção científica sociológica tem abordado de forma relativamente restrita as orientações de futuro, no âmbito dos processos de transição na juventude, por via das decisões escolares para, ou no, ensino secundário ou à entrada do ensino superior e, em menor escala, as orientações profissionais.

Já em 1989 Pedro Moura Ferreira confrontava o optimismo e sensação de controlo relativamente ao futuro encontrado no inquérito nacional "Juventude Portuguesa: Situações, Problemas e Aspirações" com as propostas teóricas mais pessimistas relativamente às transformações na transição para o mercado de trabalho. Os dados existentes neste domínio e

neste período, relativos ao Inquérito aos Jovens de 1982, 1987 e 1993, vão registando um aumento das aspirações escolares ao longo de toda a década de 80 (Ferreira, 1993). Não encontramos a dimensão relativa às orientações de futuro nos grandes inquéritos realizados durante a década de 90 e grande parte dos anos 2000. Mas, mais recentemente, os dados recolhidos no âmbito do Observatório de Trajetos dos Estudantes do Ensino Secundário (OTES/GEPE), a partir do ano letivo 2007/2008, nomeadamente os inquéritos realizados aos alunos à entrada do ensino secundário (Duarte e outros, 2008; Machado e outros, 2011a), incluem dimensões relativas às expetativas escolares e profissionais. Estes permitem observar, entre 2007 e 2011, para o contexto português, tendências gerais identificadas na literatura internacional, tais como: a) a predominância das aspirações de prosseguimento para o ensino superior; b) a variação das expetativas escolares de acordo com o tipo de ensino frequentado, o sexo dos alunos, a qualificação escolar dos progenitores, a origem socioprofissional familiar, o nível médio de classificações e a experiência de reprovação; c) uma elevada indefinição das expetativas profissionais, e uma predominância de expetativas profissionais elevadas, situadas sobretudo nas categorias profissionais "Especialistas das Profissões Intelectuais e Científicas"; d) uma forte relação entre as expetativas escolares e profissionais (os alunos que pretendem prosseguir estudos são quem mais opta por inserções profissionais prestigiadas).

Na produção nacional vamos ainda encontrar pesquisas, mais delimitadas, relativas às escolhas escolares. Azevedo (1990, 1991) constatou, já no final dos anos 80, a existência de aspirações generalizadas de prosseguimento de estudos de nível secundário, e muito expressivas de seguimento para o ensino superior entre alunos do 9º ano de escolaridade. No amplo universo estudado (mais de 6700 alunos), a maioria dos alunos ambicionava prosseguir para o ensino superior, uma tendência ainda mais forte entre as raparigas. O autor encontrou ainda distorções vocacionais, incoerências, lacunas de informação e uma diferenciação significativa das expetativas por origem social.

Cristina Gomes da Silva (1999) investigou as razões que levam os jovens a fazer as suas opções educacionais, e os principais motivos que os levam a preferir uma família de profissões em detrimento de outra, em 3 escolas secundárias de Setúbal. As aspirações escolares observadas neste estudo espelham tendências actuais, variações sociais e de desempenho escolar: forte tendência para o prosseguimento de estudos de ensino superior, mais forte entre as raparigas, em todas as classes sociais presentes, mas de forma mais acentuada na pequena burguesia técnica de enquadramento. A tendência varia em função da escolaridade dos progenitores, nomeadamente da mãe, subindo à medida que o nível de desempenho escolar aumenta, e descendo à medida que aumenta o número de reprovações. A

autora observa ainda as orientações profissionais, assinalando um grau de coerência forte com as expetativas escolares, e distingue as aspirações profissionais (profissões desejadas) e as expetativas profissionais (profissões plausíveis), apontando a distância entre umas e outras: as primeiras mais facilmente nomeadas, onde figuram sobretudo as profissões técnicas, da saúde, científicas e artísticas; as segundas revestidas de um maior grau de indefinição, e onde a docência e as profissões administrativas apresentam maior estabilidade e sentido de concretização. Há também uma marca de género nestas escolhas.

Outra investigadora, Ana Matias Diogo (2008), tem desenvolvido uma linha de pesquisa sólida sobre como os recursos familiares e a origem social condicionam as escolhas escolares, com especial atenção para as dinâmicas internas das famílias. No seu estudo sobre o investimento escolar das famílias de alunos do 9º ano, em S. Miguel, concluiu que rapazes e raparigas têm dois modelos diferentes de investimento na escola – os rapazes escolhem estrategicamente, as raparigas são mais mobilizadas para o sucesso escolar; os rapazes mais dependentes da sua condição social, as raparigas mais sensíveis ao espaço de inserção local da escola, à composição social das turmas, e mais detentoras de trajetos que rompem com o modelo das gerações anteriores (mas não com a família). Distingue ainda os jovens em "classes" segundo o seu projeto de futuro, designadamente "jovens com projetos intermédios e pouco orientados", "raparigas vocacionadas para as humanidades", "jovens optimistas, decididos e vocacionados para as ‘ciências’" e "jovens que desvalorizam a escola".

Vieira, Pappámikail e Nunes (2012), analisando as narrativas biográficas de 1793 jovens alunos do ensino secundário em 6 escolas públicas, construíram um modelo tipológico não de aspirações, mas de percursos escolares que se relacionam de alguma forma com as primeiras e contribui para a sua compreensão. O modelo cruza linearidade, sucesso, temporalidade biográfica e institucional, identificando 4 perfis: "carreiras focadas" (o percurso- norma); "carreiras atrasadas" (marcadas por alguma forma de insucesso), "itinerários exploratórios" (o percurso inovação, mais próximo das lógicas da individualização); e "itinerários erráticos" (de perfil de insucesso e exclusão, mais marginal).

Outro contributo neste plano é aquele por nós proposto em 2002, onde foram identificados, a partir de uma pesquisa qualitativa, 4 perfis de projetos de futuro de alunos do 9º ano, categorizados a partir de um conjunto de variáveis sociais: sucessores (alunos dotados de recursos socioeconómicos, orientados para o ensino superior, segundo uma lógica de continuidade, predestinação e manutenção dos privilégios de origem), dinâmicos (inovadores face aos contextos sociais de origem, numa lógica de mobilidade social ascendente, ambiciosos apesar das trajetórias escolares não lineares, impulsionados a partir do exemplo dos pares, dos

referentes escolares e do apoio familiar); estacionários (organizados, orientados para o ensino vocacional e para a entrada no mercado de trabalho, a partir de trajetórias escolares marcadas pelo insucesso e de contextos familiares pouco escolarizados) e difusos (desarticulação entre projeto escolar e profissional, informação equivocada nestes dois domínios, famílias com capitais escolares muito baixos e muito distanciadas face à escola, com trajetórias escolares de reprovação múltipla) (Mateus, 2002).

Natália Alves (2006) dedica alguma atenção à construção de projetos de futuro de alunos do 9º e 12º ano de escolaridade. Nos projetos escolares, conclui por uma aposta generalizada no prosseguimento de estudos, mais forte no 9º ano de escolaridade, mas que apresenta alguma diferenciação segundo a trajetória escolar anterior, a forma como os alunos avaliam os seus resultados escolares, o capital habilitacional dos progenitores e a classe social. Relativamente aos projetos profissionais, também questionados neste estudo, 85,9% dos alunos apresentam um projeto definido, aspirando de forma generalizada a profissões intelectuais e científicas. Persiste uma divisão sexual das escolhas profissionais e é observada uma vulnerabilidade diferenciada dos projetos profissionais aos atributos socioeducativos (a posição ocupada no sistema educativo, a qualidade da trajetória escolar e a avaliação que fazem dos seus resultados escolares).

Outros contributos incluem o artigo de Faria (2006), que observou as diferentes racionalidades presentes nas decisões relativas à continuidade do percurso escolar e/ou profissional, a partir do 10º ano, em três escolas da região de Leiria, salientando a importância do contexto familiar e social do jovem e da escola frequentada; ou de Almeida e Rocha (2010), que examinaram como a experiência numa opção vocacional no sistema de aprendizagem pode "remobilizar" os jovens para a relação com o saber e com o futuro profissional, abrindo novos espaços projetivos e elevando as aspirações profissionais. Benedita Melo (2011) aflorou o papel complementar, reorganizador ou consolidador dos média na formulação de escolhas escolares no ensino secundário, mais dependentes de outras redes de apoio, ou "bússolas", como a familiar. Machado e Silva (2009) observaram a importância da combinação dos "efeitos-família" (ordem moral doméstica/estilos educativos e eventos críticos como a paternidade precoce, as perdas e as rupturas familiares), e dos "efeitos-escola" (sentidos dos resultados escolares e ordem moral escolar) na produção de trajetos individuais de jovens em contextos de vulnerabilidade social.

No âmbito das orientações profissionais, assinalam-se os contributos de César (1996), que analisou a forte associação entre as aspirações profissionais e as proveniências sociais de crianças do 4º ano de escolaridade em três escolas da cidade do Porto. Mas também de Alves e

outros (2011), que incluem um capítulo sobre as representações, atitudes e estratégias associadas à projecção do futuro laboral de jovens em transições precárias. Da sua análise resultou um conjunto de padrões ideais-tipo, onde convergiram discursos, práticas, representações e estratégias. Concluem que os jovens, mesmo em situação precária, conseguem projetar o seu futuro laboral, e que "o porvir é uma realidade passível de ser representada, projetada, antevista. Representar o futuro não significa porém controlar ou colonizar essa realidade. (…) O grau de controlo sobre esse ponto de chegada não pode ser confundido com a expetativa de o atingir" (Alves e outros: 105-106).

Dentro da produção científica nacional é muito reduzida a atenção dada às orientações de futuro dos jovens descendentes de imigrantes. Os dados reportados inscrevem-se, no entanto, nas principais tendências identificadas anteriormente: as elevadas aspirações, condicionadas por princípios de diferenciação social como a classe social, o género, as qualificações escolares na família e a qualidade da trajetória escolar. Os estudos realizados incidem sobretudo sobre os jovens de origem africana, e nem sempre incluem um grupo de comparação autóctone.

Machado, Matias e Leal (2005), observaram as expetativas e avaliações dos cerca de 1000 jovens descendentes de imigrantes africanos inquiridos no projeto JODIA. Reportam a existência de expetativas em geral elevadas, mas condicionadas pelo efeito da origem de classe, género e escolaridade dos pais e das mães. Assinalam a existência de um ajustamento das disposições subjectivas às posições objetivas, ou seja, o nivelamento por baixo dos projetos dos jovens com menos recursos, que ambicionam níveis menos altos na hierarquia das qualificações e se resignam com mais facilidade ao abandono.

Incluindo uma análise comparativa com alunos autóctones, Teresa Seabra (2010) conclui, a partir da observação das aspirações de futuro de 837 alunos do 2º ciclo de escolaridade (369 descendentes de imigrantes), que as orientações de ambos se aproximam, ou são superadas pelos descendentes, nas mesmas condições sociais, sugerindo que a classe social é mais forte do que a etnicidade. As aspirações escolares e a relação de conformidade com as normas escolares apresentam um poder explicativo significativo, paralelo ao das condições de vida e processos familiares, na fabricação do sucesso escolar. Noutro trabalho, Seabra e a sua equipa analisam, entre outras dimensões, os processos de projecção individual de 220 alunos do 9º ano de escolaridade, entre os quais 73 descendentes de imigrantes, em duas escolas da

área metropolitana de Lisboa (Seabra e outros, 2011).106 A análise comparativa com os pares autóctones permitiu aferir que os descendentes apresentam aspirações escolares e profissionais mais elevadas mas também menos precisas; e expetativas escolares e profissionais similares; que variam sobretudo de acordo com a experiência escolar anterior (por sua vez associada à classe social e escolaridade dos progenitores) e com o sexo, já que as raparigas apresentam aspirações mais elevadas.

Por fim, registam-se estudos de caráter mais restrito, como o de Santos (2004), que destaca a dimensão aspiracional ao estudar os processos de socialização de crianças de origem africana de bairros da periferia de Lisboa, assinalando a desvalorização social das actividades/profissões que dominam nos seus contextos familiares. A autora encontra indícios de expetativas de ascensão social, muitas vezes acompanhadas de uma antevisão dos obstáculos que impedirão a sua concretização, devido à sua condição social desfavorecida.

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Sumariamente, identificaram-se os factores sociais que impactam nas orientações prefigurativas escolares e profissionais dos jovens, revelando constelações de factores macro, meso e micro que incluem dimensões escolares, socioeconómicas e culturais, relacionais, e individuais. O conhecimento já consolidado, embora nem sempre consensual, sobre os descendentes de imigrantes, aponta para algumas especificidades, como as elevadas aspirações, uma maior indefinição nas orientações, e para uma ação mais complexa do papel mediador das variáveis de background social. É deste ponto de chegada, informado e sistematizado depois de abertas tantas janelas de perspectiva, que partimos de novo, agora para a investigação e análise das orientações prefigurativas concretas de um conjunto alargado de jovens portugueses, alunos do 9º ano de escolaridade, diferenciados quanto à origem étnico-nacional.

106 Utilizando uma subamostra do inquérito ITEOP - Inquérito às Trajetórias Escolares e Orientações Profissionais, fonte utilizada nesta dissertação.