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3.   Ampliando os planos de focagem: matrizes e contextos de socialização e de participação 85 

3.2. Os processos de escolarização como lugares de produção e reprodução social

O capital educativo é central para os processos de mudança e progresso das sociedades contemporâneas, onde o desenvolvimento económico se encontra em estreita articulação com conhecimento, capacidades, competências e aprendizagem. Um número crescente de interações e participações sociais é mediado pela utilização de competências adquiridas através dos processos de escolarização e qualificação.64 Estes processos desempenham um papel nuclear na construção biográfica, quer pela sua ação emancipadora, quer pela sua ausência vulnerabilizante, que reconfigura formas de exclusão (Ávila, 2008). São ainda vias fundamentais de fabricação dos indivíduos, de posicionamento, projecção e mobilidade social. Ou seja, convocando ecleticamente alguns dos contributos que se cruzam na sua sociologia, são espaços de produção e de reprodução social, promovendo a reprodução das desigualdades sociais ou das estruturas existentes (Bourdieu, 1966; Bourdieu e Champagne, 1992; Bourdieu e Passeron, 1964, 1970), tal como de ponderação, eleição e ação estratégica (Boudon, 1981 e 2003; Boudon, Bulle e Cherkaoui, 2001), ou de autonomia, autodescoberta e reflexividade (Beck e Beck-Gernsheim, 2003).65 Os processos de escolarização são fundamentais para compreender orientações prefigurativas como as aspirações, as expetativas e os projetos de futuro. As configurações dos sistemas institucionais, as suas dinâmicas, e os quadros de experiência que promovem, viabilizam ou limitam, estão intrinsecamente relacionadas com o potencial de projecção individual.

64 Não sem tensões, anacronias e desfasamentos entre as práticas e retóricas das instituições escolares e as exigências sociais e laborais ou entre a qualificação e a diferenciação, como apontam, entre outros, Madureira Pinto (2008) ou Walther e outros (2002).

65 Para um exame diacrónico das teses educativas e das desigualdades escolares ver Sebastião (2009), Seabra (2009), Duru-Bellat (2002), Duru-Bellat e Zanten (1999).

Na experiência dos mais jovens, as escolas são lugares de possibilidade, impondo-se como um programa institucional de socialização decisivo. Constituem, por isso, parte fundamental da diversificação dos repertórios culturais que caraterizam a juventude contemporânea, espaços de emancipação, negociação, onde o lúdico e o esforço, o voluntarismo e o compulsivo, se imbricam de forma intensa, configuradora de problemáticas e fenómenos como a alunização da juventude, a juventização da escola ou a escolarização dos tempos livres.

O veredicto escolar assume, na actualidade, um peso inédito no processo de individuação, na representação de si e na circunscrição dos futuros pessoais e a "trajetória escolar, generalizada, confunde-se com a própria construção biográfica do jovem" (Vieira, 2010: 278). Martucelli defende que a escola inscreve nos indivíduos uma "confiança institucional em si" (2006: 45), reescrevendo as experiências anteriores, através da ação de confirmação, infirmação, dúvida, certificação ou aniquilamento das avaliações escolares. A crescente importância conferida aos diplomas escolares no mercado de trabalho, com impactos subsequentes na definição dos destinos sociais e profissionais (Diogo, 2008), está associada à expansão escolar que ocorre em Portugal na segunda metade do séc. XX. Esta é ainda resultante de uma lógica global, já que, como afirmam Costa e outros, os graus de escolaridade, não sendo o único recurso distribuído desigualmente nas sociedades contemporâneas, mas um dos que mais impacte tem provocado nas reconfigurações do espaço social, são um dos domínios onde se nota mais claramente "quer a importância crescente dos processos transversais, que hoje ocorrem a nível mundial, em contexto de globalização, quer a persistência das diferenças nacionais, se bem que elas próprias em transformação" (2000: 31).

A democratização do acesso ao ensino registou nas últimas décadas, nomeadamente no contexto português, uma evolução considerável (Almeida e Vieira, 2006; Costa e outros, 2000; Grácio, 1997; Sebastião, 1998 e 2009). Mas os resultados alcançados dentro do sistema, o princípio de igualdade de oportunidades promovido pelo mesmo, tal como a qualidade dos percursos oferecidos, dos recursos materiais e organizacionais disponíveis, continuam fortemente marcados e limitados por princípios de diferenciação social e cultural como a classe social, a etnicidade e o género. A estes somam-se outros factores de diferenciação, como o estilo educativo das famílias e os seus modos de relação com a escola ou os padrões de concentração/dispersão territorial. O sucesso escolar vai estruturar-se no cruzamento de factores individuais, sociais e institucionais. Estes não são igualmente relevantes para a experiência educativa, variando segundo as condições específicas de cada grupo – os recursos

culturais, económicos e simbólicos mobilizados e a forma como estes são percepcionados na escola e na sociedade em geral.

A massificação e a democratização do ensino são domínios amplamente debatidos e observados na sociologia da educação portuguesa, que assinala as dinâmicas sociais de transformação da realidade educativa em Portugal e a posição portuguesa no contexto europeu e internacional (Azevedo, 2000; Costa e outros, 2000; Martins, 2005 e 2012; Sebastião, 1998 e 2009). Revela a chegada tardia à experiência de modernidade, que se faz ainda hoje sentir na "posição contrastante" que Portugal ocupa no contexto europeu (Martins, 2005). O processo de democratização, com notáveis avanços nos indicadores de acesso, progrediu marcado por tendências contraditórias: a aceleração dos ritmos e dinâmicas de qualificação da sociedade portuguesa (Ávila, 2008; Costa e outros, 2000) em simultâneo com a lentidão, selectividade e afunilamento, taxas de conclusão baixas e dificuldade em incluir os alunos mais desprovidos de capitais, em conjugação com uma retração demográfica significativa (Sebastião, 2009).

A expansão reconfigura estruturas, amplifica ofertas, diversifica públicos e afecta o quadro de experiências subjectivas associadas ao processo de escolarização, a que a sociologia portuguesa dedica espaço, mantendo, porém, o seu olhar focado na análise do sucesso, insucesso e abandono e na manutenção da produção e reprodução de processos de desigualdade social e escolar que se perpetuam e renovam.66 Na produção nacional encontramos ainda o destrinçar das condições e implicações dos processos de transição entre ciclos de ensino, de reconfiguração, selecção e orientação nas vias que o constituem tal como a renovação dos olhares sobre a transição para um ensino superior de acesso progressivo e onde se regista uma dinâmica de alargamento da base social de recrutamento, mais heterogénea e com uma feminização notável.67 A tensão entre os ritmos biográficos baseados na exploração e os

66 Para a análise das experiências subjectivas contribuíram Abrantes (2003), Lopes (1996), Quaresma (2012) e, mais recentemente, Quaresma, Abrantes e Lopes (2012). Sobre o sucesso, insucesso e abandono destacam-se os trabalhos de Ferrão e Honório (2000), Martins (2005) e Sebastião (1998). A produção e reprodução de processos de desigualdade social e escolar são observados em Alves e Canário (2004), Benavente e outros (1994), Campos e Mateus (2001) Canário, Natália e Rolo (2001), Grácio (1997), Seabra (2009) e Sebastião (1998 e 2009).

67 Sobre os processos de transição ver Abrantes (2008), sobre os processos de orientação destacamos Azevedo (1990 e 1991), Dionísio (2009), Mateus, (2002), Silva (1999) e Vieira, Pappámikail e Nunes (2012). Relativamente ao ensino superior ver Costa e Lopes (2008), Martins e Campos (2005), Mauritti e Martins (2007), Vieira (2007); e sobre a transição para o trabalho salientam-se Alves (1998, 2006 e 2008), Alves (2007), Azevedo (1999), Azevedo e Fonseca (2006) e Saúde (2010).

calendários institucionais que impõem decisões compulsivas, e o estudo da individualização adolescente no confronto entre estas duas temporalidades, também nesta ocupam lugar (Vieira, 2007 e 2010). Vieira, Pappámikail e Nunes (2012) observaram a linearidade, o sucesso, a temporalidade biográfica e institucional que marcam os percursos escolares no ensino secundário. O estudo indicia a prevalência do ritmo escolar, mas evidencia também, ainda que de forma muito residual, percursos exploratórios, onde a rejeição da temporalidade escolar não se confunde com falta de empenho escolar, próximos de padrões de maior complexidade transacional e escolha biográfica.

Em suma, são assinaláveis os progressos realizados na qualificação dos mais jovens, na diminuição dos níveis de abandono no ensino básico e secundário, bem como na articulação entre os subsistemas de educação e formação. Mas persistem fenómenos de insucesso, como os que são ilustrados pelo desfasamento etário na frequência dos alunos, transversal a todos os níveis de ensino (CNE, 2011). A relação difícil da sociedade portuguesa com a escolaridade e os saberes letrados, que referia Sebastião em 1998, apresenta sinais claros de conciliação, mas mantém, ainda, espaços de evolução na direcção de desígnios tantas vezes reiterados e por cumprir (Almeida e Vieira, 2006). Como afirma Seabra na conclusão de uma ampla revisão da articulação entre desigualdades escolares e desigualdades sociais:

"se é verdade que a escola tem um papel limitado no esbatimento das desigualdades sociais, podendo mesmo exercer uma influência negativa, ela, simultaneamente, permanece no centro da integração. A escola não muda a sociedade, como inicialmente se supôs, mas isso não significa que não constitua o contexto social com maiores probabilidades de concretizar alguma mobilidade social" (2009: 43).

Afirmação que assume particular pertinência quando nos detemos na experiência dos descendentes de imigrantes.

3.3. Perspetivas recentes sobre o sucesso escolar dos alunos descendentes