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4.   De regresso ao plano fechado: orientações para o futuro 123 

4.2. Orientações prefigurativas: projetos, aspirações e expetativas

Se a ação decorre de um processo de decisão onde se articulam experiências passadas, circunstâncias presentes e futuros antecipados, como equacionar esta presença do tempo futuro no presente decisional? A produção sociológica tem procurado responder a esta questão a partir de um conjunto de conceitos que podemos englobar genericamente sob a designação de orientações prefigurativas (Morgan, 2006), e que articulam de modo diferenciado os horizontes temporais, os graus de tangibilidade, exequibilidade e potencial para a ação. Considera-se que são formas de adaptação (Dubet, 1973), críticas na compreensão das identidades, dos valores, tal como dos regimes institucionais e das estruturas de oportunidades (Devadason, 2008).

Quando situadas na experiência educativa, estas orientações objetificam de que forma as escolhas escolares se configuram, e quais os seus impactos na construção dos trajetos individuais. O sistema de ensino funciona como um espelho "estruturado e estruturante no qual o jovem aprenderá a ver-se, e assim a representar de um certo modo o seu futuro em geral, aquilo que sabe, aquilo que pode aprender e aquilo que pode fazer" (Guichard, 1993: 143). Como afirmam Pinto e Queirós (1990: 137),

"aos saberes (pela natureza do seu próprio processo de transmissão) e aos títulos escolares (pelo efeito de codificação e legitimação formal que lhes é intrínseco) estão associados, sempre, conjuntos de disposições e de operadores simbólico-ideológicos que configuram formas de consciência, aspirações e perspectivas sobre o devir social".

As orientações prefigurativas marcam presença em correntes de investigação assentes nas estruturas de oportunidade e nos quadros de interação, como os que circunscrevem os contextos e condicionalismos em que as orientações emergem (Andres e outros, 2007; Brannen e Nilsen, 2002; Furlong e Cartmel, 1997; St. Clair e Benjamin, 2011), nomeadamente em contextos de vulnerabilidade social (Shildrick e MacDonald, 2007). Mas são também parte integrante dos estudos sobre as transições para a adultez, que perspetivam a autonomia e agência como facilitadas ou constrangidas por factores socioestruturais (Guerreiro e Abrantes, 2004; Thomson e Holland, 2002). Iremos percorrer algumas das figuras concetuais que estas

orientações assumem. A literatura destaca que estão embebidas não só nas noções de tempo e espaço, mas também nas estruturas de diferenciação e experiência social, como a classe, ou o género. As atitudes face ao futuro são, em grande medida, expressão do sistema de valores implícitos ou explícitos decorrentes das pertenças sociais. Estes conceitos entrecruzam-se, estão incorporados, decorrem e geram, cultura e identidade. Mas terão a mesma relação com a etnicidade?

Sabemos que as crianças constroem com alguma precocidade atitudes e valores sobre uma variedade de objetos, nomeadamente profissões e, mesmo que o conhecimento que está na base destas construções seja ainda instável, elas constituem a fundação do desenvolvimento disposicional futuro (Saha, 1997). A variabilidade e evolução das orientações prefigurativas na infância, no início da adolescência e na adolescência tardia são um adquirido estável. As intenções expressas entre os 11/12 anos reenviam para uma "ficção profissional", para profissões prestigiantes idealizadas, ainda independentes dos contextos profissionais familiares; que evoluem mais tarde, entre os 15 e os 16 anos, do mito para a norma, do espaço dos possíveis para o espaço dos prováveis, incorporando progressivamente os resultados do trajeto escolar e aproximando-se (ou distanciando-se) das orientações familiares (Dumora, 2004). A adolescência é, por seu turno, um tempo de imaginação e cogitação sobre a vida futura. Planear o futuro traz ao mundo social do jovem um sentido de ordem, uma regulação das ações, uma mobilização dos recursos pessoais e uma legitimação do esforço (Schneider e Stevenson, 1999).

Os jovens são, assim, "aspiracionais, com a capacidade de exercitar a sua agência negociando as condições estruturais em que vivem" (Winterton e outros, 2010: 5). A capacidade "aspiracional", da mesma forma que a "projetual", são recursos detidos, ou exercitados, desigualmente pelos indivíduos, como demonstra Bourdieu ao distinguir as antecipações pré-reflexivas (práticas, automáticas) dos planos e projetos (reflexivos), recorrendo à metáfora do jogador de ténis (1998). A relação com o futuro pode, assim, ter amplitudes e gradações de reflexividade diversas, dependendo do quadro de ação considerado. Da mesma forma, afirma Bauman, cada sociedade coloca limites às estratégias de vida que podem ser imaginadas e, sobretudo, àquelas que podem ser praticadas (1996). Kaufmann (2003) inscreve estas orientações numa "socialização imaginária", uma espécie de:

"'pequeno cinema' [em que] somos, ao mesmo tempo, actores e realizadores das sequências que desfilam no nosso universo interior (…) [em que] o trabalho ficcional mistura vários tipos de argumentos (…) [e] a tipologia básica parte do real, presente ou passado" (232-233).

Elas nascem assim de uma experimentação ficcional em que o indivíduo improvisa papéis imaginários, testando virtualmente contextos de socialização, num processo de transformação do sonho em projeto. Nem todos os projetos nascerão do sonho – poderão emergir das circunstâncias imediatas ou de um cálculo mais analítico e racional. Mas apenas o trabalho ficcional, segundo este autor, poderá impulsionar as verdadeiras rupturas, sobretudo num quadro como o contemporâneo, democrático, de intimidação para a escolha e opção, em que "a pluralidade interiorizada e a multiplicação dos papéis possíveis implicam uma intensificação da auto-regulação subjectiva" (idem, 276).

A imaginação de sentido projetivo pode, então, ser desencadeadora da ação – ao contrário da fantasia, que tende a dissipar-se, como defende Appadurai (1996). Ambas são alimentadas nos novos e críticos espaços transversais – aquilo que o autor chama landscapes, em sociedades culturalmente globais. Nos sistemas culturais complexos que definem a actualidade, caraterizados por um surplus simbólico, os mundos de possibilidades expandem- se para além dos cursos de ação realizáveis. Esta "dilatação das possibilidades", nomeadamente escolares, associada a um mercado de trabalho em compressão, pode, porém, segundo alguns autores, gerar expetativas impossíveis de realizar e acentuar processos de fragmentação e desancoragem social.95

Muitas investigações têm sido realizadas sobre as orientações prefigurativas dos jovens e sua influência nos resultados subsequentes, incluindo os seus determinantes, as suas consequências e as latitudes dos horizontes onde se inscrevem.96 Delas resulta, de forma consensual, que o conteúdo dos sonhos dos adolescentes mudou nas últimas décadas. Estaremos, porventura, perante a geração mais ambiciosa de sempre.97 Este aumento significativo é transversal, não se confinando a um grupo particular de jovens. De acordo com

95 Risco salientado por autores como Croll (2008), Pinto (1991a), Reynolds e outros (2006) ou Schneider e Stevenson (1999).

96 Sobre este último aspecto, as latitudes, salienta-se um conjunto de terminologias, onde se incluem expressões como "campo de experiência" e "horizonte de espera", aludindo à circunscrição de figuras de compromisso para construir, manifestar ou escolher acordos mais ou menos duráveis (Nachi, 2007), "horizontes de ação" (Hodkinson e Sparkes, 1997), a arena onde as ações podem ser realizadas e as decisões tomadas, ou "campo de possibilidades", conjunto específico de possibilidades socioculturais (Velho, 1994), entre outros.

97 Este aumento das ambições escolares e profissionais é um padrão recorrente, observado internacionalmente, atribuído a tendências globais e macroculturais (entre outros, Baird, Burge e Reynolds, 2008; Croll, 2008; Goyette, 2008; Kao e Thompson, 2003; Kao e Tienda, 1998; Reynolds e outros, 2006; Schneider e Stevenson, 1999; Sikora e Saha, 2007).

algumas perspectivas, este aumento suaviza, embora não anule, o seu caráter socialmente contingente e preditivo. Os modelos de análise das aspirações desenvolvidos nos anos setenta, época em que se registavam níveis de ambição mais variáveis, dificilmente poderão, segundo alguns autores, ser adequados à realidade contemporânea, onde se constata uma hegemonia de altas aspirações, paradoxal face à fragmentação do mercado de trabalho (Reynolds e outros, 2006). Mas outros autores, como Goyette (2008) ou Winterton e Irwin (2012), registam, na actualidade mais do que no passado, um condicionamento maior do background social e parental nas expetativas.

Das múltiplas figuras que surgem na literatura relativas às orientações prefigurativas, que de resto se confundem, e são muitas vezes usadas de forma intercambiável, destacam-se os projetos, os sonhos, esperanças e planos, as aspirações e as expetativas.

O projeto vai emergir no espaço intercalar em que se cruzam, segundo Breviglieri (2007), o próximo (as regiões lúdicas da infância) e o público, e que permite uma afirmação gradual da capacidade de inscrição no espaço público. O conceito será talvez, neste sentido, o mais abrangente, uma espécie de grande chapéu onde se articulam dialécticas sociais, temporais e espaciais, dimensões individuais e sociais, da autonomia e do constrangimento (Miche, 2009). Trata-se de uma noção contemporânea, que encerra em si a capacidade de autorrealização do homem, inscrevendo-se numa filosofia da ação, e numa certa concepção do tempo (Boutinet, 1990; Dubet, 1973; Guichard, 1993). Schutz (1979) evidencia o projeto como unidade de ação, limitado e moldado por tipificações a partir das experiências passadas, mas situado num horizonte de possibilidade indeterminada, que alimenta a imaginação e o processo projetivo. Gilberto Velho (1987, 1994), partindo da definição anterior, alega que este é uma forma de organização de meios a partir de uma trajetória antecipada, visualizada e desejada, "naturalizada" nas sociedades industriais individualizadas, onde responde à necessidade de organização de uma experiência fragmentada. O conjunto de ideias que constitui o projeto e a conduta estão sempre referidos a outros projetos e condutas localizáveis no tempo e no espaço, e embebidos na natureza e no grau maior ou menor de abertura ou fechamento das redes sociais em que os actores estão incorporados (Velho, 1987). Trata-se de um conceito enraizado do ponto de vista socio-histórico: a modernidade é uma era caraterizada por uma profusão de condutas antecipadoras, onde o projeto é uma necessidade generalizada (Boutinet, 1990).

Os projetos emergem da confrontação entre as representações da escolaridade, das profissões, e de si, sendo que as possibilidades de escolha consideradas correspondem a imagens possíveis e desejadas. A consideração não é feita sobre todas as possibilidades existentes, já que o jovem só poderá explorar aquelas sobre as quais tem conhecimento, mesmo

que superficial; e uma atenção maior será dispensada às que são familiares, orientações contactadas no meio de origem, nas redes de pertença, ou através dos media. Os determinantes sociais ganham por isso uma redobrada importância, já que os jovens de meios populares conhecem menos profissões prestigiadas, valorizam-nas menos e atribuem a si próprios menos competências para as desempenhar (Huteau, 1992).

O projeto implica, por um lado, uma avaliação, uma estratégia, um plano para realizar certas metas, uma noção de tempo com etapas de encadeamento, uma selecção em função das experiências, necessidades e estratégias particulares, o que nos remete para a dimensão individual da ação. Por outro lado, pressupõe a manipulação de um conjunto de símbolos existentes culturalmente, a ação a partir de possibilidades socioculturais determinadas, um campo de possibilidades, dimensão social da escolha individual (Velho, 1994). Na mesma linha, Guichard (1993) concebe o projeto como uma reinterpretação e uma releitura do passado e do presente através da projecção no futuro, tempo em que os dois primeiros ganham sentido. Mische (2009), defensora de uma "sociologia do futuro" assente na projetividade, assinala por seu turno um conjunto de dimensões sociais observáveis através do projeto: o alcance, a amplitude, a clareza, a percepção de contingência, de expansibilidade, a volição, a sociabilidade implícita, a conetividade e o perfil. Os investigadores tendem a organizar e hierarquizar os projetos (e as orientações de futuro em geral) de acordo com dimensões deste tipo, sobretudo as de alcance e amplitude.

Bourdieu distingue "projeto", relação com o futuro – possível de ser construído como tal, que pode ou não acontecer; e "protensão" ou antecipação pré-percetiva ao futuro quase presente, indução prática fundada na experiência anterior, que é posteriormente apreendida como projeto organizado e coerente (1998). O projeto visa um fim escolhido entre vários, carateriza-se pela contingência; inscreve-se na ordem do consciente, da ação pensada, e é formado pela representação (Vorstellung), pela intenção (Absicht), e pela inerente abstração. Salienta ainda a relação entre as aspirações e o poder detido pelo agente. Há um limite na existência de oportunidades objetivas abaixo do qual as disposições de futuro não podem constituir-se (Bourdieu, 1998).

Segundo Archer, os projetos são uma iniciativa agencial, o produto da relação de uma realização com os constrangimentos ou possibilitações que a obstruem ou permitem. Decorrem da intencionalidade humana para antecipar, construir e prosseguir cursos de ação, envolvendo "um fim que é desejado, tentativamente ou nebulosamente, e ainda alguma noção, mesmo que imprecisa, do curso de ação através do qual pode atingi-lo" (2003: 6). Os graus de liberdade possuídos para determinar os cursos de ação podem variar. Os indivíduos diagnosticam a sua

situação, identificam os seus interesses e desenham projetos que lhes parecem apropriados para atingir os seus fins. A especificação progressiva dos cursos de ação segue a trajetória "preocupações→projetos→práticas" e é realizada nas deliberações internas, mediando os condicionamentos sociais. Não decisões são, nesta acepção, também cursos de ação, ou seja, não construir uma orientação prefigurativa é também uma resposta agencial.

Em contexto de modernidade tardia, os projetos são ainda uma espécie de corolário de autonomia individual, erigidos institucionalmente. Giddens (2001) formula o projeto como trabalho reflexivo de constituição permanente do self, através da manutenção de narrativas biográficas coerentes. Assume-o por isso como traço central da estruturação da auto- identidade, retroalimentado pelos sistemas abstractos e periciais. Este exercício integra continuamente elementos exteriores e inscreve-se e organiza-se sobre um leque de possíveis modos de vida. A construção reflexiva da identidade pessoal depende tanto da preparação do futuro como da interpretação do passado. A necessidade de controlar o tempo pode gerar resistências, deslocações temporais, tal como tentativas de arrastamento do futuro para o presente. Vieira afirma, neste sentido, que:

"A capacidade de o indivíduo se auto-produzir e, por isso, se projetar reflexivamente, dotando-se de um projeto (de vida, de futuro) que dê sentido à sua biografia revela-se, justamente, como desígnio institucional crucial: o projeto constitui prova dessa gestão autónoma de si e representa o culminar bem sucedido do trabalho socializador exercido sobre o outro" (2010: 269).

O projeto apresenta-se ainda marcado pelo aumento da incerteza que carateriza a contemporaneidade. Bois-Reymond (1998) descreve os projetos como futuros desejáveis, nunca totalmente realizáveis numa época de redução extrema de previsibilidade das ações e desenvolvimentos, em constante mudança e adaptação. O tempo actual será assim não do projeto, mas do "projeto parcial", uma composição de valores, expetativas e atitudes orientadas para áreas da vida que dizem respeito ao presente e ao futuro, eventualmente relacionados entre si (numa posição que se articula com a discussão em torno da impossibilidade do planeamento dos cursos de vida, como veremos).

Outros estudos que se debruçam sobre as orientações prefigurativas distinguem os sonhos, as esperanças e os planos, diferenciando-os pelo horizonte temporal, possibilidades de ação e de controlo dessa ação, tangibilidade e grau de compromisso (Nilsen, 1999). Os sonhos são uma forma ideacional com elevado grau de abstração, constituída por imagens agradáveis com qualidades imaginativas. Não têm uma circunscrição temporal (esta é vaga, expressa na ideia de "um dia…"), e não exigem qualquer grau de compromisso ou realismo. As esperanças são

sonhos com um grau maior de resolução, localizados no domínio do possível, revestidos por alguns aspectos de concretude, e muitas vezes ligados a um evento definido e previsto no futuro, mas situados para além do controlo dos sujeitos. Os planos (equacionados como planeamento de vida, life plans, ou life-planning) distinguem-se por terem um horizonte temporal definido, e expressam-se normalmente por referência a algo em relação ao qual o sujeito sente algum grau de controlo. A sua ligação aos cursos de ação pessoais, a eventos concretos e a informações factuais posiciona-os como projecções de curto prazo, ou "orientações para um presente estendido" (Brannen e Nilsen, 2002, 2005 e 2007; Devadason, 2008; Nilsen, 1999).

A noção de vida como um projeto planeado é mais adequada, por parte destes autores, para perspectivas de longo curso embebidas em tradições coletivistas e conformistas, e menos para as novas biografias baseadas na escolha individual, emergentes em situações de "futuros em espera" (Brannen e Nilsen, 2002), e marcadas pela incerteza biográfica (Leccardi, 2005a e 2005b; Pais, 2003; Reiter, 2003). É também neste sentido a proposta de Pais (2003) quando enfatiza os constrangimentos contemporâneos ao planeamento, ou a "desfuturização do futuro".98 Outras perspectivas questionam, no entanto, esta posição, alegando que esta discussão está pouco fundamentada, parecendo "basear-se na intuição, plausibilidade, ou em dados decorrentes de grupos da população fragmentados ou muito pouco representativos" (Anderson e outros, 2005: 141). O estudo de Anderson, centrado na perspectiva temporal e no nível de detalhe dos planos dos jovens adultos na Escócia, contrapõe, em alternativa, um cenário de reflexividade acrescida. O papel conferido ao risco e à incerteza na definição das orientações de futuro diferencia-se nestas duas perspectivas: a primeira imputa-lhe um papel constrangedor e limitador das concepções temporais individuais em contexto de pós- modernidade (como vimos no capítulo 3); a segunda, pelo contrário, não considera que as orientações temporais sejam afetadas pelo risco, privilegiando a autonomia e sensação de controlo individual no planeamento da vida (mesmo que ilusórias, relembrando Furlong e Cartmel, 1997).

Esta oposição vai marcar a produção científica sobre as demais orientações prefigurativas, nomeadamente as aspirações. Estas orientações, multidimensionais, multifacetadas e

98 Pais (2003) distingue entre processos de utopização – o "futuro aberto ou imaginado" (atitude optimista de espera) –, de atopização, como o "futuro reduzido à ordinariedade" (centramento no presente quotidiano) ou o "futuro ausente" (ausência de sentido de um futuro).

socialmente embebidas, são observadas como capacidades culturais, e permitem compreender de que forma os indivíduos navegam nos seus espaços sociais (Appadurai, 2004). Dão ainda sentido à experiência quotidiana, funcionando como um compasso que traça cursos de vida e direcciona tempo e energia. A sua força motivacional foi reconhecida ainda nos anos 30 do século passado no âmbito da psicologia social (Sikora e Saha, 2011).99 As aspirações – reflexo do desejável – e as expetativas – o que é razoável ou provável como objetivo – são, na perspectiva da psicologia social, formas de atitude; designam uma leitura para agir tendo em vista um objetivo (Saha, 1997). Considera-se que têm caraterísticas preditivas, significância no trajeto de vida, influenciando escolhas, e tornando-se muitas vezes profecias que se autorrealizam.

A literatura sociológica enraíza a sua emergência nas estruturas e nos contextos. Na primeira perspectiva, as aspirações são ora uma avaliação racional de custos e benefícios de ações possíveis (Boudon, 2003), ora a expressão de um conjunto de possíveis, determinado estruturalmente. St. Clair e Benjamim (2011) salientam o seu caráter inerentemente performativo, de resposta a um quadro de influências sociais. Madureira Pinto (1991a) relembra que o processo de elaboração de aspirações sociais é estruturado e interiorizado através da relação ideológica entre um conjunto de futuros profissionais possíveis e as probabilidades de acesso condicionadas consoante as origens e as trajetórias sociais. Trata-se de uma posição próxima a Bourdieu, para quem as aspirações, repartidas desigualmente, são parte das estruturas disposicionais através das quais os indivíduos incorporam as estruturas sociais. E que conferem conhecimento prático, permitindo, em função da experiência anterior e das possibilidades inscritas no presente (onde a oferta educativa e seu impacto para a mobilidade social é considerada), os provires prováveis, e as antecipações "razoáveis" ou grosseiras, às oportunidades objetivas: "o que depende de mim e o que não depende, o que é ‘para mim’ ou ‘para mim, não’, ou ‘não para pessoas como eu’, o que é ‘razoável’, para mim, fazer, esperar, reclamar" (Bourdieu, 1998: 115).

No âmbito escolar, as aspirações espelham uma definição social do razoavelmente acessível, ou a internalização de probabilidades objetivas de sucesso (Bourdieu, 1966; Bourdieu e Passeron, 1970). Os agentes sociais estão condicionados não só pelas condições de

99 Nos anos 50, na mesma disciplina, iniciou-se a distinção entre aspirações e expetativas, consideradas mais "realistas" e reveladoras dos constrangimentos sociais experienciados pelos indivíduos. Nos anos 70, os dois conceitos tornaram-se variáveis centrais na análise e interpretação dos padrões de construção das carreiras profissionais e da transmissão intergeracional da desigualdade social (Sikora e Saha, 2011).

existência, como pelas intervenções educativas da família, do grupo de pares e dos agentes escolares, que visam "favorecer o ajustamento das aspirações às oportunidades, das necessidades às possibilidades, a antecipação e a aceitação dos limites visíveis ou invisíveis, explícitos ou tácitos" (Bourdieu, 1998: 195), através de "chamadas à ordem". Fatores como o acesso generalizado à educação geram, no entanto, novos espaços de ação, desfasamentos, tensões, e situações de desajustamento.

Na segunda perspectiva, do lado das correntes mais interacionistas e contextualistas, as aspirações são interpretadas como o produto de um conjunto de relações complexas, interpessoais e coletivas, e da negociação de exigências, necessidades e desejos concorrentes (Wright, Standen e Patel, 2010). Segundo Appadurai (2004), as aspirações nunca são simplesmente individuais, são sempre relacionais, formadas na "espessura da vida social" e nos mapas de ideias e crenças prevalecentes (idem: 67-68). A capacidade de aspirar – uma capacidade cultural complexa, navegacional, assente na prática, repetição, exploração, conjetura e refutação – não é um recurso equitativamente distribuído, tratando-se antes de uma meta-capacidade que estará mais desenvolvida nos segmentos sociais privilegiados, detentores