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1.   Descendentes de imigrantes: lentes e planos médios de observação 7 

1.1.2. Identidades e alteridades

"– Tu és parisiense? – Sim. Nasci em Paris. A minha mãe é francesa e o meu pai é chinês. – E estás aqui como representante da França? – Sim. – E sentes-te francesa? – Sim. Quer dizer, é complicado. Consigo perceber perfeitamente os dois pontos de vista: a visão ocidental da minha mãe e a oriental do meu pai. É difícil escolher uma".12

Intrinsecamente ligado à cultura encontra-se o conceito de identidade. É constituinte da arquitectura individual, consubstanciando-se no self, transitando, no argumentário teórico, de papéis estatutários predefinidos para formas mais opcionais e reflexivas. Assume um perfil

12 Diálogo com jovem participante na "15TH ASEF University Migration and Multi-Cultural Societies: Opportunities and Challenges", durante um programa social, na Coreia do Sul (notas pessoais, 3.07.2009).

individual, coletivo, social e cultural, com fronteiras permeáveis e pouco claras. A ideia de identidade coletiva é, de resto, um constructo da sociologia clássica, remetendo para caraterísticas como a similaridade e a partilha de atributos e qualidades internalizados entre membros de um mesmo grupo.

Tal como o conceito de cultura, assume a forma de propriedade, de substância e de processo, embora tenha uma história mais recente e um percurso mais acelerado. O caráter processual é-lhe assinalado já nos anos 30, por George Mead (1972), e o conceito chega aos nossos dias, no campo sociológico, imbuído de complexidade, transitoriedade e dinâmica. Do ponto de vista heurístico, trata-se de um instrumento de banda larga para a análise de um conjunto variado de fenómenos, das "autoconceções individuais às pertenças nacionais partilhadas, e das efémeras apresentações na interação social até às adscrições fixas enraizadas na estrutura social" (Westin, 2010: 34). A amplitude e ambivalência dos processos que através dele se observam suscitam qualificações críticas: trata-se um conceito "polimorfo e bulímico" (Dubar, 2000), invasor na produção científica em ciências sociais (Costa, 2002), vulnerável a "excessos de fidelidade e inércia paradigmática" (Pinto, 1991b: 217). Mas constitui, pelo foco nos actores, na ação social e nos processos de natureza simbólica, uma dimensão não dispensável na investigação social interpretativa (Silva, 1996).

Mead lançou as bases para o seu entendimento actual, descrevendo-a de duas formas: através do eu – processo de representação simbólica que o indivíduo tem de si próprio, consciência reflexiva da individualidade; e do mim – atitude de adaptação que o indivíduo tem perante o mundo organizado, a ação segundo as normas dos grupos de pertença, parte da individualidade que é configurada e moldada pela sociedade (1972). Ambas se inter- relacionam, ou seja, há uma ação recíproca, uma negociação intraindividual, que confere processualidade à identidade individual. O conceito foca-se, na actualidade, na leitura do que Kaufmann designa como "eus" de grande amplitude (2003), as configurações identitárias complexas, situadas, individualizadas, agenciais, que revelam "comunidades dentro das comunidades, e culturas através das comunidades" (Baumann, 1996: 10). Segundo Gilberto Velho,

"as pessoas carregam dentro de si próprias experiências e visões do mundo diferentes, contraditórias, não são monolíticas como personalidade social, desempenham papéis múltiplos. (...) o indivíduo não é um ente acabado, nem é um o tempo todo, é muitos, e este "ser muitos" tem a ver com a sua trajetória e com a sua participação em diferentes mundos e diferentes experiências..." (Castro, Oliveira e Ferreira, 2001: 12 e 20).

Na asserção de Dubar, a identidade "é o resultado, tanto estável como provisório, individual e coletivo, subjectivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições" (1991: 111). Ela evoluiu de formas comunitárias (sistemas de lugares e nomes pré-atribuídos aos indivíduos) para formas societárias, que "pressupõem a existência de coletivos múltiplos, variáveis, efémeros, aos quais os indivíduos aderem por períodos limitados" (2000: 5).

O autor distingue dois mecanismos de identificação na sua génese: os atos de atribuição, ou a identidade para os outros, e os atos de pertença, a identidade para si, que se associam, pela mesma ordem, a dois processos: a atribuição da identidade por instituições e agentes em interação, e o processo de interiorização activa, a incorporação da identidade por parte dos indivíduos. Os dois podem não coincidir, gerando transações objetivas (de progressiva adaptação aos sistemas de ação), ou subjectivas, de salvaguarda das identidades prévias. A configuração identitária individual será o compromisso dos processos de transação referidos: o indivíduo transforma-se em "indivíduo-trajetória à conquista da sua identidade pessoal" (1991: 165). Dubar propõe por isso a passagem do termo "identidade" para "formas identitárias", representações ativas construídas pelos indivíduos a partir das suas experiências, discursos e práticas sociais. Estas não são nem estáveis, nem preexistentes aos quadros de socialização onde sobrevieram.

As identidades sociais são construídas em sociedade, através das dinâmicas de interação social, estruturando-se numa série de mecanismos simbólicos e relacionais, nos quais interferem de forma significativa "as atribuições categorizadoras e classificatórias cruzadas de terceiros sobre o próprio e deste sobre si mesmo face aos outros" (Costa, 1999: 498). Têm um caráter transitivo, situacional, contextual e estratégico, e são atravessadas por ambivalências.

Madureira Pinto distingue sincronias e diacronias na produção social das identidades. Nas primeiras vamos encontrar a imbricação de dois processos: identificação (através do qual os actores se integram em coletivos de pertença ou de referência), e identização (pelo qual os actores se distanciam e estabelecem fronteiras mais ou menos rígidas relativamente a coletivos) (1991b). Esta imbricação vai caraterizar-se por uma natureza dupla de "integração e diferenciação, com e contra, por inclusão e por exclusão", reforçando a impureza, o sincretismo e a ambivalência das identidades. Isto porque "a construção de identidades alimenta-se sempre de alteridades (reais ou de referência) e por isso nunca exclui em absoluto conivências e infidelidades recíprocas" (Pinto, 1991b: 219). No plano das diacronias, o autor salienta o facto de as identidades sociais se sustentarem nas trajetórias sociais incorporadas nos indivíduos, tal como na sua posição na estrutura social (e inerentes contextos de socialização e de

sociabilidade), e nos projetos formuláveis. Elas não são apreendidas passivamente, mas são atravessadas por sistemas de legitimação e práticas de poder, por hierarquias de saberes e disposições, internalizadas através de esquemas prático-simbólicos; e mediadas por sistemas de percepção e avaliação incorporados.

A sociologia portuguesa tem dedicado espaço e desenvolvimento à identidade, rejeitando as suas concepções mais essencialistas e reafirmando a sua natureza contingente, mutável e contextual, tal como a sua especificidade relacional e simbólica (Costa, 1999 e 2002; Fernandes, 2008; Pinto, 1991b; Silva, 1996). O essencialismo é uma das derivas associadas à tematização contemporânea das identidades sociais, segundo Augusto Santos Silva, que assinala também a visão estática (invariabilidade dos traços básicos das identidades), o primordialismo (formação e cristalização dos mesmos traços a partir de um "momento genesíaco") e o particularismo (identidades como entidades incomunicantes, fechadas à alteridade) (1996: 32). Inês Pereira reforça o papel da agência na fabricação identitária, ao salientar que o indivíduo, "ponto de interseção único de um conjunto de linhas que se entrecruzam", não apenas as acolhe, mas "elabora o seu próprio percurso sobre as redes em que se encontra, escolhe-as, integra-as, abandona-as" (2002: 119).

A variabilidade assume importância argumentativa, na actualidade. É endereçada por Gerd Baumann, quando diz que "o eixo da estratégia de vida pós-moderna não é a construção da identidade, mas o evitamento da sua fixação" (1996: 24), ou por Zygmunt Bauman, quando afirma que, em vez de identidades adquiridas ou herdadas, deveríamos falar de identificação, provisória, sempre incompleta, inacabada (2001).

O caráter contextual, a alteridade e a sua forte dimensão relacional são igualmente destacados. Na análise do indivíduo singular, autónomo e autêntico da contemporaneidade não podem ficar de fora o "estudo das instituições, dispositivos sociais e configurações de relações de interdependência que contribuem para a produção desse sentimento de singularidade, de autonomia, de interioridade, de identidade de si para si" (Lahire, 2002: 401).

A questão identitária deve por isso ser entendida, segundo Anthias (2001), num eixo onde se cruzam, por um lado, a relacionalidade (relationality) – as fronteiras (categorias como etnicidade, género ou classe implicam diferenciações e limites); e, por outro, as hierarquias (posições sociais diferenciadas, com alocação desigual de recursos e poder). A autora propõe desta forma conceito de posicionalidade na leitura das identidades, espaço de interseção da estrutura (posição social/efeitos sociais) e agência (posicionamento social/significado e prática), e que inclui processos de identificação, mas não se reduz a estes.

A componente dialógica das identidades faz sobressair hierarquias e desigualdades sociais, e providencia narrativas. As histórias individuais ganham desta forma coerência e encaixam numa narrativa mais alargada. Como as identidades são construídas dialogicamente, os indivíduos que partilham caraterísticas subvalorizadas nas hierarquias de poder consideram- nas frequentemente centrais na sua identidade; por vezes, de forma negativa.

Wieviorka define identidade coletiva como o conjunto das referências culturais em que se funda o sentimento de pertença a um grupo ou uma comunidade, real ou imaginária. Este assume grande importância nas sociedades contemporâneas, já que, ao contrário do que acontecia no passado, é consciente, afirmado, e reclamado. As identidades coletivas veiculam recursos simbólicos, e são escolhidas quando providenciam "orientações existenciais (…) – significações culturais, uma ética, uma moral, um modo de vida, uma religião, uma referência, ainda que mítica, a esta ou aquela origem" (2002: 150). Genericamente, a mobilização identitária é uma forma de subjetivação. Mas pode também pode obedecer a imperativos de rutura, reivindicação e autoafirmação particularista, de resposta à desqualificação social. Na mesma linha, Madureira Pinto refere a existência de grupos que "à força de trajetos sociais de declínio específicos, incorporaram operadores prático-simbólicos incompatíveis com autênticas estratégias de reinterpretação", onde poderemos porventura incluir os jovens filhos de imigrantes, já que estes se podem encontrar, "excluídos (por razões objetivas e subjectivas) dos processos mais dinâmicos e mobilizadores de recursos", internalizando "inibições e sentimentos de vergonha cultural que vão sobrepor-se às suas capacidades potenciais de criação e recriação de símbolos" (1991b: 228).

As desigualdades que atravessam o domínio identitário são muitas vezes apresentadas em contraponto aos cenários de intensa reflexividade e hibridação traçados nas teorias da globalização e da pós-modernidade. A ligação íntima entre a reflexividade e a identidade atravessa as perspectivas dos teóricos da modernidade tardia, expressas em noções como o self enquanto projeto reflexivo (Giddens, 2001), identidades hifenizadas (Bhabha, 1994 e 1996) ou hibridação (Bhabha, 1994, Hall, 1990 e 1996). A globalização torna obsoletos os entendimentos anteriores sobre a identidade, redirecionando a observação para as dinâmicas de autenticidade, pulverização, fragmentação, e transitoriedade. Na análise que Hall (1990) faz das identidades diaspóricas caribenhas, sobressaem a complexidade, o jogo inacabado e o caráter dicotómico (nós/eles, passado/presente, diferença/continuidade, produção/ reprodução), numa construção em que as fronteiras se vão delimitando por relação com pontos de referência variáveis. Emergem no jogo de modalidades específicas de poder, e constroem-se através, e

não fora, da diferença; num processo de acomodação, resistência e negociação face às regras normativas e regulativas (idem, 1996).

A hibridação e a reflexividade não podem ser assumidas sem levar em conta os lugares sociais, projetos políticos e divisões sociais que compõem o local (Anthias, 2001). A modernidade não é, neste sentido, apenas "um empolamento de opções", mas também a "origem de crescentes diferenciações – entre quem pode ou não aceder à realização de identidades projetadas" (Machado, 2008: 258). A questão identitária é, por isso, também paradoxal, já que assenta em processos de generalização (é um processo transversal, relacional, partilhado, de alguma forma homogeneizante) e simultaneamente de diferenciação (quando o enfoque recai nos atributos de "outrismo", particularismo e desigualdade, e na ampliação do conjunto de modalidades intermédias disponíveis) (Colombo, 2010; Costa, 2002; Dubar, 2000).

Sobretudo entre os jovens, a construção identitária ergue-se numa dinâmica complexa e muitas vezes paradoxal. Apoiando-se em Erikson, Dubar (1991) salienta que a identidade não se reproduz mecanicamente entre gerações, ela é construída com base nas posições herdadas mas reconstruída activamente pelo individuo no quadro institucional em que se insere. Não se reduz a uma interiorização passiva e mecânica das identidades herdadas, do conjunto das caraterísticas ligadas à nascença ou dos papéis estatutários predefinidos. Pelo contrário, conquista-se reagindo aos mesmos, através de distanciamentos e rupturas que não excluem nem as continuidades, nem as heranças, e que assumem um caráter reflexivo e narrativo (Dubar, 2000). Este desenvolvimento estratégico é tanto mais singular quanto forem diversos os ethos e visões de mundo contrastantes nas redes sociais (Velho, 1987).

A juventude constitui, por excelência, uma etapa de experimentação e ampliação do repertório identitário (Kaufmann, 2003). Na transição da infância para a adolescência, o indivíduo vai ganhando consciência das fronteiras sociais e da sua maior ou menor permeabilidade. Estas são exploradas através de processos de negociação: umas são rejeitadas, outras transformadas, outras ainda internalizadas, em dinâmicas de tradicionalização, retradicionalização e destradicionalização (Østberg, 2003). A liberdade de ligar-se ou desligar- se da herança material e simbólica deixada pela geração anterior é intrínseca ao processo de construção de um si autêntico.

A questão identitária é pertinente na análise dos projetos de futuro dos jovens descendentes de imigrantes, porque a identidade está imbricada na construção biográfica das trajetórias sociais. Ela está incorporada em dois aspectos do processo biográfico: na trajetória objetiva (sequência das posições num ou mais campos de práticas sociais, medida nas posições

objetivas, escolares, profissionais, etc.); e na trajetória subjectiva (a narrativa biográfica individual, passada, presente e prospetiva) (Dubar, 1998). A memória e o projeto estão na base da construção da identidade social, e as visões sobre o passado e as projecções sobre o futuro situam-na, dando significado às ações (Velho, 1994).

De resto, o foco na identidade é uma das caraterísticas da produção sociológica consagrada aos filhos de imigrantes. Os marcadores étnicos serão porventura os mais estudados. A condição de jovem e o legado étnico têm ambos propriedades especificamente problemáticas, num cruzamento que pode exacerbar a sua fragilidade (Breviglieri e Stavo- Dabauge, 2004). Algumas abordagens assinalam uma crise de identidade específica destes jovens, decorrente da passagem de uma "'comunidade diacrónica, vertical, intergeracional, genealógica, étnica' para a 'sociedade sincrónica, horizontal, intrageracional, cidadã'", potencialmente geradora de conflito e, simultaneamente, geradora de espaços para a "construção de si" como pessoa, e de recursos de reinterpretação pessoal das raízes (Dubar, 2000: 189). Mas, para analisar criticamente estas perspectivas e as suas implicações, é necessário lançar um olhar mais aprofundado sobre a etnicidade, e sobre a forma como ela se expressa do ponto de vista identitário, nomeadamente nos grupos etários mais jovens.