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2.   Assimilação e integração: panorâmicas transatlânticas sobre um mesmo objeto 53 

2.3. Estado da arte sobre a produção científica em Portugal

Em Portugal, as primeiras referências no domínio dos descendentes na literatura científica reportam-se, como já foi referido, às experiências dos filhos de emigrantes em França, ainda durante os anos 80 do século passado (Rocha-Trindade, 1986; Villanova, 1983). Será algum tempo depois, já nos anos 90, que os filhos de imigrantes surgem como temática emergente (Baganha e Góis, 1998/1999). A origem desta produção é, desde logo, plural. Por um lado, é suscitada pelo insucesso escolar dos filhos de imigrantes africanos residentes nos territórios mais empobrecidos da periferia de Lisboa, traduzindo-se em abordagens questionadoras das práticas escolares, consideradas pouco atentas às descontinuidades culturais, e defensoras da construção de respostas de âmbito multicultural (Aníbal e outros, 1995; Cardoso, 1996; Cortesão e Stoer, 1996; Paes, 1993; Simões e outros, 1992; Vieira, 1995). Por outro, desvenda a heterogeneidade deste grupo, a sua relação com a história colonial e com as expressões migratórias posteriores e, sobretudo, as especificidades que apresentam face aos seus progenitores (Machado, 1994), abrindo espaço ao desenvolvimento das condições de classe e níveis de escolaridade familiares como explicativos das desvantagens observadas (Seabra, 1999).

A investigação e a publicação intensificam-se durante os anos 2000.48 Numa revisão realizada à produção científica no domínio da imigração e etnicidade em Portugal, entre 2000 e 2008, os descendentes de imigrantes constituíam o tema predominante em apenas 5,6% das 836 referências abrangidas, e era complementado com o tema educação, o qual constituía cerca de 8,5% da publicação (incluindo também os estudos sobre a população cigana) (Machado e Azevedo, 2009). A revisão aponta para lacunas como a invisibilidade de alguns grupos de outros descendentes que não os de origem africana (que são os mais estudados, em particular os filhos de cabo-verdianos), e salienta a forte ligação ao campo educativo.

As abordagens desenvolvidas são qualitativas e quantitativas (apesar destas últimas, dadas as insuficiências estatísticas existentes, nunca envolverem uma amostra representativa nacional), e referem-se à diversidade de origens, ou dedicam-se a uma origem particular, como os descendentes de angolanos (Possidónio, 2006), os estudantes da "Europa de Leste" (Relvas, 2006; Rita e Rita, 2004) ou os jovens de origem cabo-verdiana (Casimiro, 2008; Filho, 2002; Vaz, 2006). Outros estudos comparam dois grupos com distintas condições de integração,

48 De destacar será, neste sentido, os incentivos proporcionados pelo Observatório da Imigração (nomeadamente à publicação).

nomeadamente os filhos de cabo-verdianos e de indianos (Pires, 2009; Seabra, 2010); ou os jovens de origem cabo-verdiana e angolana (Grassi, 2008 e 2009). Os temas em foco, com desenvolvimentos variáveis, são essencialmente as condições e experiências escolares, as questões identitárias, as expressões culturais e artísticas, o associativismo e o capital social, os processos de discriminação e racismo e a integração no mercado de trabalho.

Relativamente às condições e experiências escolares, salientam-se as análises sobre os resultados escolares (Casa-Nova, 2005; Hortas, 2008; Justino e outros, 1998; Marques e outros, 2005; Marques, Rosa e Martins, 2007; Rita e Rita, 2004; Tavares, 1998); as estratégias educativas familiares (Seabra, 1999); ou a diversidade étnica dos públicos escolares e sua vulnerabilidade ao insucesso, explicada pelas descontinuidades culturais, e defendendo uma instituição escolar atenta à especificidade e diversidade étnica dos alunos (Aníbal e outros, 1995; Cardoso, 1996; Cortesão e Pacheco, 1991; Cortesão e Stoer, 1996; Ferreira, 2008; Leite, 2002; Paes, 1993; Santos, 2004; Simões e outros, 1992; Vieira, 1995), bem como revisões sobre a política intercultural que evidenciam as medidas institucionais desenvolvidas, e por desenvolver, que visam os filhos de imigrantes (Pratas, 2010).49 Incluem também os discursos e práticas dos professores sobre a integração das crianças de origem estrangeira (sobretudo africana), assinalando visões deterministas do insucesso, atribuído a causas exógenas à escola; e inércia, desvalorização e expetativas negativas (Angeja, 2000; Campos, 2000; Milagre e Trigo-Santos, 2001). Outro domínio é o da crescente diversidade linguística no sistema de ensino português e as condições de aprendizagem do português como língua não materna (DEB, 2003; DGIDC/IESE, 2005; Machado, 2007; Milagre e Trigo-Santos, 2001; Relvas, 2006; Silva e Gonçalves, 2011). Esta literatura evidencia a existência de grupos em

49 Sobre a multiculturalidade como paradigma de interpretação dos constrangimentos ao sucesso escolar dos filhos de imigrantes, partilhamos genericamente a posição de Fernando Luís Machado, que alerta para o efeito de ocultação das desigualdades sociais subjacentes (2005), e outros paradoxos, tais como a ênfase nas modalidades de controlo social; uma subvalorização e desresponsabilização do papel da escola e do professor na promoção da igualdade de oportunidades; uma visão fixista das diferenciações sociais e culturais; e a tendência para a folclorização (Machado, 2002: 317). Pedro Silva (2003) acrescenta que ao cruzarem-se na sociedade dois tipos de diversidade cultural, uma endógena (respeitante aos "lusos" com raízes na fundação do Estado-Nação), e outra exógena (designando a diversidade pela via da imigração), o multiculturalismo aparece apenas ligado à segunda. Uma última crítica visa a omissão da classe social na análise, implicando que "dificuldades que se devem mais a uma pertença de classe particular do que a determinados traços de especificidade cultural [sejam] muitas vezes interpretados ao contrário" (Machado, 2002: 318). O debate em torno desta questão é aprofundado também por Seabra (2010).

desvantagem escolar, com destaque para os descendentes de imigrantes cabo-verdianos, bem como um padrão de favorecimento das raparigas na performance escolar, que se mostram mais ambiciosas e com vivências mais positivas da escolaridade.50

As questões identitárias são outro domínio amplamente desenvolvido, apresentando visões mais dicotomizadas e conflituais da pertença identitária (Carvalho, 2007; Filho, 2002; Gusmão, 2004), ou posicionamentos mais contemporâneos e fluidos, que destacam as orientações positivas face à Europa (Grassi, 2008) ou os processos de aculturação e saliência da identidade étnica e as conotações funcionais da nacionalidade portuguesa (Vala e Khan, 1999). Padilla (2011) propõe uma análise das identidades a partir da racialização e da experiência em territórios desfavorecidos, filiando os mesmos num continuum que oscila entre a identidade portuguesa e a identidade africana, e onde a identidade hibrida/crioulizada assume um posicionamento intermédio. Rosales, Jesus e Parra (2009) trazem à discussão teórica contributos da sociologia da juventude, das culturas materiais e consumos contemporâneos, salientando que a etnicidade "concorre e interseta-se" (102) com um conjunto de outras variáveis, como os capitais económicos, sociais e culturais ou o género, mas também a escola e o bairro. Cláudia Vaz (2006) refere que raça e etnia são categorias percepcionadas e reconhecidas pelas crianças e jovens de origem cabo-verdiana residentes em espaços marcadamente multiculturais, em igualdade com outras variáveis como o género, classe, a idade, ou o bairro de residência.

Outra corrente de investigação debruçou-se sobre as expressões culturais, em particular a música RAP, como ponte fundamental entre a portugalidade e a africanidade dos jovens negros portugueses. Nesta perspectiva, a música vai permitir, através de leituras reinterpretativas, a formação de "modos de negritude vivida", definindo as constelações identitárias dos filhos de imigrantes. Vai também viabilizar o reforço da pertença subjectiva destes jovens aos países de origem, reconfigurando "novas africanidades", sustentadas em grelhas de ação e de expressão (por exemplo, a expressão em crioulo e luandês), e reorganizar as visões da realidade quotidiana, da portugalidade e da ocidentalidade, recriando o sentido da experiência quotidiana multicultural (Cidra, 2002; Contador, 2001; Fradique, 2003). Ainda nesta linha, Raposo (2010) analisou a relação entre a apropriação do RAP e o desenvolvimento das sociabilidades juvenis, mostrando que essa relação é organizativa das identidades territoriais suburbanas, constituindo um processo de integração alternativo e adversarial de

50 Alguns dos trabalhos mencionados nesta secção sobre a investigação em educação serão aprofundados posteriormente no ponto 3.3, relativo às questões educativas.

resposta à discriminação; à semelhança do contributo de Marina Antunes, sobre o papel de um coletivo de dança na construção da pertença e da singularidade de um grupo de jovens cabo- verdianos (2003). Mais recentemente, Barbosa e Ramos (2008) analisaram a prática do batuque pelas jovens descendentes, tal como Machado Pais mostrou, ao analisar os recursos de improvisação de jovens que participam em projetos de intervenção comunitária através da recriação de danças tradicionais africanas, como as mesmas podem ser um campo de criatividade e espontaneidade, de "desenclaustramento étnico", onde se articulam "diferenças e influências num rol variado de interações e hibridações" (2009: 748).

As análises sobre associativismo e capital social revelam capitais sociais mais expressivos nas redes informais do que nas redes formais e instituições, e graus de confiança baixos nas instituições, bem como fraca participação em actividades coletivas (Grassi, 2008 e 2009). Albuquerque (2010) destaca um sistema de catalisação da participação associativa assente nas dinâmicas associativas e comunitárias em curso nos territórios, no acesso a programas de apoio ao associativismo, no reconhecimento legal e institucional das associações na ação política e social, e nas oportunidades de inserção profissional por estas proporcionadas. Estas oportunidades profissionais são analisadas igualmente por Oliveira e Galego (2005) no seu estudo sobre a mediação sociocultural. Bastos (2009) interroga o papel das identificações e das vivências religiosas dos filhos de imigrantes na organização das suas motivações e práticas de participação cívica, notando que determinados investimentos cívicos, conduzidos por identificações cristãs e muçulmanas, parecem estimular novas formas de conceber a cidadania e a pertença. Salienta ainda a centralidade das identidades de bairro.

A integração no mercado de trabalho é um campo ainda pouco observado e desenvolvido, tendo em conta as caraterísticas demográficas deste segmento e a sua chegada recente à população activa. Aos descendentes (essencialmente de origem africana) são apontadas tendências como a frequente simultaneidade entre o mundo da escola e do trabalho e a inserção laboral precoce (Vala e outros, 2003); a inclusão predominante nos setores profissionais do comércio, hotelaria e construção civil, em condição precária ou como trabalhadores por conta própria (Baganha, Ferrão e Malheiros, 1999), e é salientada a importância das redes informais no acesso ao mercado de trabalho (Grassi, 2009). Dados mais abrangentes mostram, no entanto, situações e percursos diversificados, que acompanham as dos pares autóctones nas mesmas condições sociais (Machado, 2008). Os principais indicadores são de mobilidade ascendente: apesar da inserção ser realizada maioritariamente no setor terciário de execução, este já constitui um importante avanço face à posição dos progenitores. As trajetórias de integração são o resultado da articulação entre o perfil social específico que

estes protagonizam (jovem, equilibradamente feminino e masculino, com escolaridade obrigatória ou mais elevada) e as necessidades da economia urbana terciarizada da região de Lisboa. O autor salienta ainda o papel propulsor do capital escolar nos trajetos profissionais, a incidência de desemprego e um registo muito moderado de discriminação e racismo no acesso ao mercado de trabalho e menor ainda nos próprios contextos laborais.

Interessa ainda destacar alguns trabalhos de caráter mais circunscrito, que se debruçam mais detalhadamente sobre os processos de discriminação e racismo que atravessam vivências quotidianas segregadas (Padilla, 2011, Raposo, 2010; Vala e outros, 2003). Claire Healy (2011) analisou a implementação da Lei da Nacionalidade introduzida em 2006, que possibilitou a diversificação dos dispositivos de naturalização de menores filhos de estrangeiros, constituindo-se como um instrumento de integração, nomeadamente para um segmento de jovens numa situação particularmente vulnerável por se encontrarem fora dos requisitos da lei anterior.51 Por fim, assinalam-se os contributos de perfil mais testemunhal, intervencionista e artístico centrados das experiências e condições de integração dos descendentes de imigrantes em Portugal, quadros mais impressionistas e também problematizadores da vivência dos mesmos (AA.VV. 2005 e 2007).

Um contributo interessante é a análise realizada por Machado e Silva (2009) sobre a vivência periférica em bairros vulneráveis que procura superar o estereótipo do "jovem de bairro social". Nesta observam-se os percursos de jovens oriundos de famílias com fracos capitais económicos e culturais, com e sem origem imigrante, encontrando caminhos de vulnerabilidade social, mas também de mobilidade ascendente, ou em encruzilhada, no meio das duas anteriores. Recusando os determinismos sociais de classe ou de origem étnica, a análise salienta o forte papel da instituição escolar (positivo ou negativo), da socialização familiar (estratégias parentais ativas), e dos eventos críticos, biográficos (como as perdas familiares, a assunção precoce de responsabilidades familiares) e da influência niveladora do grupo de pares, que se somam num efeito conjugado de sentido ascendente ou descendente.

51 Trata-se da lei orgânica n.º 2/2006 de 17 de abril, que altera substancialmente as condições de naturalização dos filhos de imigrantes, transitando de uma anterior acepção assente no critério de jus

sanguinis (por filiação) para um critério eclético, solução mista, resultante da combinação do jus sanguinis e do jus soli – o jus domicilli. A anterior lei nº 37/81, de 3 de outubro, considerada mais

restritiva, marca o ano de 1981 como um ano de viragem na imigração em Portugal, pela troca do jus

soli pelo jus sanguinis, dificultando tanto a aquisição de nacionalidade por nascimento em território

aos filhos de pais não nacionais, quanto a aquisição de nacionalidade por casamento (Baganha e Góis 1998/99: 266).

Podemos ainda assinalar menções esporádicas aos descendentes de imigrantes em estudos de âmbito alargado. De modo mais claro, nas publicações sobre imigração ou minorias étnicas em Portugal, em que surgem contabilizados nas análises demográficas, ou é feita referência à sua integração escolar ou profissional (Baganha e Góis, 1998/1999; Bastos e Bastos, 1999; Machado, 2009; Pires e outros, 2010). Mas também nos trabalhos de caraterização geral da população estudantil, onde aqueles com origem étnica diferenciada são identificados e os seus padrões analisados, como os estudantes à entrada do ensino secundário (Duarte e outros, 2008; Machado e outros, 2011a), à saída do ensino secundário (Rodrigues e outros, 2009 e 2010); ou no pós-secundário (Machado e outros, 2011b). Igualmente no âmbito educativo, são mencionados na análise do abandono escolar, onde surgem como protagonistas significativos (Ferrão e Honório, 2000), ou na análise das perspectivas dos alunos sobre as novas formas de governo da educação (Alves, 2006).

Os descendentes emergem igualmente na investigação e reflexão sobre exclusão social, mostrando vulnerabilidades no desempenho escolar e bloqueios no acesso ao mercado de trabalho (Bruto da Costa, 2002; Garcia, 2000); ou sobre a relação entre a pertença étnica, a pobreza e a exclusão que está na base dos fenómenos de criminalidade e delinquência juvenil (Malheiros e Mendes, 2007; Seabra, 2005).

Pode então afirmar-se que a produção nacional é marcada pela quase inexistência de relatórios institucionais (com a excepção do domínio linguístico), comparações internacionais (em parte pela especificidade dos movimentos migratórios portugueses no contexto europeu) e pesquisas multissituadas (de análise de um mesmo grupo em vários contextos nacionais).52 Há uma escassa inscrição nos paradigmas internacionais dominantes, insuficiente cruzamento com áreas como a juventude e a pobreza, ou de desenvolvimento tópicos como a integração no mercado de trabalho, as relações sociais de género (a persistente vantagem feminina tem sido assinalada sem aprofundamento analítico), a religiosidade ou as sociabilidades. As comparações verticais (com a geração anterior) e horizontais (na sua diversidade interna e por relação com os pares autóctones, nem sempre incluídos nas análises) são moderadas. Ainda assim, a investigação em Portugal desenha, relativamente aos filhos de imigrantes, um retrato de heterogeneidade de perfis e trajetos escolares e profissionais, de complexidade identitária,

52 Assinala-se, contudo, uma excepção: o estudo de Elsa Casimiro sobre percurso dos estudantes cabo- verdianos em Lisboa e em Roterdão, que salienta, apesar das diferenças entre os dois grupos de descendentes, os melhores resultados escolares no segundo contexto e o papel positivo que algumas reformas no sistema de ensino holandês tiveram neste sentido (Casimiro, 2008).

de inscrição territorial e de desvantagem quando as condições sociais de existência são precárias. Como afirma Fernando Luís Machado relativamente aos descendentes de origem africana, mas que consideramos extensível ao seu universo, "não há, portanto, uma geração socialmente homogénea (…), que possa ser entendida de forma genérica e linear" (2008: 154).