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1.   Descendentes de imigrantes: lentes e planos médios de observação 7 

1.1.4. Identidades étnicas de banda larga?

"Quando eu estou na escola e estou com os meus amigos negros, algumas vezes, até tenho vergonha de dizer isto, a minha pronúncia muda. Eu aprendo todas as palavras. Troco. Bem, quando estou com os meus amigos negros, eu digo que sou negro, afro-americano. Quando estou com os meus amigos haitianos-americanos, digo que sou haitiano. Bem, o facto de ser negro, quando estou com os meus amigos afro-americanos, faz as pessoas pensar que eu sou de classe baixa… Depois, se eu estiver a falar assim [voz regular] com os meus amigos na escola, eles chamam-me branco" (jovem descendente de haitianos, em Waters, 1996: 183).

"Fico muito zangada quando as pessoas duvidam da minha autenticidade" (Sara Tavares).20

A identidade étnica diferencia-se das restantes identidades sociais pela "convicção de que se possui uma ascendência, uma história e uma herança cultural comuns" (Vermeulen, 2001: 24). Independentemente dos critérios usados para distinguir a identidade étnica das restantes,

existirá sempre uma tensão na categorização do que é "étnico", e nesta categorização irão articular-se factores relacionados com o processo migratório, culturais, socioeconómicos, de estigmatização e discriminação. Elas são processuais e circunstanciais, como descreve Fernando Luís Machado (2002: 32):

"são mutáveis e não definitivas, são abertas e não fechadas, são, em suma, socialmente construídas. Se têm sempre algum grau de cristalização e reprodutibilidade, sem o qual não chegariam a ter significado na vida social, as identidades étnicas podem também alterar-se rapidamente se mudarem as circunstâncias que favoreceram a sua emergência".

Alba (1990) assinala que a identidade étnica surge na literatura como um estilo de vida das classes populares ou trabalhadoras, como uma expressão política, ou como crescentemente simbólica, individual e subjectiva. Ao estudar a identidade étnica dos americanos "brancos", o autor identifica uma etnicidade crescentemente voluntária, dependente de ações deliberadas por parte dos indivíduos no sentido da manutenção de actividades e relações com caráter étnico. O voluntarismo constitui, na sua opinião, uma moldura mais adequada para a natureza das identidades étnicas emergentes, assentes no "desejo de reter um sentido de ser étnico, mas sem outro compromisso profundo aos laços sociais ou comportamentos étnicos" (idem: 306).

A natureza volitiva da identidade étnica reforça que esta não pode ser considerada um atributo estanque equivalente à ancestralidade; pelo contrário, esta, a sua natureza, e a disposição para a sua expressão, são situacionais. Trata-se de uma manifestação individualizada, uma escolha de latitude ampla, socialmente influenciada pela classe social, residência, género, etc., assim como pelas expressões étnicas coletivas disponíveis. O que, segundo o autor, obriga a rever profundamente os pressupostos do conceito mais clássico de assimilação, como a obliteração das identidades ancestrais; ou a refocar a análise da etnicidade não nas fronteiras que impõe, mas nas pontes que permite estabelecer.

Sem querer repetir as linhas de argumentação desenvolvidas nos pontos prévios, destacaríamos que, no que diz respeito aos jovens descendentes de imigrantes, as caraterísticas, os processos e os pressupostos referidos tendem a agudizar-se, já que estes se encontram mais claramente colocados numa posição de fronteira cultural, social ou nacional. A diferença étnica surge, nas narrativas identitárias dos jovens, com um caráter contingente e ambivalente, funcionando como constrangimento (na impotência face à heteroclassificação) ou como recurso (uma arma política e retórica lançada para criar vínculos e solidariedades). Mas é necessário comparar os descendentes de imigrantes e os seus pares autóctones, para clarificar que aspectos do comportamento derivam do legado migratório, e quais deles simplesmente

reflectem o "ser um jovem" na contemporaneidade. Sem esta comparação, é fácil confundir um estilo com a substância de uma cultura oposicional (Kasinitz e outros, 2008).

A adolescência é o lugar, por excelência, da definição de si, de estabelecimento de filiações com os múltiplos meios sociais de circulação e interação, e com as inerentes pressões para a normatividade. O mundo contemporâneo é, no entanto, descontínuo, transnacional e heterogéneo, sobretudo o vivenciado pelos jovens descendentes de imigrantes.21 A observação das suas dinâmicas identitárias faz-se, segundo Breviglieri e Stavo-Dabauge (2004), num duplo posicionamento. O primeiro, de inquietação, pela falta de autonomia concedida aos jovens, e a incapacidade de reconhecer, aos mesmos, competências de construção de uma identidade coerente. Trata-se da visão da identidade fragilizada ou em crise, onde as práticas desviantes são uma resposta à falta de coerência identitária. O segundo, de apaziguamento, quando a identidade é remetida para o que os autores designam "tópico da bricolage", um fenómeno relacional, dialógico e conflitual, fragmentado e evolutivo, com enfoque nas questões da criatividade. Através deste, os sociólogos tentam mostrar que os elementos que geram inquietude podem constituir-se como recursos positivos, suscetíveis de serem mobilizados para realizar planos e projetos. Será esta última a posição de Kasinitz e outros, que defendem que

"a interação entre estrutura e cultura abre escolhas, particularmente para a segunda geração. O facto de esta ter escolhas, e ela está frequentemente consciente do facto de ter escolhas, é talvez, mais do que qualquer outra coisa, a vantagem distintiva da segunda geração" (2008: 85).

Para a maioria dos descendentes de imigrantes inquiridos no estudo que estes autores realizaram, "a etnicidade é não só tolerada, mas frequentemente celebrada enquanto as tradições culturais colidem, se fundem, e coexistem". Mais do que no passado, "as diferenças culturais parecem manifestamente mais fáceis de manter ou superar" (idem: 273).

Suárez-Orozco e Suárez-Orozco (2001) descrevem a identidade étnica dos jovens como influenciada, a montante, pela comunidade étnica, pela estrutura de oportunidades e pelo "espelhamento social"; tal como, a jusante, pelos factores familiares e os factores individuais. Os contextos assumem um papel central na formação da identidade étnica, através dos "ethos de recepção", ou seja, o conjunto de oportunidades, clima social e cultural geral, atitudes e crenças sobre os imigrantes e a imigração. Estão configurados também no conceito de "espelhamento social" (social mirroring), isto é, o modo como os jovens descendentes são

21 Que podem "ter a sua conversa de pequeno-almoço em persa, ouvir RAP afro-americano com os pares no caminho para a escola, e aprender, em inglês, sobre o New Deal com o professor de estudos sociais" (Suárez-Orozco e Suárez-Orozco, 2001: 92).

perspetivados e recebidos pela sociedade dominante e a internalização e interpretação das mensagens, decorrentes do contexto, sobre quem e como se espera que sejam. Os autores assinalam três reações padrão ao espelhamento social: resignação (sentido de impossibilidade, autodepreciação, baixas expetativas, desmobilização); alheamento; e resistência, pela positiva (com envolvimento social, serviço à comunidade, servindo como modelo), ou pela negativa (através da revolta). Uma posição semelhante é assumida por Rumbaut (1996), ao defender que os jovens se definem na relação de similaridade ou dissemelhança com os grupos de referência e os contextos sociais, que afectam a sua experiência e reforçam ou dissolvem a consciência étnica.

Os estudos que recaem especificamente sobre os descendentes de imigrantes mostram que as suas identidades, nomeadamente étnicas, não são estáveis ao longo do tempo, podendo inclusivamente intensificar-se nas trajetórias escolares mais longas, onde o seu caráter minoritário sobressai progressivamente. Mas, mais do que localizadas num eixo linear do fraco para o forte, elas são sobretudo situacionais, fluidas e alternadas (Rumbaut e Portes, 2001; Suárez-Orozco e Suárez-Orozco, 2001). Os jovens enfrentam o desafio específico de "incorporar o que está 'lá fora' no que está 'cá dentro' e cristalizar um sentido de quem são", traduzindo-se a si próprios e construindo "uma variedade de autoidentidades" (Portes e Rumbaut, 2001: 190). Dimensões como a nacionalidade parecem assumir um lugar secundário. As pesquisas mostram que as segundas gerações, em geral, libertaram-se de "sentimentos de nacionalidade". Esta já não é uma componente importante da identidade (caraterística dos jovens em geral, e não apenas dos descendentes), e há uma dissociação entre identidade e nacionalidade, vista somente como uma vantagem instrumental (Kirszbaum, Brinbaum e Simon, 2009). Lorcerie (2005), por exemplo, afirma que as identidades sociais dos estudantes de grupos minoritários, em Marselha, têm fronteiras fluidas, e a fluidez carateriza-as mais fortemente que a demarcação. Mais discriminadoras parecem ser as condições sociais objetivas, onde a autora inclui o estatuto socioeconómico, a origem nacional dos progenitores e o lugar de residência. Designa como plurivocidade (plurivocité) a caraterística que define as pertenças categoriais dos jovens, instáveis e densas, com forte tendência ao desvanecimento das fronteiras intercategoriais, que dificultam a construção de tipologias.

Nas identidades étnicas destes jovens vai existir uma tensão entre as culturas I e as culturas We, ou as orientações individualistas verso as orientações coletivistas. Debruçando-se sobre os processos de negociação, Østberg (2003) lança o conceito de "identidade plural integrada" para expressar o caráter dual da identidade das crianças norueguesas-paquistanesas. Ela é mutável, fluida, mas também estável e integrada. Esta dinâmica estável é mais adequada

ao estatuto de "navegador cultural" do que de outros conceitos como hibridação, que remetem para algo novo. Os processos de negociação são, eles próprios, múltiplos e cruzados. Alguns deles são descritos como típicos da modernidade tardia, de reflexividade crescente, outros são gerais e caraterísticos da idade de transição, e outros decorrem de particularismos de pertença a um grupo de origem ou religião específicas.

São diversos os estudos que procuram agregar em tipologias estas identidades, considerando diferentes contextos, amplitudes, metodologias e grupos alvo (Colombo, Leonini e Rebughini, 2009; Rumbaut, 1996; Suárez-Orozco e Suárez-Orozco, 2001; Waters, 1999). Não existe um padrão identitário único, e todos os autores referem o caráter não exclusivo, contextual, dinâmico e fluido das categorias. A organização identitária varia entre o local e o global, e entre o fechamento e a transformação. O perfil apresenta-se tripartido, oscilando entre a assimilação (e consequente perda dos traços étnicos diferenciadores), passando pela etnicização (como forma de proteção ou de resposta adversarial), e terminando em formas transculturais, sincréticas e aditivas. As primeiras e segundas oscilam entre uma condição de vantagem e desvantagem, e reflectem concepções mais estáticas e dicotómicas de pertença. Às identidades etnicizadas são imputadas as condições de fragilidade, de liminaridade negativa e de crise. As transculturais são consideradas as prevalecentes nos estudos, e a sua descrição apresenta um pendor positivo, associado à mobilidade ascendente, refletindo formas mais modernas de pertença.

Para além de ilustrarem as principais tendências encontradas na revisão multiparadigmática dos conceitos de cultura, etnicidade e identidade, como o anti- essencialismo, a processualidade, a instabilidade, mutação e contaminação, as várias identidades étnicas apresentadas nas tipologias partilham a condição de ponto de chegada, e não de partida, na análise. Emergem não como factores causais, mas como resultado dos processos de vivência e convivência nos múltiplos contextos, e do cruzamento de indicadores individuais, culturais, socioeconómicos e estruturais.

Cultura, identidade e etnicidade vão sustentar um campo teórico-temático particular, erguido especificamente para interpretar sociologicamente as experiências dos jovens descendentes, como veremos mais adiante. Mas têm também subjacentes questões ainda não focadas. Por exemplo, como foram identificados os jovens descendentes de imigrantes? Por que razão os distinguimos dos restantes jovens? E de que forma as opções de delimitação dos mesmos impactam as análises?