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E ASSIM SE FORMAM AS REPRESENTAÇÕES

3 ENTRE PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES

3.2 E ASSIM SE FORMAM AS REPRESENTAÇÕES

A elaboração do método de análise das representações é oriunda das reflexões entre a teoria e a observação empírica do cotidiano (SPINK, 1995). As representações sociais são formas de conhecimento que precisam ser entendidas a partir do contexto que as engendra e a partir da sua funcionalidade nas interações do cotidiano. Dois aspectos, tornam-se relevantes e centrais: a teoria do conhecimento e os determinantes de sua elaboração. Como formas de conhecimento, as representações estão inseridas nas correntes que estudam o senso comum; e o senso comum é capaz de formar uma teia de significados, criando, objetivamente, uma realidade social. “Trata-se, portanto, de uma ampliação do olhar de modo a ver o senso comum como um conhecimento legítimo e motor de transformações sociais” (SPINK, 1995, p. 119).

Outros aspectos para a análise das representações sociais são o contexto histórico e o contexto de produção. Existem conteúdos que circulam na nossa sociedade e há um processo de interação social para definir uma dada situação, de forma a construir e manter as identidades coletivas.

Neste sentido, o contexto é essencialmente ‘intertextual’. Ou seja, é a justaposição de dois textos: o texto sócio histórico que remete às construções sociais que alimentam nossa subjetividade; e o texto – discurso, versões funcionais constituintes de nossas relações sociais (SPINK, 1995, p. 122).

Dentro da percepção temporal, existem três tempos importantes para a análise das representações: o tempo curto da interação (a funcionalidade); o tempo vivido (processo de socialização – o habitus); e o tempo longo (o imaginário social).

Quando analisa o senso comum, o investigador(a)/pesquisador(a) não se depara, apenas, com a lógica e com a coerência mas, também, com a contradição. As técnicas de análise empregadas no seu estudo procuram identificar, interpretar a associação de idéias subjacente ao discurso midiático visando compreender as representações que são socialmente compartilhadas.

As representações se apóiam em valores variáveis, segundo os grupos sociais de onde tiram as suas significações. Estão ligadas a sistemas de pensamentos ideológicos e/ou culturais, à condição social e à esfera das experiências, privada e afetiva, dos indivíduos (JODELET, 2001). A mídia intervém em sua elaboração, com processos de influência ou de manipulação social. Essas representações formam versões da realidade relacionadas com imagens e discursos carregados de significados e expressam os grupos que criam interpretações especificas para o objeto por ele representado. Essas definições partilhadas pelo grupo formam uma visão consensual da realidade, para esse grupo, podendo entrar em conflito com a visão de outros grupos.

Como analisar os discursos dos comerciais que reiteram os valores dominantes e tradicionais? Acredito que é através dos discursos (texto e imagem) que as representações sociais são reiteradas, pois entendo o discurso como uma prática social atribuída de significados que só tomam forma e se constroem em relação a uma realidade social.

O discurso é, portanto, uma prática social e é ordenado e integrado à vida cotidiana. Ele organiza a vida em sociedade e é responsável por oferecer sentido ao mais simples movimento cotidiano, não designando somente as palavras, mas sistemas de significação – as ordens simbólicas − permitindo que as pessoas compartilhem significados comuns sobre a realidade. Ele é, então, um instrumento de socialização que transmite valores e conhecimentos através da comunicação, ligando os agentes sociais e a sociedade, dando visibilidade às representações sociais no âmbito do político, econômico, cultural, social.

Segundo Bakhtin (2004), os discursos são construídos no processo das relações sociais e são marcados pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados, sendo, portanto, parte integrante do contexto sócio-histórico. O discurso é o local para onde a língua e a ideologia convergem e onde se pode

compreender como a língua produz sentidos para as pessoas. Concordo com Bakhtin que a língua é a expressão das relações e das lutas sociais, onde as palavras assumem a propriedade de signos ideológicos e de indicadores de transformações sociais.

Fairclough (2001) sugere um estudo que evidencie o caráter social do discurso. O discurso tem o poder de construir e não apenas de expressar o significado, e esse significado é um construto social. Segundo o autor, o discurso se relaciona ao modo de inserção do indivíduo na sociedade, sendo entendido como o principal tipo de prática social que, ao mesmo tempo que determina, é determinada por relações sociais. Isso porque, ao usarmos determinados discursos, perpetuamos convenções sociais, do mesmo modo que podemos transformá-las.

Para Charaudeau (2006), os discursos resultam da combinação das circunstâncias em que se fala ou se escreve com a maneira pela qual se fala. Como toda ação, são modos dos agentes sociais atuarem no mundo e, igualmente, sobre os outros, sendo, também, uma forma de representação, ou seja, uma significação da realidade, instituindo-a e construindo-a através de significados. Cada prática é, nesse sentido, uma articulação de diversos elementos sociais dentro de uma configuração relativamente estável: as atividades, os sujeitos e suas relações sociais, instrumentos, objetos, tempo/espaço, formas de consciência, valores e discurso.

Em um movimento relacional dialético, os discursos são marcados pelas estruturas sociais e as estruturas sociais produzem os discursos; são formas de ação social imersas no contexto sociocultural e histórico que, por sua vez, envolve relações de poder e ideologia. É por meio dos discursos que os mais variados grupos sociais podem exercer o poder sobre outros, no conjunto das relações que se estabelecem na sociedade a que pertencem. Como ocorre a dominação de alguns sujeitos por outros, o discurso entra em ação contribuindo para a produção, manutenção e a troca de relações sociais de poder.

Foucault (1983) destaca o aspecto constitutivo do discurso. Para o filósofo, analisar os discursos compreende especificar sócio-historicamente as formações discursivas interdependentes, os sistemas de regras que possibilitam a ocorrência de certos enunciados, em determinados tempos, lugares e instituições. Defende, ainda, que essas instituições utilizam técnicas de natureza discursiva que dispensam o uso da força para “adestrar” e “fabricar” sujeitos ajustados às necessidades do poder. Ao sugerir que o poder, nas sociedades modernas, é

exercido pelos discursos, Foucault contribui, por um lado, para o estabelecimento do vínculo entre discurso e poder e, por outro, para a noção de que mudanças nos discursos são um indicativo de transformações sociais.

O discurso não é só determinado pelas instituições e estruturas sociais; ele é parte constitutiva delas. Não existe, portanto, uma relação externa entre o discurso e a sociedade, mas, sim, uma relação interna e dialética. É uma prática social que expressa e reflete identidades e relações, como também as constitui e as configura e, como qualquer outra prática, é possível definir as suas condições de sua produção. Todo discurso tem um contexto social no qual está inserido, sendo importante o seu papel na construção, manutenção e transformação da estrutura social.

Os discursos midiáticos apresentam uma versão bem particular da realidade, recortada de acordo com atitudes e valores do público-alvo a que se destina a propaganda. Trata-se de uma forma de comunicação característica de nossa sociedade e de nosso tempo que atinge a população através da mídia. Podemos considerar que os discursos midiáticos são idéias mediadas por situações concretas vividas pelos agentes sociais, que constroem bens simbólicos, compõem o imaginário e formam um conjunto de representações sociais, pelo emprego de um discurso homogêneo, através de representações coletivas e classificatórias para que seja entendido por um maior número de pessoas.

Mulheres e homens, desde a infância, são bombardeados por uma série de ideais de feminilidade e masculinidade, através da transmissão de determinados “valores femininos e masculinos” preconizados no senso comum, na escola, na família, no Estado, na mídia. O discurso publicitário, para representar homens e mulheres, utiliza padrões de categorização, classificação, hierarquização e ordenação da realidade e das relações entre as pessoas, capazes de significar os contextos desejados de forma a torná-los compreensivos e consumíveis.

As propagandas, portanto, modelam os elementos retirados da realidade a fim de provocar a reação desejada. São construções de modelos oriundos do imaginário coletivo, no contexto histórico onde foram produzidas, nas quais circulam pensamentos, valores e modelos de comportamento, constituindo um local de interação humana onde são construídas as representações sobre as mulheres, que são repetidas e transformadas pela veiculação cotidiana dos seus textos e imagens.

As propagandas não inventam coisas; seus discursos, suas representações estão sempre relacionadas com “modelos” que circulam no

imaginário social. São as representações que ajudam a constituir a visão de mundo dos agentes sociais, dando sentido à nossa experiência e ao que somos, ao senso de identidade e sexo, consumando estilos e modos de vida, bem como pensamentos e ações sociopolíticas. Logo, os discursos midiáticos são compartilhados e coletivos, tendem a traduzir e perpetuar relações sociais naturalizadas6 pelo senso comum e

contribuem para a reiteração de determinadas representações sociais.

Ao produzir repertórios de idéias, emoções, sensações, escolhas, imposições e ações e evocar e reproduzir as diferenças de sexo, gênero, raça/etnia, opção sexual, idade/geração, níveis culturais e classes sociais através dos binarismos, acabam por reiterar concepções percebidas como tradicionais, reforçando as desigualdades de gênero. Segundo Silveirinha,

os media constituem-se como práticas significantes e sistemas simbólicos públicos pelos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos, criando novas possibilidades do que somos e do que podemos vir a ser. (2007, p. 2).

Além disso, envolvem relações de poder, inclusive, o poder de definir quem será incluído e como será excluído. Os comerciais televisivos, mesmo que não compremos os seus produtos, fazem com que estejamos consumindo e reproduzindo os seus discursos.

Nas propagandas, são encontradas questões de gênero, idade/geração, classe, raça/etnia que existem na sociedade mas, ao mesmo tempo, elas existem na sociedade porque estão nas propagandas, em uma relação dialética. Os discursos midiáticos partem da concepção da transmissão persuasiva; da legitimação de valores, doutrinas, ideologias sexistas ou racistas; da naturalização de discursos particulares a respeito daquilo que é “normal” ou “essencial”, no momento de definir um grupo social, como sendo universais; da percepção de problemas que se baseiam em relações de poder; e da distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos das práticas sociais.

Essa ideologia construída nos discursos separa e diferencia grupos em dominantes/dominados e superiores/inferiores, produzindo hierarquias e classificações que servem aos interesses das forças e das elites do poder. A ideologia é, geralmente, a do branco, masculino, ocidental, de classe média ou

6 Naturalização/Naturalizar. ato de “tomar como natural", como algo que “já existe e sempre existiu”,

superior, uma posição que vê raças, classes, grupos e sexos diferentes dos seus como secundários, inferiores e subservientes. Ela está inserida nos discursos para estabelecer e sustentar relações de poder e de dominação e assim produzindo e reproduzindo as relações sociais através das relações sociais. As relações de gênero representam e reproduzem a ideologia dominante, ao passo que a ideologia dominante representa-se e reproduz-se através das relações de gênero que, por sua vez, reproduzem as desigualdades de gênero.

Para Thompson (1995), uma boa parte da ideologia é veiculada pela mídia e uma das características da mídia é a disponibilidade das formas simbólicas, no tempo e no espaço. Isso quer dizer que as formas simbólicas veiculadas pela mídia são desencaixadas de seus contextos originais e recontextualizadas em diversos outros contextos, para serem decodificadas por uma pluralidade de atores sociais que têm acesso a esses bens simbólicos, servindo de sustentação ou como forma de transformação de relações de dominação.

As representações dos comerciais refletem padrões estabelecidos socialmente, sendo convencional a construção de estereótipos dos modelos masculinos e femininos. Esses estereótipos (representações de cunho preconceituoso) passam, dissimuladamente, pelos receptores, que não vêem a necessidade de questioná-las, uma vez que elas se apóiam no senso comum. Além disso, são assimilados e aceitos pela pessoa como sua própria representação e, assim, se torna real para ela, embora seja, de fato, imaginária.

Existe uma naturalização de fenômenos − processo que Thompson (1995) denomina de reificação −, uma estratégia para manter, como elementos contemporâneos, determinadas normas, valores e posturas, justamente por serem consideradas pertencentes a uma tradição “eterna” e, assim, aceita e justificável. Nesse processo, uma situação transitória é representada como permanente, ocultando seu caráter sócio-histórico. As propagandas, ao proporem que o consumidor se identifique com a marca, também propõem a identificação com determinados modelos. Elas se apropriam de imagens e mitos contemporâneos ou, ainda, de mitos eternizados, para construir um tipo de mulher, um estereótipo. O que o estereótipo faz é criar a imagem de mulher, aceita e partilhada socialmente por um grupo de pessoas que se identificam com tal imagem.

Paralelamente, as propagandas incitam a sexualidade, sexualizando e generizando os produtos, atribuindo-lhes valores socialmente reconhecidos como masculinos e femininos. Segundo Beleli,

De um lado, comprar determinada cerveja potencializa o consumidor a conquistar aquela ‘linda mulher’, de outro, ela seria o chamado para a marca/logo que se faz lembrar sempre, e este é o principal interesse do publicitário – criar um consumidor em potencial. (2007, p. 129).

Dessa forma, o corpo feminino está vinculado à sedução; é o capital cultural das mulheres.

Os modos como se constroem representações da afetividade, do corpo, da sexualidade da mulher de todas as faixas etárias e de todas as condições sociais indicam uma tensão entre as inúmeras conquistas das lutas feministas e aqueles universais que, entre outras posições, colocam a mulher entre a falta e a sedução. (FISCHER, 2005, p. 256).

Vale ressaltar que somos nós, consumidores, os produtores dos significados que circulam no mundo. As mulheres estão com um poder de decisão na sociedade de consumo e anúncios e anunciantes não podem correr o risco de desagradar esse segmento. “As histórias que contamos e o modo como imaginamos e nos representamos têm fortes implicações políticas, uma vez que o discurso é um importante lugar de contestação de práticas sociais naturalizadas”, diz Funck (2005, p. 10).

A ação feminista consiste em avaliar criticamente os discursos construtores de uma teia de significados, de uma visão de mundo socialmente construída que, historicamente, tem excluído e estigmatizado as mulheres. Nas propagandas, a mulher e o produto se fundem através de qualidades comuns, ela própria é delineada como um objeto de consumo.

No próximo capítulo, serão analisadas as propagandas a partir das categorias escolhidas na pesquisa.

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UMA ETNOGRAFIA DAS IMAGENS: A BUSCA DOS