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5 A MULHER FRAGMENTADA: SEU CORPO NA ATUALIDADE

5.1 O CORPO FEMININO EM EVIDÊNCIA

As representações sobre mulheres na Modernidade foram construídas a partir de um pensamento binário que naturalizou a separação do masculino e do feminino, a partir das diferenças biológicas. Logo, é interessante fazer uma abordagem histórica sobre o significado que o corpo assumiu nas diversas matrizes intelectuais da civilização ocidental, no decorrer dos séculos.

Segundo Valverde,

[...] o corpo é datado, ele já teve vários sentidos e já foi submetido a vários olhares, a vários tipos de recorte; não é só o conceito de corpo histórico, mas o corpo mesmo, enquanto sensibilidade partilhada pela coletividade humana é também histórico. (2000, p. 41).

No universo da cultura grega, Platão proclama, em suas reflexões, a superioridade da contemplação do mundo das idéias, da órbita do espírito na descoberta da verdade, que ocorre na medida em que a alma se desencarna da prisão sombria do corpo. Ele considera o corpo, com a sua sensitividade, elemento da natureza obscura, ilusória e inferior.

Na dicotomia de Platão, o corpo, matéria incipiente, transitória, espacial, recebe forma e movimento através da alma/mente imortal, não corpórea. As almas superiores, racionais eram atribuídas, antes do nascimento, aos corpos masculinos da classe dominante; as almas inferiores eram ligadas aos corpos dos submetidos. (BERMAN, 1997, p. 259).

Nesse último patamar, encontravam-se as mulheres. Na dicotomia mente x corpo, em Platão, o corpo assume o aspecto negativo e pejorativo e é sempre associado às mulheres, pois, no mundo intelectual, a valorização estava nas idéias, e, como somente os homens eram considerados capazes de pensar, as sensações corpóreas negligenciadas, pertenciam às mulheres. O feminino é pensado enquanto existe o masculino.

As dicotomias natureza–cultura, selvagem–doméstico, público–privado, razão–emoção, mente–corpo constituíam categorias opostas. Assim, foi estabelecida uma equivalência entre o feminino e a natureza, o doméstico, o privado, a emoção e o corpo; e o masculino e a cultura, o selvagem, o público, a razão e a mente. Dessa forma, o feminino e tudo a ele associado foi constituído como passivo, observado, manipulado e o masculino como ativo, que manipula, que controla e que domina.

Em Aristóteles, existe o abandono da abordagem do corpo enquanto entidade subsidiária, reconhecendo-se o corpo como dotado de forma própria. Aristóteles localizava a alma dentro do corpo, colocando a ação dentro da substância, mas conservando a natureza separada e imaterial. O mundo de Aristóteles é caracterizado por dualismos hierárquicos, isto é, por opostos polarizados em que um lado tem domínio sobre o outro. Para ele, a alma tem domínio sobre o corpo, a razão sobre a emoção e o masculino sobre o feminino. Segundo o filósofo, a mulher é dominada por emoções e funções corporais; aos homens cabia a mente e a razão.

Ainda segundo Aristóteles, o esperma era superior, por gerar vida, em contraposição à menstruação, inerte. Ele pensava que a energia calorífica do sêmen penetrava na carne pelo sangue; a carne do macho era mais quente e menos suscetível ao esfriamento, assim como os seus músculos eram mais firmes, posto que os tecidos masculinos eram mais quentes, e, em conseqüência disso, só o macho poderia expor a sua nudez. Atualmente, existe uma utilização diferente do corpo masculino, na mídia, porém, ainda é irrelevante quando comparada à utilização do corpo feminino.

Para Aristóteles, a mulher não era progenitora da criança, pois os corpos femininos eram meros recipientes para o esperma do homem, o verdadeiro progenitor. A origem dessa explicação

[...] estava no calor corporal que, segundo eles, antecedia o próprio nascimento, determinando que fetos bem aquecidos no útero, desde o início da gravidez, deveriam tornar-se machos. De fetos carentes de aquecimento nasceriam fêmeas. (SENNETT, 2001, p. 38).

Sendo o espermatozóide o responsável pela fertilização, o óvulo assume uma passividade, uma receptividade bastante associada com o comportamento social feminino. Essa concepção é ainda transmitida nas instituições de ensino.

Segundo Sennett (2001), no seu estudo sobre o corpo e a cidade na civilização ocidental, não foram os gregos que inventaram esse conceito de calor corporal nem foram eles os primeiros a associá-lo ao sexo. Os egípcios e, até, os sumerianos possuíam o mesmo entendimento a respeito do corpo. Na Grécia, acreditava-se que o “macho” e a “fêmea” constituíam dois pólos de um continuum corporal, ou seja, o corpo tinha um único sexo que, quando aquecido de forma diferente, originava o macho ou a fêmea. A partir dessa fisiologia da reprodução, os gregos foram construindo a base do seu entendimento sobre a anatomia dos homens e das mulheres, supondo que o mesmo órgão fosse reversível em genitália masculina e feminina.

Tais idéias seriam aceitas como teoria científica por cerca de dois mil anos, passando da Antiguidade Ocidental, por intermédio dos doutores árabes, à medicina cristã da Idade Média, sobrevivendo à Renascença, até ser superada, apenas, no século XVII. (SENNETT, 2001, p. 39).

Dentro dessa premissa, os registros médicos estipulavam uma escala ascendente de valores: tratavam os machos como superiores às fêmeas, embora fossem da mesma matéria. O tratamento dado à mulher era semelhante àquele dado aos escravos. Elas eram tidas como inferiores e insignificantes e, por conseguinte, o seu corpo também era visto da mesma maneira. De acordo com Sennett: “nas relações heterossexuais, a mulher freqüentemente inclinava-se, oferecendo suas nádegas a um homem de pé, ou ajoelhado, atrás dela” (2001, p. 43). Na cultura dos gregos, assim como em muitas outras, a posição masculina expressava status social; abaixada ou curvada, a mulher se subordinava.

Para Berman, foi na Alexandria romanizada do século I d.C. que o filósofo Fílon lançou o alicerce ideológico para a permanente subordinação das mulheres, no mundo ocidental.

Ele uniu o princípio platônico da alma intrinsecamente inferior e menos racional da mulher ao dogma teológico hebraico da mulher como insensata e causadora de todo mal, justificando o tratamento de Eva no Gênese e identificando-a explicitamente com a falta de disciplina moral e ‘ausência de intelecto para manter suas paixões sob controle’. (1997, p. 252).

A mulher nascia sensual e carnal em contraposição ao homem que era racional e espiritual; ela estava em constante aliança com o diabo e era associada a todos os pecados terrenos. Essa concepção acabava por considerar o corpo feminino mais especialmente pecaminoso, culpando Eva e todas as mulheres pela queda do Homem, pelo Pecado Original e por todo o restante.

Durante a revolução científica, ainda se pensava que a alma e a mente só podiam se realizar em seres masculinos e que a alma tinha que lutar para subjugar o corpo. Segundo Wilshire,

A história da civilização e da filosofia ocidentais só varia até o ponto em que cada era dá ênfase a alguns aspectos favorecidos, característicos; quanto ao conhecimento e sua aquisição, todas as eras nessa história têm em comum a explícita desvalorização da terra e do corpo – mais especificamente, o corpo da mulher, junto com as formas de saber e estar no mundo associadas ao feminino. (1997, p. 103).

Na Idade Média, a prevalência do pensamento religioso realça a dicotomia corpo x mente, sendo o corpo concebido como substância pecaminosa, devendo ser submetido a controle para a mortificação dos desejos carnais, e é definido no âmbito do que é biologicamente dado, o material, o imanente.

Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a terra. Os mistérios na fisiologia feminina, o fluxo menstrual, os odores, o líquido amniótico, as expulsões do parto e as secreções eram repelidas pelo sexo masculino. O corpo feminino era considerado impuro. “A mulher e por extensão o seu corpo, podia ser definida como um ser cujas paixões detestáveis condenavam a uma condição de inferioridade tanto no plano social, quanto moral” (DEL PRIORE, 2001, p. 27).

Com o Renascimento, o corpo passa a ser abordado como objeto de investigação científica. Descartes, embora ainda preservasse o caráter eterno e sobrenatural da alma, transformou o corpo em uma máquina, propugnando que “[...]

o corpo é mera res extensa, coisa extensa, pura exterioridade na periferia da res cogitans, da coisa pensante, da razão, que é o centro do ser.” (ARAÚJO, 2000, p. 144). Nesse contexto, o corpo da mulher era visto como um corpo decaído; seu sexo, sua condição genital, sexual e biológica definia a sua condição no mundo, de ser menor e infecto. Dessa forma, a sexualidade da mulher era algo inerente à carne, celebrada ou reprimida, de acordo com a sociedade na qual estava inserida (DEL PRIORE, 2001, p. 26). Somente com o fim das teorias aristotélicas, já no século XIX, foi que a condição ontológica da mulher e a sua feminilidade começaram a ser reavaliadas.

Já na história contemporânea, o pensamento de Karl Marx fez com que o corpo aparecesse como emblema das relações sociais. O corpo, então, passa a ser não mais um lugar do processo de auto-constituição da idéia, mas sim, um veículo da auto-constituição real, da prática da sociedade, através do trabalho. Mesmo valorizando o real e não mais as idéias, o corpo da mulher era visto como fraco, recebendo, por seu trabalho, um salário inferior ao do homem devido à sua constituição física. Enfim, existia, então, uma desqualificação do corpo feminino, fazendo com que ele estivesse condenado a permanecer fora do registro da cultura.

De acordo com Foucault (1977), já na época clássica houve uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Objeto, porque ele poderia ser manipulado, modelado, treinado; e alvo, porque ele poderia ser hábil, economizando forças para o trabalho necessário.

No caso em estudo, o corpo torna-se objeto e alvo de poder porque é utilizado de forma a legitimar a subordinação da mulher. Ela precisa estar sempre bonita, bronzeada e magra e seu corpo é representado como objeto de desejo e satisfação. Enfim, percebe-se que a mulher e, por continuidade, o seu corpo, no decorrer dos séculos, foi negligenciada e esquecida em detrimento das idéias e da razão.

O corpo masculino torna-se o próprio Corpo, enquanto o corpo feminino permanece marcado por suas diferenças. Ao mesmo tempo, entretanto, o corpo masculino enquanto corpo masculino desaparece por completo, com sua especificidade concreta submergida por seu colapso universal. Assim, enquanto os homens são teóricos culturais do corpo, apenas as mulheres têm corpo. Enquanto isso é claro, o ausente corpo masculino continua a operar licitamente como a norma (científica, filosófica, médica) para todos. (JAGGAR, 1997, p. 15).

Ao analisar o uso dos corpos femininos nas propagandas de cerveja, acredito que esses corpos estão inscritos culturalmente. Os gestos, as posturas corporais, as vestimentas, nos comerciais, promovem uma leitura dos corpos femininos. Baseada nessa abordagem venho discutindo as representações do corpo feminino e, conseqüentemente, da mulher, na atualidade, analisando a influência dessas concepções na sociedade atual e percebendo, principalmente, as práticas discursivas utilizadas nas propagandas que reiteram esse discurso como universal e naturalizado.