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2.2 “Uma andorinha só não faz verão”: movimentos, ativismos e (des)identificações

2.2.1. Ativismos em João Pessoa

Como apresentei acima, a criação de entidades de mobilização social e representação política de travestis em João Pessoa decorreu de uma trajetória institucional semelhante ao movimento social no plano nacional. Desde a década de 1980, grupos informais já se organizavam em João Pessoa (NASCIMENTO, 2011). Entretanto, é apenas em 1992, impulsionado pelas ações de prevenção à epidemia da aids, que surge o Movimento do Espírito Lilás (MEL) em João Pessoa. Agregando não somente gays e lésbicas, mas também contando com a participação de travestis e transexuais, o MEL se constituiu como uma ONG, desenvolvendo ações de promoção de direitos humanos e cuidados à saúde, bem como atuando como um espaço institucional gerador de socialidades. Contudo, com o crescente

número de participantes, o aumento de demandas específicas e a necessidade de visibilizar as experiências de travestis e transexuais, em 2002, é fundada a Associação de Travestis e Transexuais da Paraíba (ASTRAPA)25. Criada por Fernanda Benvenutti, que permaneceu na presidência da instituição por sete anos, a ASTRAPA se propõe a fortalecer a autoestima e promover a cidadania de travestis e transexuais bem como realizar ações de combate à homofobia e discriminação dessas pessoas. Desde sua criação, a ASTRAPA já participou da organização de campanhas, palestras, ações educativas, e também da Parada Gay de João Pessoa e da Semana de Visibilidade Trans, em articulação com outros movimentos sociais e o poder público.

Das ações relevantes conduzidas pela ASTRAPA e por suas principais lideranças, Fernanda e Daniela (ambas tendo ocupado a presidência da instituição), destacamos o diálogo com os governos do Estado da Paraíba e com o Ministério da Saúde, para implementar tanto o Centro de Referência em Direitos Humanos LGBT quanto o Ambulatório de Saúde Trans. Na pesquisa etnográfica, em conversas com meus interlocutores, o protagonismo de Fernanda Benvenutti foi constantemente citado, sendo atribuída a ela a responsabilidade principal pelas diversas mudanças em termos de serviços e direitos voltados à travestis e transexuais em João Pessoa.

Fernanda Benvenutti nasceu em Remígio, cidade do interior na região do Brejo Paraibano, em 1962. Em entrevista, me falou que apesar de sempre ter tido dificuldade em aceitar o sexo biológico, ela percebe sua infância como um momento feliz. Com 14 anos, fugiu de casa para realizar o sonho de ser artista circense, tendo ainda trabalhado como garçonete, atriz e empregada doméstica. Terminou o curso de auxiliar de enfermagem e depois o de técnica em enfermagem e atualmente trabalha em três hospitais públicos da cidade.

Quando chegou em João Pessoa aproximou-se do movimento social e, posteriormente, fundou a ASTRAPA, quando começou o que chama de “ativismo coletivo”, ou seja, “em grupo, com uma causa e uma bandeira definida” que a conduziu ao cenário político. Filiou-se a um partido e lançou candidatura, em 2004 e 2008, a vereadora, mas, em 2010, a deputada estadual (quando conseguiu cerca de 3000 votos). Em 2014, com 53 anos, Fernanda Benvenutti tem dois filhos adotivos e alterna sua atividade no hospital com a atuação como

25 _ Em João Pessoa ainda atuam o Grupo de Mulheres Lésbicas Maria Quitéria, fundado no mesmo ano

suplente na representação de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais no Conselho Nacional de Saúde26 . Sobre sua participação no Conselho de Saúde Fernanda afirma:

Então, a minha chegada ao Conselho se dá a partir do ativismo, de fazer parte de duas entidades nacionais, que é a ANTRA, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, e da ABGLT, que é a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Bissexuais. Eu faço parte dessas duas entidades. E hoje eu estou no Conselho representando a ANTRA. E tem o Carlos Magno, que é o segundo suplente, que está representando a ABGLT. Eu também já fui convidada para participar de outros lugares antes do Conselho, no Comitê Nacional de Saúde Integral para a população LGBT, que também me referenda para ir ao Conselho.

A partir do Conselho a gente aprovou políticas LGBT que foram pensadas lá no comitê, que é um comitê acessor de política LGBT. Então no comitê a gente aprovou a política do uso do nome social no SUS para travestis e transexuais, a gente aprovou a política da saúde integral de LGBTs, eu trouxe aqui pro Estado a criação do Comitê Estadual de políticas LGBT que a primeira coisa a ser pensada foi a criação do Ambulatório para tratar da Saúde de Travestis e Transexuais. Então a gente vai sempre debatendo no Conselho as políticas, aprovando e trazendo pra cá. Pena que a maior parte das políticas são pra área da saúde. (FERNANDA BENVENUTTI – Entrevista em novembro de 2014)

Dessa forma, como vemos no relato, a liderança e a representatividade adquiridas por Fernanda Benvenutti permitiram que não somente políticas e ações fossem aprovadas para promoção de direitos de travestis e transexuais ao nível nacional, mas também algumas ações localizadas foram implementadas, beneficiando especialmente o estado da Paraíba.

Outra importante liderança do movimento social de travestis e transexuais de João Pessoa é Daniela que, como dissemos, compõe a direção da ASTRAPA. Ela explica os avanços na garantia de direitos específicos, alcançados nos últimos anos, tanto pela militância local quanto pelas articulações com o poder público federal, principalmente a partir da atuação política de Fernanda Benvenutti.

Hoje estou no processo transexualizador por esse hospital, Clementino Fraga, onde nós somos hoje um Estado referência no processo e de onde toda nossa conquista veio do movimento social sim, porque tudo vem de demanda popular e sem essa demanda o governo sozinho não faz. (DANIELA – Entrevista em setembro de 2014)

Eu fico muito feliz de ver que quando eu entrei muitas pessoas aqui no hospital diziam que não sabiam porque iam gastar transformando homem em mulher e que foi graças a nossa política que trouxe pro Estado a possibilidade de construírem um centro cirúrgico aqui no hospital que estava faltando, não só para o processo transexualizador, mas pra todas as pessoas que precisem. Então foi de uma demanda de uma classe de pessoas que insistem em dizer que estão tão a margem, que são invisíveis, que vem isso. (DANIELA – Entrevista em Setembro de 2014)

26 _ Fernanda fez parte da vice-presidência da Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e

Transgêneros (ANTRA), é representante estadual na Paraíba da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e ainda participa da ASTRAPA.

O relato de Daniela chama a atenção para a importância da atuação do movimento social e dos ativismos que, em diálogo com agentes do governo, foi capaz de não somente viabilizar e implementar a criação do Ambulatório de Saúde Trans, mas ainda de garantir verbas para a construção do centro cirúrgico que, ao contrário do ambulatório, não tem uso específico para travestis e transexuais, mas beneficiará todos os que dele necessitarem.

Que bom que agora a gente criou voz. E o bom é que entre os LGBTs era justamente os gays que iam ter essa voz toda. Ninguém esperava que o movimento de travestis e transexuais desse Estado ia levantar uma bandeira com tanta força e ter uma travesti inserida no programa nacional de saúde, com um assento. Nós temos na Bahia também a Keila que foi nos defender na ONU, outra travesti do Nordeste. Então eu tenho muito orgulho do Nordeste. (DANIELA – Entrevista em setembro de 2014)

Nesse outro relato, Daniela chama atenção para a representatividade que travestis e transexuais têm conseguido em espaços antes reservados às lideranças dos grupos gays, tidos como mais intelectualizados e comprometidos. Essa tensão que havíamos anteriormente apresentado entre grupos identitários que compõem, por vezes, as mesmas entidades e coletivos é agora evidenciada na fala de Daniela que ainda chama atenção para outro marcador identitário, o regional, por ter nas figuras de Fernanda Benvenutti (paraibana) e Keila Simpson (baiana) duas nordestinas que atuam como importantes lideranças do movimento social, igualmente posicionando-se em instituições nacionais, na luta por direitos.

Durante o evento da “Semana de debates – Universidade e Movimento trans”, ocorrido em abril de 2014 na UFRN, tive a oportunidade de ouvir tanto Keila Simpson representando a ANTRA, quanto Leonardo Tenório representando a Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT) que, na ocasião, compartilharam algumas das dificuldades que esses movimentos percebem para o avanço das políticas trans no país. Tenório observou que, além das dificuldades que as pessoas trans experimentam cotidianamente para acessar serviços diversos (como educação, saúde, trabalho) em virtude do preconceito, há também obstáculos que são intrínsecos ao próprio movimento trans. Frisou, por exemplo, a dificuldade que existe entre as lideranças e representantes de estabelecerem uma pauta única e, inclusive, de desconhecerem o funcionamento dos aparelhos e agências do Estado para, então, saberem como reinvidicar direitos. Keila Simpson, por sua vez, chamou atenção para as dificuldades que os representantes políticos (deputados, vereadores) enfrentam para impedir o avanço de uma agenda religiosa no âmbito do legislativo e executivo.

Apesar das dificuldades políticas, meus interlocutores reconhecem diversos avanços em termos da visibilidade do movimento social e a conquistas de direitos. Em nossa conversa,

Ana, que também já esteve na presidência da ASTRAPA, demonstrou um discurso bastante politizado acerca do movimento trans não somente no contexto da Paraíba, mas em suas manifestações regionais, nacionais e mesmo internacionais. Apesar de ter reforçado uma visão pessimista quanto às possibilidades de formação de uma sociedade menos homofóbica e machista, ela ainda assim reconhecia mudanças e avanços em termos de direitos para travestis e transexuais. Como afirma, os serviços hoje disponíveis para transexuais já permitem que as pessoas vivam suas experiências de si e produzam seus corpos e identidade experimentando menos restrições e violências que as pessoas trans viviam cinco anos atrás.

As coisas estão acontecendo, a doses homeopáticas. Mas é melhor acontecer a doses homeopáticas que não acontecer. Apesar da violência eu considero a Paraíba um dos Estados que mais avança. Temos a delegacia de crimes homofóbicos, a gente tem o Ambulatório TT, o Espaço LGBT, e por aí vai. Eu acho que estamos avançando. Eu acho que uma novinha, de uns 17 anos, não vai passar pelas mesmas coisas que eu passei. É uma construção diária. Só de eu poder estar com meu nomezinho eu acho que é um grande avanço pra mim e pra todas as outras que venham conseguir. São poucas.. poucas não, grandes políticas que avançam devagar, mas a passos consolidados, firmes. Estão acontecendo. (ANA – Entrevista em setembro de 2014)

2.2.2 “Quem tem padrinho rico não morre pagão”: representações e

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