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Nas entrevistas e conversas informais que realizei com homens e mulheres transexuais que se utilizaram do ambulatório em João Pessoa, ou conheciam alguém que estava sendo acompanhado nesse espaço, pude perceber que sempre ressaltavam a importância do serviço por uma questão de responsabilidade e cuidado com o próprio corpo.

Lá, eu tô achando tudo lá. (Fala com muita satisfação). Lá é muito bom porque a gente tá tendo apoio de tudo. De tudo mesmo. É psicológico... até a parte de fonoaudiólogo a gente tem. Nossa, tudo! Você faz exame com rotina. A cada três meses eles pedem pra ver se você está se dando com aquele hormônio. Se não tá, eles mudam. E assim vai. Eu achei tudo. Só falta agora abrir pra cirurgia. O bloco cirúrgico.(ELEN, Entrevista em outubro de 2014)

Nunca precisei tomar nada. Mas assim, como já me falaram, o ambulatório tem psicólogos, tem endocrinologistas, tem todas as assistências. Graças a Deus eu não vou precisar de cirurgia de pomo de adão, de cordas vocais, enfim, de algumas dessas coisas. Mas é bom usar o serviço sim, até pra saber e conhecer e ter mais um acompanhamento médico. É importante. (INGRID. Entrevista em outubro de 2014.)

Ao longo do trabalho, vimos relatos sobre a dificuldade que existia antes do surgimento do ambulatório em se conseguir ter acesso aos profissionais que pudessem acompanhar as pessoas trans no trânsito de gênero. Com o ambulatório e a possibilidade de atendimento médico, de ter o olhar do especialista e ter informação sobre qual “regime de cuidado” devem realizar, as pessoas trans passam a se apoiar em uma dimensão de reconhecimento e segurança de que estão “fazendo a coisa da maneira correta”.

Tomava. Tomava hormônios que não são adequados pra o que ele vai pedir né. Os que ele vai passar são adequados, que é melhor pra minha saúde. Porque os que eu tomo são muito pesados. Eu tomei perlutam que é um hormônio pesado e que pode deixar até alguma sequela. Se eu tiver uma genética boa eu não vou ter, mas... ninguém sabe, né? (LUÍSA; Entrevista em outubro de 2014)

Eu usei hormônio até um certo tempo aí depois eu parei, porque eu tava me sentindo mal... uma coisa ruim, como se eu fosse infartar. Horrível. Aí o farmacêutico disse “evite de ficar tomando porque vc tá com começo de arritmia cardíaca. Se vc continuar tomando vc vai ter um infarto”. Aí eu parei. Passei uns dez anos sem tomar, porque também eu tomava por conta própria. Não ia pra médico nem nada. Mas agora que eu tô indo pro ambulatório eu tomei aí uns dias... tô tomando uns hormôniozinho bonzinho.. (HELENA - E ntrevista em outubro de 2014.)

Como vimos nos relatos acima, a referência à automedicação e ao consumo de hormônio por conta própria é uma prática comum entre nossos interlocutores. Não somente esses produtos e tecnologias biomédicas (remédios) são buscados quando querem modificar seus corpos, mas ainda é uma das formas de obter mudanças estéticas mais rápidas, visíveis, definitivas e relativamente fáceis de acessar (PELÚCIO 2009, BENEDETTI, 2005), embora a apropriação de tais tecnologias costume ser feita através de referências e saberes construídos contextualmente na prática, muitas vezes através de contatos e redes de relações sociais previamente constituídas entre os transexuais e, em alguns casos, também com as travestis.

Apesar destas substâncias, remédios e hormônios estarem sob o controle da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo exigida a receita médica41 para compra das pílulas e ampolas em farmácias, existem outras estratégias, socialmente disseminadas, que sempre são utilizadas para acessar a medicação. As mulheres trans pedem para outras mulheres (juridica e biologicamente reconhecidas como tais) para comprarem as pílulas nas farmácias ou, quando são “passáveis” conseguem comprar tanto a pílula quanto tomar o hormônio injetável sem nenhuma requisição dos farmacêuticos. Para os homens trans, o acesso é mais complicado. Por vezes, o hormônio masculino não é disponibilizado em grande estoque nas drogarias. Quando possuem, há um controle rígido da receita médica para garantir que o fim a que se destina a medicação é “legal”. Quando não conseguem adquirir através da farmácia, as compras das ampolas e de gel pelos homens trans se dá pelo mercado informal, prática considerada ilegal em nosso país.

Jaína Alcântara (2009), ao pesquisar as práticas juvenis relacionadas à sociabilidade, ao hedonismo e aos usos de substâncias psicoativas (drogas injetáveis), afirmou que as farmácias eram espaços onde também se dava a busca pelos remédios que (usados puros ou processados) também produziam alteração psicológica e prazer. Segundo a autora, que acompanhou as buscas de seus interlocutores pelas substâncias nas farmácias, havia uma incongruência entre o que os profissionais que trabalhavam nesses espaços afirmavam, quanto ao rigor na retenção de receitas de remédios “tarja preta” ou “tarja branca”, ambos tendo

venda controlada pela ANVISA, e as exceções e maleabilidades que se davam na negociação pelos fármacos. Como afirma a autora:

[…] há diferenças de rigor e controle entre as farmácias de grandes redes e as de pequeno porte e, por outro lado, que há uma margem de negociação entre quem compra e quem vende, que varia de acordo com a proximidade entre os negociantes e os interesses implícitos na negociação. Era uma maneira interessante de subversão das normas impostas pela ANVISA, mas que não conseguia dar conta do controle da comercialização de medicamentos com total eficiência. Assim, davam-se as negociações no cotidiano, pois as próprias contravenções faziam parte dos trâmites do mercado. Eram previsíveis, mas não eram admitidas ou aceitas nos relatos dos farmacêuticos.(ALCÂNTARA, 2009, p.119)

Alguns interlocutores de Jaína Alcântara afirmaram que falsificavam as receitas médicas a partir da computação gráfica e conseguiam obter sucesso na compra dos remédios em redes farmacêuticas que não tinham um controle tão rígido na venda dos fármacos. Apesar de nenhum de meus interlocutores fazer referência à “falsificação” da receita, muitos afirmaram que o fato de serem assíduos a determinado estabelecimento e já conhecerem o balconista da farmácia (principalmente entre as mulheres trans) facilitava o acesso aos medicamentos, fato também narrado pela autora citada.

Toda a parte hormonal quem banca é a gente. Sempre foi! Antes e hoje ainda é! É “barato”. Porque a ampola é considerada barata, mesmo sabendo que você vai ter esse gasto pelo resto da vida. Mas faz é tempo que aqui não tem. Cada um está se virando do jeito que pode e nem sempre o jeito que pode é o jeito certo. (BRUNO - Entrevista em setembro de 2014.)

Outra opção que ele queria passar era o Nebido. Aí, realmente, é o melhor hormônio. Mas ninguém tem quatrocentos reais pra dar em uma ampola. A ampola dura três meses. Mas ainda assim é muito caro. Se fosse uma coisa que dissessem “O governo vai dar pra vocês”, oxe, eu tomava o que me dessem. Pode me dar que eu tomo. Mas, a gente não tem condições de comprar. No mercado informal, a gente toma o paraguaio. A galera pega no Paraguai. Assim, o hormônio em si é bom. O brasileiro é melhor. Mas eu nunca vi ninguém que teve problema de saúde com o hormônio de lá. A única coisa pra mim que eu acho ruim é que ele é muito doloroso. Muito, muito, muito, muito! Já teve vezes de eu aplicar na perna e ficar uma semana sem conseguir colocar o pé no chão. Mas fora isso, é tranquilo usar. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014)

Tendo em vista que, para manter os caracteres de gênero desenvolvidos a partir da medicação, seu uso precisa ser regular e rotinizado disciplinadamente, ou seja, os prazos de aplicação e ingestão tem que ser respeitados, o que leva a uma busca constante das pessoas trans às receitas dos medicamentos feitas pelos profissionais do ambulatório. Sobre as práticas de cuidado empregadas pelas pessoas que se constituem a partir de identidades biomédicas, Valle afirma, quando fala sobre pessoas com HIV, que se tratam de formas de

disciplinarização do corpo, que permitem a produção de uma vida “mais regrada”, independente das práticas estarem conformadas em modelo biomédico ou se tratarem de formas “alternativas” à medicina das sociedades ocidentais modernas de cuidado e de promoção à saúde. Segundo Valle:

[...] o controle do tempo, o rigor no consumo dos remédios, o jejum, dentre outras estratégias de disciplinarização terapêutica, devem ser vistos como conformando um modelo ideal de comportamento, que as pessoas tem dificuldade de cumprir ou buscam contornar, permitindo-se certa maleabilidade. (VALLE, 2010, p.44-45)

Dessa forma, mesmo que alguns de meus interlocutores resistam às receitas das medicações realizadas no contexto ambulatorial e desenvolvam e compartilhem entre eles saberes sobre quais substâncias são as mais adequadas para o consumo (substâncias também medicalizadas), há consenso entre todos eles de que a disciplina é necessária, ou seja, um exame constante das reações corporais, o controle (por mínimo que seja) da qualidade do produto que estão consumindo e o emprego de regimes de cuidado que obedeçam ao tempo de eficácia da substância e às quantidades “seguras” de consumo.

Um outro fato importante a observar nesse cuidado e disciplina corporal que se refere aos hormônios é, por vezes, a indisponibilidade das substâncias. Caio afirmava que, apesar da medicação durar 45 dias, ele costumava buscar a receita no ambulatório com bastante antecedência do fim do efeito da medicação, tendo em vista, também, o tempo de procura do hormônio. Em geral, todo mês o rapaz tem que passar de farmácia em farmácia à procura da caixa que contém as ampolas, encontrando-a, por vezes, em apenas uma drogaria, o que o leva a dividir as ampolas restantes entre dois ou três colegas que também precisam da medicação.

Acompanhei Caio e outro rapaz trans em uma dessas “buscas” por hormônios, quando os dois rapazes foram à casa de um terceiro que havia recebido uma caixa com ampolas encomendada do Paraguai. Durante o trajeto, Caio e o amigo me informaram da dificuldade em acessar essas substâncias, ainda que estejam em posse da receita médica, o que os levava a compartilhar não somente as substâncias, mas ainda a auxiliarem os companheiros com informação sobre onde podem comercializar o hormônio com melhor qualidade a preços mais acessíveis.

Contudo, os profissionais de saúde costumam criticar a busca pela medicação por vias informais e alertam para o risco de fazer uso de substâncias sem saber informações precisas a respeito da dosagem, da origem e da própria substância química que está presente nas

ampolas. Dentre os homens trans com quem conversei, nem todos compreendem o processo de uso do hormônio como sendo de “risco”, ou que a administração dessa substância precisa ser tão regrada, ao contrário do que indicamos anteriormente. Ainda assim, eles entendem que é uma questão de responsabilidade e autocuidado a busca pelo acompanhamento médico e a realização dos exames para verificar como o corpo está reagindo às substâncias, o que nos remete, mais uma vez, à incorporação de um regime disciplinado de cuidado, seja ele realizado em parceria com os profissionais de saúde, seja ele produzido apenas entre os usuários das substâncias.

Pra mim você tomar o hormônio é como uma pessoa que toma insulina. Você pode controlar suas taxas, fazendo os exames e acompanhando na sua casa mesmo e se você tiver um problema você marca uma consulta. Mas a gente não pode fazer isso. Eu faço os exames porque eu tenho uma responsabilidade pelo meu corpo. Mas também não acho que se não fizesse com tanta regularidade isso ia ser tão ruim pro meu corpo. Mas a maioria dos meninos não vai nem pegar receita. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014)

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