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1.“QUEM É BOM JÁ NASCE FEITO”: MODOS DE SER “NATURAIS”, EMOÇÕES E TRANSEXUALIDADES.

Logo ao definir o tema de estudo, antes mesmo de ir ao “campo” etnográfico e encontrar meus interlocutores, passei a refletir teoricamente sobre o que significa ser “transexual”, uma vez que estes eram os sujeitos eleitos para a minha pesquisa. Nesse capítulo, discutirei, portanto, sobre as condições que possibilitaram o surgimento da transexualidade como uma experiência de construção de si deslocada das vivências naturalizadas “homem\mulher”. Entenderemos como as emoções foram enredadas no processo de produção de corpos “naturais”, justificando a suposta diferença entre comportamentos, pensamentos e “tendências” entre os gêneros. Apresentarei, por fim, algumas definições da transexualidade, os saberes-poderes que a conformam, percebendo, entretanto, que apesar da rigidez com que as definições são propostas, o processo de produção de si a partir de uma categoria identitária não obedece a um único caminho, mas se apresenta, ao contrário, a partir de muita fluidez e inúmeros contrastes.

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Ao iniciar a pesquisa de campo de modo sistemático em João Pessoa, em setembro de 2014, a cidade contava com diversos serviços voltados às pessoas nomeadas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e trans) e alguns exclusivos aos homens e mulheres transexuais, que eram considerados de referência regional e nacional. Como argumentei acima, um dos meus objetivos de pesquisa era poder conhecer esses serviços, como foram criados, as pessoas que neles trabalhavam e os usuários e usuárias que recorriam a esses espaços.

Encontrei um pensionato para morar durante o período em que realizava a pesquisa em um local onde podia contar com diversos serviços nas redondezas, além de transporte público, que me permitia em apenas quinze minutos (nos dias de pouco trânsito) estar no centro da cidade, onde localizava-se um dos serviços que visitei e também o pequeno terminal de integração de ônibus. Era pela integração que eu pegava o segundo transporte público que me levava ao bairro de Jaguaribe, vizinho ao centro, onde localizava-se o Ambulatório de Saúde para Travestis e Transexuais.

Durante o processo de mudança para a cidade, entre as várias apresentações e explicações que eu fazia às pessoas que dividiam a casa comigo sobre minha pesquisa de mestrado (e passado o momento de estranheza que a temática geralmente desperta naqueles que não estudam gênero/sexualidade), dois colegas me ofereceram ajuda para contatar um homem transexual (Bruno) que eu já havia visto no encontro de junho de 2013 e que sabia que era uma das lideranças do movimentos de homens trans de João Pessoa. Esses colegas do pensionato conheciam uma amiga da esposa de Bruno, amiga esta que participava do Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria (GMMQ), uma das instituições que juntamente ao Movimento do Espírito Lilás (MEL), a Associação de Travestis e Transexuais da Paraíba (ASTRAPA) e do recentemente formado Movimento de Bissexuais (MoviBi) formam a principal rede de assistência, promoção, capacitação e combate a violência de pessoas identificadas como LGBTs em João Pessoa.

Apesar da rapidez com que tudo isso aconteceu, um grande número de questionamentos e preconcepções sobre a experiência da transexualidade começaram a surgir entre meus colegas de pensionato, especialmente sobre o que diferenciava a experiência da travestilidade do “ser trans”. Estes questionamentos me impulsionaram à tentativa de definir meus próprios critérios sobre quais sujeitos seriam meus colaboradores na pesquisa, uma vez que os espaços principais que havia elegido para buscar meus interlocutores não lidavam exclusivamente com homens e mulheres trans, mas também com travestis9 no ambulatório, por exemplo, e também com gays, lésbicas, bissexuais e travestis no Espaço LGBT.

Definir a quem buscava era necessário não somente para fins de comparação com outras experiências de transexualidade em diferentes contextos regionais e nacionais, mas também para recortar melhor a pesquisa a fim de aproveitar o tempo que disporia para realizar a observação etnográfica, conduzir entrevistas e poder analisar teoricamente uma experiência específica chamada “transexualidade”, que na vida cotidiana não se mostra com tanta precisão, mas caracteriza-se por dinamismo e diversidade. O grande problema de definir os colaboradores era, na verdade, a dificuldade que algumas pessoas têm em definir sua própria experiência, suas transformações corporais como sendo “transexualidade”. E afinal, de quem falamos quando identificamos o/a “transexual”? Percebi que essa questão não se colocava

9 _ Vale ressaltar que as travestis também podem requerer judicialmente a mudança do nome no registro

civil e passam por atendimentos e cuidados com a saúde como controle endocrinológico pelo uso que geralmente fazem de hormônios e por outras construções corporais como o uso de próteses de silicone cirúrgico ou industrial, o que requer acompanhamentos semelhantes aos dos e das transexuais.

apenas entre aquelas pessoas que conheci no pensionato, que não conviviam em seus círculos de socialidade com pessoas que se identificavam como travestis ou trans, mas que era (ou fora) uma questão, muitas vezes, para os meus próprios interlocutores.

Durante a construção da pesquisa, percebi que os homens transexuais (pessoas que nascem com o “sexo biológico” definido como mulher mas que experimentam seus corpos e seu gênero a partir da masculinidade) não pareciam considerar tão complicado o ‘encaixe’, digamos, de sua experiência na categoria “transexual”, sobretudo quando comparamos ao processo vivido pelas mulheres transexuais (aquelas nascidas com o “sexo biológico” identificado como homem e que se constroem a partir da feminilidade). Para estas, seria ainda mais confuso entender e assumir, em muitos casos, uma categoria identitária uma vez que essa construção, não obedecendo a critérios rígidos, acaba por admitir encaixes em várias outras categorizações de identidade de gênero, de orientação sexual e de construção corporal.

Essa dificuldade de categorização acontece principalmente no momento em que o processo de transição começa a acontecer, seja na infância (por meio das roupas e outros objetos, brinquedos e brincadeiras, formas de falar e agir) ou, como acontece na maior parte dos casos, no momento da adolescência, quando seus corpos começaram a indicar os marcadores sexuais secundários (barba e voz grave, nos homens e seios e menstruação, nas mulheres, por exemplo) e que essas marcas começaram a produzir incômodo e tentativas de escondê-las ou abrandar seus efeitos.

Assim, desde criança eu sempre fui mais menina mesmo. Quem me via achava até que e era uma menina. Eu sempre tive as perninhas feminina, a bunda, cinturinha, eu sempre fui menina. Só que eu passei um tempo escondendo da minha família, não do povo de fora, que sempre são os primeiros a saber. Acho que quando eu tinha uns oito anos eu já tinha já minha... cabeça já... olhei pra um homem e pra uma mulher e vi que não...Mulher! (Helena sorri, e como se olhasse agora pra o lugar do homem, balança a cabeça negativamente) Não tem nada a ver comigo. (risos). (HELENA – Entrevista em outubro de 2014)

Eu sempre fui diferente. Já me vestia com roupas masculinas porque minha mãe não liga muito pra isso não. Ela foi a primeira pessoa a me dar roupas masculinas quando eu tinha uns oito anos de idade, tipo “escolha o que você quer usar”. Então eu já me parecia um menino. A única coisa que me descaracterizava de um menino na adolescência era o cabelo grande, mas... por outro lado, eu não sei porque, mas eu já tinha muito hormônio masculino. Com uns doze anos, a partir do momento que eu comecei a tentar desenvolver os caracteres femininos eu também comecei a desenvolver bigode e barba. Inclusive o desenvolvimento do meu peito foi menor que o da minha barba. Na escola isso não foi legal. Apanhei na escola. Acontece. (CAIO – Entrevista em outubro de 2014 )

Os relatos acima são pequenos fragmentos que nos permitem perceber que a construção de si referente à identidade de gênero pode se dar por diferentes vias. No caso de

Helena, ela aponta como desde a infância já possuía uma compreensão de si feminina e que isso levou à percepção das pessoas de enxergá-la como uma “menina”. Para Caio, a marca da masculinidade também era presente em seu corpo, reforçada ainda mais pela utilização de roupas e por interesses comportamentais considerados masculinos em nossa sociedade, que tiveram apoio por parte de seus familiares, mas isso não ocorreu com seus colegas de escola, o que o fez mudar várias vezes de instituições de ensino e interromper os estudos em diversos momentos por estar constantemente envolvido em brigas e conflitos com alunos, professores e funcionários.

Desde pequena eu era menina. Eu colocava fralda na cabeça pra dizer que eu tinha cabelo comprido, etc e tal. Mas tinha um laço muito conservador, católico. [...] Eu não entendia o que era travesti, o que era transexual e eu só posso me assumir quanto alguma coisa a partir do momento que eu conheço. [...] Eu passei por todas as fases que as pessoas dizem que deve se passar. Passei pelo gay, pelo gay masculinizado. Sempre tinha uma cara feminina, mas aí acontecia alguma coisa em casa e eu voltava a ser homem de novo. (ANA – Entrevista em setembro de 2014)

Durante uma fase da minha vida eu achei que era homossexual, porque era a variante que mais parecia, que chegava mais próximo do que eu queria ser que é ser mulher. Hoje eu consigo entender que ser mulher é uma questão de identidade de gênero e não do meu órgão. (DANIELA – Entrevista em Outubro de 2014)

No caso de Ana, esta aponta para uma construção um pouco mais distinta. Apesar de também dizer que, desde pequena, experimentava a feminilidade, por exemplo a partir da fralda que usava, o que representava ter o cabelo comprido, ela passou por outras formas de construção de si, que eram, por vezes, também entendidas por “condutas masculinas”, além de portar marcadores corporais também vistos como masculinos. Como ela afirma, foi em alguns momentos “gay”, em outros “gay masculinizado” e não podia em outros momentos se dizer travesti ou transexual porque desconhecia essas categorias e o que elas representavam.

Daniela também aponta a identificação em certo momento de sua vida com a ideia e categoria do “homossexual”, porque até esse momento reconhecia nessa categoria uma possibilidade de encaixe com o desejo de ser “mulher”. Isso ocorre porque, ainda que o homossexual e a homosexualidade sejam categorias que se referem à orientação sexual, para onde o desejo sexual se direciona, ela também admite em paralelo a identificação de gênero tanto com a masculinidade quanto com a feminilidade.10 Como indica Ana no relato acima,

10 _ O trabalho de Carmem Dora Guimarães (2004) é uma das principais referências sobre a construção

biográfica da homossexualidade no Brasil na década de 1960, observando como essas dinâmicas de identificação e performatização do gênero e da sexualidade eram negociadas entre homens gays.

ela experimentou em alguns momentos a construção de si como “gay masculinizado” e em outros passou a feminilizar sua performance de gênero.

Diante de trajetórias tão distintas e de tantas possibilidades de categorização das experiências do corpo, do sexo e do gênero, percebemos que a nomeação de si como “transexual” nem sempre é fácil, unívoca, tranquila, sem ambivalências, nesse processo de produção de si. Nessa pesquisa, optamos por respeitar a autonomeação das pessoas na medida que estas se identificavam como transexuais. Não buscamos contestar as categorizações que faziam de si diante de outras formas de construção da identidade de gênero ou do corpo que poderiam também oferecer encaixes (identificações) com o que elas apresentavam, mas tentamos entender o que cada pessoa apontava em sua trajetória que a fazia se identificar a partir desse marcador de gênero.

O certo, entretanto, é que as vidas que se apresentaram e se refletiam nas conversas, observações e nas entrevistas se mostraram diversas, criativas e cheias de possibilidades, escapando, muitas vezes, ao modo estanque como as experiências para além do binarismo “homem\mulher” são categorizadas. A seguir, discutiremos brevemente como as categorias homem e mulher são naturalizadas no Ocidente e como outras várias categorias são propostas para indicar experiências deslocadas, dentre as quais temos a transexualidade.

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