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1.2 “Ao homem a razão, à mulher a emoção”: emoções generificadas e a antropologia das emoções

Como vimos, diversos saberes têm produzido os modos de ser homem/mulher como se fossem naturais. Aliada a uma expectativa estético-corporal e de expressão de desejo heterosexual soma-se a necessidade de uma performance de gênero coerente com os critérios anteriores. Nessa produção de homens e mulheres ideais, universalizados e essenciais, os

13 _ Como discutimos, identidade de gênero, sexualidade e corpo são categorias desassociadas. Podemos,

assim, entender a quais desses aspectos referem-se as categorias de identificação que foram produzidas por deslocarem-se da matriz heterossexual. Por exemplo, quando falamos sobre as categorias ligadas às formas de expressão da sexualidade, temos os assexuais (não direcionam o desejo sexual), pansexuais (direcionam o desejo sexual para vários objetos e pessoas), gays e lésbicas (quando o desejo se designa a uma pessoa identificada com o mesmo sexo biológico) e bissexuais (quando o desejo é designado tanto para homens quanto mulheres). Já quando falamos na identificação que cada pessoa possui com marcadores de feminilidade ou da masculinidade, falamos em identidade de gênero. Nessa categoria temos os crossdressers, drag kings, drag queens, travestis e transexuais. Discutiremos sobre estas últimas neste capítulo.

sentimentos e emoções também foram enredados nesse processo, sendo a matéria e o efeito que alimentava os discursos sobre modos de viver o corpo, o gênero e a sexualidade “normais”.

Segundo Cláudia Rezende e Maria Cláudia Coelho (2010), os sentimentos, entendidos como expressões universais e ao mesmo tempo singulares (por serem experimentadas unicamente pelo indivíduo), foram pensados, por longo tempo, exclusivamente como originados no corpo, sendo este tanto o local onde os sentimentos eram experimentados, corporificados, como também a causa destes afetos, resultantes dos diversos fenômenos corporais, fossem eles hormonais, neuronais ou químicos. As reações emocionais, como o ato de chorar ou um acesso de raiva eram entendidos como atos espontâneos e involuntários vinculados unicamente à dimensão biológica dos sentimentos. (REZENDE e COELHO, ibid, p. 22-23)

Entretanto, como afirmam as autoras, ainda que pensados como enraizados na biologia, acreditava-se que o meio social podia influenciar os indivíduos e suas emoções, principalmente no que se referia às suas formas de expressão. As manifestações de afeto ou a sua inibição, os usos do corpo na expressão das emoções e a linguagem verbal para referir-se a experiências afetivas resultariam do aprendizado de regras sociais, que variariam de acordo com os contextos, as épocas e as sociedades. (REZENDE e COELHO, ibid, p. 24)

Sob um olhar dualista que entende os processos do corpo distintos dos da mente, a emoção aparecia nesse contexto associada ao corpo e contraposta à razão, por sua vez ligada à mente. Essa associação, por sua vez, construía uma noção dos afetos como expressões imprevisíveis, instintiva e inferior à racionalidade, o que levava a pensar os sujeitos mais “emocionais” como “descontrolados”, vulneráveis e até perigosos. (Ibid, p.26)

Como vimos, se as emoções são percebidas como intimamente relacionadas aos processos biológicos e, como discutimos no tópico anterior, se durante o século XX uma série de saberes produziram a noção de corpos homem\mulher distintos, então os processos entendidos como exclusivo aos corpos dos homens levariam a experimentação de emoções e sentimentos de forma radicalmente diferente que os corpos das mulheres. Como tratam Rezende e Coelho:

O grupo que ainda hoje é fortemente associado às emoções são as mulheres. Com seus comportamentos tidos pelo senso comum e pela medicina como estreitamente regulados pelos hormônios, as mulheres seriam mais instáveis emocionalmente e, portanto, menos racionais. (REZENDE e COELHO,

Todavia, como as autoras ressaltam, a ligação entre emoções e hormônios, por exemplo, só pode ser pensada a partir da postulação pela medicina dessa noção de secreção de substâncias que atuam na fisiologia, o que só ocorre no século XX. Certo, entretanto, que um fato científico fora então produzido e uma “verdade” passou a ser divulgada: mulheres, por sofrerem variações cíclicas na produção e absorção de hormônios, tendem a ser mais emotivas, temperamentais e descontroladas.

Vinciane Despret, ao analisar a trajetória teórica de Catherine Lutz, uma das pioneiras nos estudos no campo da antropologia das emoções, afirma que a atribuição de uma emoção como sendo própria a uma categoria identitária pode gerar prejuízos aos sujeitos aí identificados, significando, inclusive a sua exclusão do espaço político. Segundo Despret:

o contraste emoção/razão, que, aliás, confirma outros dualismos afiliados – passividade/atividade; natureza/cultura; corpo/consciência/ subjetividade/pensamento racional; valores/fatos; transbordamento/controle- vontade – é um contraste que hierarquiza os seres. Do lado dos detentores privilegiados da razão, encontraremos aqueles que têm o direito do exercício no espaço público (os homens, se possível, brancos e civilizados); do lado das emoções, encontraremos aqueles que dele são excluídos: as mulheres, as crianças, aqueles que durante muito tempo chamamos primitivos, até mesmo as classes trabalhadoras (sempre à beira de um motim). (VINCIANE DESPRET, 2011, p.31-32)

Na contramão de certas noções culturais essencializadas e dominantes no mundo social, estudos etnográficos foram produzidos de forma a relativizar os discursos sobre as emoções, inclusive as que se relacionavam às performances de homens e mulheres. Se o corpo, os modos e formas que o vivenciamos e as ideias sobre o seu funcionamento são diversas em cada contexto social e histórico, então as emoções seriam incorporadas de formas tão diversas quanto as formas de produção do corpo. Nesse sentido, as emoções passam a ser percebidas como “parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com o ambiente social e cultural, que são internalizadas no início da infância e acionadas de acordo com cada contexto” e que, por serem aprendidas, não há a percepção de controle das mesmas. (REZENDE e COELHO, 2010, p.30)

Embora diversos autores clássicos já houvessem tomado a produção de sentimentos, as expressões de emoções e sua função social como um dos eixos de análise em suas etnografias, é com a abordagem interpretativa, nos Estados Unidos em 1970, que abre-se o caminho para a compreensão da construção de símbolos e suas interpretações com enfoque nas noções de

pessoa e das emoções. Constitui-se, então, uma esfera de estudos e pesquisas que toma as emoções como “um idioma que define e negocia as relações sociais entre uma pessoa e as outras”, podendo variar em um mesmo grupo social e que tem seu uso e expressão negociados em diferentes contextos gerando efeitos de poder. (REZENDE e COELHO, ibid, p.14)

No Brasil, o campo da antropologia das emoções se conforma como uma sub-área acadêmica própria na década de 1990, sendo institucionalizados grupos de estudos e pesquisas nas universidades e realizados encontros nas reuniões científicas e publicações em livros, coletâneas e periódicos.

Inicialmente com trabalhos etnográficos que enfocavam as tensões entre o caráter biológico x cultural e individual x social das emoções, os estudos socioculturais das emoções levaram ao desenvolvimento de uma compreensão dos afetos em seu potencial micro-político, capazes de alterar ou reificar macro-relações sociais que conformam as relações sociais em contextos micro e/ou interpessoais. As expressões das emoções perpassam, dessa forma, relações de poder, e atuam, também, na forma como os sujeitos se produzem nos contextos de interação a partir de identificações, seja desenvolvendo laços de amizade como criando alianças políticas, até mesmo definindo fronteiras, moralidades e limites entre modos de ser.

Vale ressaltar que, ainda que esses estudos tenham proposto diversos olhares sobre a produção e expressão dos sentimentos, as gramáticas emocionais e o potencial micro-político dos afetos, as ideias essencialistas e universais sobre os sentimentos ainda são tomadas, por vezes, nas narrativas que os sujeitos fazem sobre si, como caminhos para expressar sua “dimensão subjetiva”, a “verdade de si”. Como veremos nos próximos capítulos, nossos interlocutores por vezes recorrem a noções essencialistas sobre expressão de emoções e sentimentos como um modo de reivindicar seu pertencimento à identidade de gênero pela qual desejam ser reconhecidos. É nesse contexto de negociação discursiva e emocional que também reside o potencial micro-político das emoções.

Tendo adentrado brevemente na discussão sobre o campo das emoções, vamos a seguir discutir como a Antropologia se aproxima dos estudos sobre modos dissidentes de viver o corpo e a identidade de gênero em contextos sociais tradicionais. Tais experiências dissidentes foram configuradas pelos pesquisadores como “terceiro sexo” e “terceiro gênero”, algumas semelhantes às experiências ocidentais modernas, mas que se diferenciam destas pela função social que assumem nos contextos que se apresentam. Por fim, falaremos sobre como são pensadas as experiências “travesti” e “transexual” e quais marcadores identitários foram

apontados no processo construtivo dessas categorias para delimitar uma experiência da outra, ainda que no cotidiano, inclusive de minha pesquisa, as fronteiras entre essas experiências sejam sempre borradas.

1.3. “O hábito não faz o monge (mas fá-lo parecer de longe)”: terceiro sexo,

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