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c) “Sorte de uns, azar de outros”: críticas ao processo transexualizador.

Com percebemos na fala de nossos interlocutores, a experiência da construção de si como transexual não obedece a um modelo único, sendo uma experiência pessoal que abrange inúmeras configurações. Apesar dos diferentes modos de subjetivação e desejo de construção corporal, as pessoas trans são, na verdade, percebidas a partir de uma marca identitária que está atrelada a um saber-poder que regula as práticas, as tecnologias, os espaços destinados aos transexuais em nossa sociedade.

Sabemos que a transexualidade é vista como uma patologia, um adoecimento psíquico, especialmente por profissionais psi ou do campo jurídico, algo que deveria ser corrigido ao se adequar o corpo do transexual à sua psique. O modelo disponível de oferta de saúde e adequação corporal é um modelo biomédico que tem como fim a realização da cirurgia de redesignação sexual. As outras fases de construção corporal são consideradas apenas etapas para se chegar a esse objetivo maior.

O protocolo do Ministério da Saúde que regulamenta o processo transexualizador no SUS conforma, porém, a oferta de terapias corporais para aqueles que se dizem transexuais. Assim, uma vez tenha sido apresentado o desejo pelo procedimento cirúrgico, todas as outras terapias terão de ser também realizadas. É que o processo de preparação para a cirurgia, como vimos anteriormente, deve acontecer durante o período de dois anos, onde se avaliará a “performance” do transexual no gênero que ele se identifica, devendo a equipe profissional estabelecer o consenso para diagnosticar a transexualidade do sujeito em questão. Nem todos os transexuais, porém, desejam realizar todos os procedimentos previstos pelo protocolo. Como vimos, ainda existem suspeitas para alguns trans sobre a qualidade e significação das cirurgias. Outros não desejam realizar a hormonioterapia, como é o caso de Júlia, a seguir:

Olha, do ambulatório só procurei a fono, pela questão da minha voz, que eu tenho problema das pregas vocais, mas eu não utilizo nenhum dos outros médicos. Um, porque eu não tenho vontade de tomar hormônio, nunca tive, não gosto, entendeu? Eu também não tenho interesse pela cirurgia. Já passou pela minha cabeça, mas eu fico pensando... eu acho tão complicado essa questão da cirurgia. É uma decisão tão séria que eu prefiro não mexer agora. É por isso que eles não me interessam, porque se eu quisesse a cirurgia eu seria OBRIGADA (ênfase) a tomar hormônio e procurar eles. (JÚLIA – Entrevista em outubro de 2014)

Para Júlia, o fato de não realizar a hormonioterapia e não requerer o procedimento cirúrgico não inviabiliza sua condição de mulher trans. Ela havia, inclusive, mudado o prenome no registro civil. Entretanto, como argumentaram algumas mulheres trans em nossas conversas, sejam coletivas como individuais, e como vimos também nas noções que circulam sobre a transexualidade em documentos médicos e das políticas de saúde, o caso de Júlia seria entendido como uma experiência de travestilidade e não de transexualidade.Em alguns casos, não se trata nem do desejo da pessoa trans de poder optar pelo processo cirúrgico, mas este procedimento é inviável por uma variedade de questões. Esses casos, que “não são tão isolados assim”, não são previstos nos protocolos de atenção à saúde da pessoa trans, que acaba reproduzindo uma expectativa sobre as pessoas identificadas a partir dessa categoria e estabelece um modelo de saúde por vezes rígido, digamos engessado.

Tem casos até que a pessoa não pode se submeter por uma questão de saúde. Um garoto trans diabético não pode se submeter a uma cirurgia. E aí? Tem que ver todos esses casos isolados e que não são tão isolados assim.(CAIO - Entrevista em outubro de 2014)

Eles querem lidar com a população trans como se fosse todo mundo igualzinho. Como se fosse a vacina da gripe. “Vamos dar a vacina pra todo mundo! Vai servir pra todo mundo”. E não é assim. Tipo, as meninas geralmente precisam mais do acompanhamento com fonoaudiólogo, porque é mais difícil a mudança da voz delas, mas pra gente, na quarta dose da testosterona já modificou a voz. Realmente tem alguns meninos que querem que fique mais grave. Eu não quero. Então eu não vou. Pra quê? Ainda mais que se a gente for parar pra ir em todos os médicos que têm lá, a gente vai umas três vezes por semana. Se você for cumprir direitinho os dois anos, indo três vezes por semana lá, aí sim eu vou me sentir doente. Porque eu vou estar em um hospital três vezes por semana. Aí sim vai se tornar um tratamento médico. Tem essas especialidades que as vezes são desnecessárias para algumas pessoas. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014)

A fala de Caio chama atenção para o aspecto da obrigatoriedade que as pessoas trans estão submetidas de se engajarem em procedimentos terapêuticos (seja a escuta psicológica, psiquiátrica, a hormonioterapia, o acompanhamento fonoaudiológico, etc) sem que percebam a necessidade efetiva para sua saúde ou para sua trajetória pessoal como transexual. Sem essa compreensão da necessidade do tratamento e estando submetido tanto tempo ao regime hospitalar, de exames, análises, escutas clínicas, diagnósticos, surge a sensação, de fato, de estar doente. Os serviços deveriam ser disponibilizados, como argumentou Caio, “de acordo com cada especificidade”, e não impostos em um modelo onde só se obtém o direito de acesso à uma terapêutica se a pessoa se submeter a diversas outras. Dessa forma, as falas de homens e mulheres trans, seja de algumas pessoas que entrevistei, seja nos encontros, palestras, nos

blogs e redes sociais, nos documentos produzidos pelas militâncias e movimentos sociais, têm

a oferta de serviços de saúde para as pessoas trans, por outro lado, houve a normatização e regulação rígida do acesso às terapias, proposto pelo Estado, o que faz que haja evasão de alguns serviços ou a busca por estratégias, alternativas ao modelo vigente, nem sempre legais.

Eu tenho certeza que se você for conversar com os profissionais eles vão dizer que a evasão é por culpa da gente, porque a gente não quer seguir os protocolos. Mas eles nunca vão questionar os próprios protocolos. Cara, é o meu corpo! Eu sei que eu não posso mudar o mundo, que eu não posso mudar a sociedade. As vezes até uma casa onde você mora você não pode mudar a estrutura. Se eu não tiver o direito de mudar o meu corpo, a única coisa que eu tenho... e eles ainda te tomam o direito de você usar do seu corpo, fazer dele o que você quiser. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014)

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