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Além do acompanhamento médico para a transição de gênero através da hormonioterapia, do treino da voz com fonoaudióloga, do acompanhamento psicológico, outro fator que leva muitas pessoas trans a buscarem o ambulatório é a promessa da realização da cirurgia de redesignação sexual. Algumas mulheres trans com quem conversei idealizam esse processo e referem-se a ele como o alcance de completude, felicidade, confiança e aumento da “autoestima”.

Ah, eu fico muito ansiosa. Aí pronto, a gente vai estar completa. Eu acho que a gente não vai ter mais problema na vida. É, então, acho que só a cirurgia mesmo. Porque teve o nome primeiro que levantou a minha autoestima. Aí logo depois eu juntei grana e coloquei prótese mamária. Ai levantou mais ainda a minha autoestima. Aí agora eu tô só esperando a cirurgia para ficar completa. Sem nenhum problema com meu corpo, sabe? Readequar realmente o meu corpo aquilo que eu penso na cabeça. Eu acho que eu vou passar a ser uma pessoa mais confiante. (ELEN – Entrevista em outubro de 2014)

Eu fui mais por conta da cirurgia né? Da mudança de sexo. Porque eu acho que é outra coisa que me... acho que quando isso acontecer eu vou morrer. (risos) De tanta felicidade. Porque eu já cheguei assim, até a sonhar acredita? Que eu tava fazendo a cirurgia e me livrando logo. Porque assim, comigo não aconteceu de desenvolver... ficou pequenininho... dá pra esconder. Mas eu não gosto. As vezes eu evito até de ficar me olhando no espelho... não gosto. (HELENA – Entrevista em outubro de 2014)

Me atenderam muito bem e a cada dia que passa eu tô gostando mais ainda. A cirurgia vai ser a maior felicidade na minha vida. Eu tenho meu marido. Ele não cobra, mas ele quer a minha felicidade. Ele tá

vendo... que eu converso muito com ele. Aí ele tá me dando força. (LUÍSA – Entrevista em outubro de 2014)

A adequação dos órgãos genitais e das marcas físico-corporais de sexualidade (os seios, por exemplo) aos caracteres de gênero desenvolvidos por meio de outras tecnologias biomédicas e à própria atualização da performance de gênero é, na verdade, o objetivo do processo transexualizador. Apesar de alguns especialistas já entenderem que a transexualidade, como qualquer experiência de si, é marcada por vivências heterogêneas, em grande parte ainda circula entre os profissionais e os documentos que regulamentam as práticas de saúde a noção de que todo transexual tem absoluta rejeição ao corpo e quer realizar o processo cirúrgico, sendo esse desejo o que os diferenciaria das experiências de travestilidade. Contudo, algumas pessoas trans entendem a transexualidade mais como uma condição subjetiva de identificação a um gênero específico, que pode ser construída pela performance social e não ser simplesmente “resolvida” por meio de um procedimento cirúrgico. Essa dúvida quanto à necessidade do procedimento cirúrgico ainda é ampliada quando apontam a qualidade do procedimento cirúrgico que hoje é realizado em nosso país.

Na maioria dos e das trans eu acho que há um desejo pela cirurgia. Mas quando a gente se depara com a realidade brasileira, por exemplo com a cirurgia genital, eu não vou nunca me submeter a uma cirurgia experimental, onde eu posso colocar em risco a minha saúde por uma coisa que, assim, vai influenciar? Vai. Pra mim, só pra mim. Em relação a outras pessoas, o que eu queria que influenciasse já tá. Eu não vou mentir que eu gostaria da cirurgia. Eu gostaria, seria a pessoa mais feliz do mundo. Mas eu também não quero qualquer coisa, de qualquer jeito (CAIO - Entrevista em outubro de 2014) Segundo Caio, há uma incompreensão por parte de alguns profissionais em relação ao fato de algumas pessoas trans se arrependerem do processo cirúrgico quando foi realizado. Se os profissionais de saúde podem entender o “arrependimento” como falta de maturidade, falta de conhecimento sobre o procedimento ou mesmo erro de diagnóstico (que identificou outro tipo de “doença” como transexualidade), Caio considera um caso como esse como um resultado que não atende às expectativas do que foi idealizado pelas pessoas trans em termos estéticos ou que ocasionou problemas de saúde não existentes antes do procedimento cirúrgico.

Eles falam também que há muitos trans que vão fazer a cirurgia, mas não sabem mesmo o que estão querendo. Certo, tem muitos meninos trans que fazem a cirurgia e continuam sem tirar a camisa. Mas vai ver qual é o problema deles, vai ver como foi feita a cirurgia, vai ver como ficou. Mas se você perguntar se antes tava melhor, não estava. Essa pessoa não se arrependeu da cirurgia. Não digo no caso de uma pessoa que faz uma cirurgia genital que dá errado, que você tem que fazer várias cirurgias depois, que fica sem uma coisa nem outra e as vezes não consegue nem fazer as necessidades, urinar direito, aí sim pode acontecer o arrependimento. Eu me arrependeria amargamente. Mas não me

arrependeria da transexualidade em si. Me arrependeria do procedimento. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014 )

Para Ana, a cirurgia seria importante como forma de adequar seu corpo ainda mais ao gênero feminino. Contudo, ela entende que esse processo de identificação é uma construção pessoal, subjetiva, que nem sempre terá o reconhecimento e validação da sociedade. “Fazer as pazes com o próprio corpo” se tornou um caminho válido para ela, que se compreende como mulher e consegue exercitar seu prazer, seu desejo, sua feminilidade mesmo em um corpo não cirurgiado.

Fazer um laser, uma cirurgia te ajuda a sentir menos masculina, porque a gente tem a neura do masculino. De quebrar a masculinidade dentro de si. E aí se entope de hormônio, vai fazendo laser... Eu sempre quis fazer uma neovagina. Mas aí eu fui descobrindo os prazeres, etc e tal e hoje eu não quero mais. Porque hoje eu sei que não é uma boceta que vai me fazer mulher. Não é uma aparência feminina que me faz mulher. Tá na minha cabeça. E tá na minha cabeça, não tá na tua. Sempre vai ter alguma coisa que vai me denunciar. Se eu fizer um exame nos cromossomos vai tá lá. O passado te denuncia. (ANA- Entrevista em setembro de 2014)

Vale refletir sobre os relatos, que acima foram expostos, em termos das dimensões do prazer e do sofrimento, quando meus interlocutores relacionam tais dimensões com suas práticas de cuidado e os desejos ou rejeições às práticas biomédicas voltadas à redesignação sexual. Como vimos discutindo ao longo do texto, apesar de diversos saberes terem conformado a transexualidade como uma identidade de gênero e uma patologia que seria “curada” com a readequação corporal, nós entendemos que há distintas formas de se produzir como “transexual”, uma vez que cada sujeito realiza trajetórias específicas de subjetivação, percebendo sua “verdade” como pessoal (fachada social, performance, desejos, corporalidade), ou seja, aquilo que o caracteriza e unifica como pessoa. Entre os meus interlocutores, o acesso à algumas tecnologias biomédicas que lhes permitissem realizar alterações nos códigos de gênero era posto como fundamental. Poder construir-se esteticamente como mulher ou homem faz parte dessa “obrigação”, isto é, que cada pessoa tem de realizar sua “verdade”, uma vez que só vivendo assim é que poderão se sentir “completos”, “realizados”, “felizes”, confortáveis em seus próprios corpos e, então, com elevada autoestima.

Entretanto, a forma como cada um irá alcançar esse projeto de “verdade de si” será sempre pessoal e a relação (emocional) que se fará com as os materialidades e saberes

indicadas pelos especialistas será negociada por cada sujeito. Se algumas das práticas de cuidado, como a administração de alguns hormônios, por exemplo, são concebidas como dolorosas, algo a ser evitado na construção corporal, entre outros essa dor é vista como algo “desejado”, se convertendo em satisfação pela realização da expectativa de uma aparência mais feminina ou masculina. O sofrimento, nesse caso, não pode ser percebido como absolutamente ruim, evitável, mas, tal como as pesquisas de Benedetti (2005), Figueiredo (2008) e Pelúcio (2009) com travestis indicam, é percebido por algumas pessoas como “a dor da beleza”, dor esta intrinsecamente ligada ao prazer42.

Em relatos que abordam o procedimento cirúrgico, vimos algumas mulheres trans narrarem o intenso desejo e a expectativa de que a cirurgia de redesignação sexual lhes possibilitará alcançar o corpo que corresponde às suas verdades. Para essas pessoas, o sofrimento que experimentam pela rejeição ao corpo “errado” com o qual nasceram é algo que só terá fim quando a cirurgia ocorrer. Paradoxalmente e contrariando, inclusive, a visão psiquiátrica da transexualidade, alguns trans não desejam o procedimento cirúrgico, seja porque já alcançaram uma fachada “passável”, que lhes garantem assegurar suas performances cotidianas, seja porque conseguem obter prazer com os órgãos sexuais com que nasceram, seja ainda porque tem medo de que o procedimento cirúrgico não tenha um resultado eficaz. Nesse último caso, a recusa ao procedimento cirúrgico seria, então, uma tentativa de evitar o possível sofrimento, uma vez que há relatos de pessoas que tanto perderam a sensibilidade sexual quanto tiveram resultados estéticos “inadequados”.

Em resumo, os relatos mostram que há sempre uma busca das pessoas trans da realização da “verdade de si”, seja pela adesão a certas técnicas de cuidado que permitem que elas alcancem uma estética e uma performance que se adequem à noção de “eu” que possuem, seja pela rejeição dessas mesmas técnicas quando estas se mostram como uma ameaça à saúde e integridade do “eu”. A recusa ao sofrimento e a busca de felicidade, autoestima e bem-estar é o que move todas as negociações que são feitas quanto às práticas de cuidado de si e aos usos das tecnologias biomédicas, não só nos espaços institucionalizados de saúde mas em todos os contextos de socialidade das pessoas trans.

42 Como argumenta Adriana Figueiredo, “Nesta elaboração de uma linguagem de satisfação, as travestis, articulando dores e prazeres, identificação e exclusão, relacionam as dores de suas práticas de modificações corporais sempre a um fator positivo de realização, empreendimento, distinção e adequação, usando a “dor da beleza” implícita nesses cuidados como algo a ser dignificado em suas articulações simbólicas”. (FIGUEIREDO, 2008,p.105)

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