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Estamos mostrando que as categorias identitárias são necessárias em sociedade como forma de conceituar experiências, categorizar sujeitos e permitir que as pessoas se posicionem em diferentes contextos sociais. Em muitos momentos, a posição que o sujeito ocupa condiz com a imagem que ele têm de si e a fachada social que ele apresenta nos contextos de interação. Em outros, entretanto, a fachada não se sustenta. Por vezes, o lugar de onde o sujeito se posiciona e se constrói é moralmente desvalorizado e ele passa a ser visto pelo estigma. Em consequência, o outro pode não ser reconhecido como sujeito, mesmo como humano, resultando em violência e na negação de direitos. Nesses casos, a produção da identidade assume outra função, a de vir produzir um saber sobre uma experiência, visibilizar essa experiência e demandar o reconhecimento para as pessoas que se posicionam em termos, digamos, de um “mesmo lugar”, de uma mesma categoria.

Nancy Fraser e Axel Honneth (2003) argumentam que as categorias de identidade têm relação com a justiça e os direitos, traduzida através da formulação de políticas de reconhecimento e redistribuição, que consistem em duas noções-chave para entender as reivindicações de justiça social trazidas à tona por atores políticos e movimentos sociais. A ideia de redistribuição significa a demanda por igualdade no acesso a bens, recursos e serviços, nem sempre disponíveis a todas categorias sociais. Por outro lado, as “políticas de reconhecimento” sustentam que a obtenção de justiça social e igualdade não depende da imposição dos valores e normas das “culturas dominantes” (FRASER, HONNETH, 2003, p.08). Para Fraser e Honneth, o reconhecimento seria “uma relação recíproca ideal entre sujeitos na qual cada um vê o outro como como seu igual e também como separado dele”.

Sendo condição para a constituição de subjetividades, os autores concluem que “one becomes an individual subject only in virtue of recognizing, and being recognized by, another subject. (FRASER, HONNETH, ibid, p.10). Assim, a possibilidade de acesso a direitos, que passa pelo reconhecimento da humanidade, cidadania, possibilidade de existência do outro, não é dada a priori, mas apenas em relação. As políticas de reconhecimento indicariam, então, o agrupamento de “políticas de identidade” que viriam reivindicar direitos, reconhecimento, políticas afirmativas para um conjunto específico de pessoas formado em torno de uma categoria. Para os autores, os sujeitos injustiçados além de, em muitos casos, não terem acesso aos mesmos bens e recursos em relação a outros sujeitos, têm seus direitos negados também por serem menos reconhecidos em termos de respeito, estima e prestígio. (FRASER, HONNETH, ibid, p.14). Esse menor reconhecimento resulta do fato de muitas identidades serem formadas a partir de estigmas. À identidade, atrela-se uma carga moral:

Os direitos nos são negados porque o que você espera que seja uma travesti, uma transexual ou um gay? Espera que seja uma pessoa pervertida, que não esteja inserida no mercado de trabalho, que não seja uma pessoa respeitável, que seja uma pessoa prosmíscua. Tudo isso é um mito, a sociedade gostaria que nós fôssemos desse jeito. A partir do momento em que eu quebro, que você quebra esse paradigma as pessoas passam a se perguntar porque ela é diferente? Mas não só existe eu de diferente, existe um leque de meninas que estão na universidade federal fazendo seus cursos e eu respeito demais essas meninas que as vezes acham que vão ter dificuldade na inserção no mercado de trabalho, mas eu acho que elas tem personalidade suficiente pra provar que são capazes. Da mesma forma que as mulheres, nós ainda temos que nessa cultura machista provar que somos capazes. (DANIELA – entrevista em setembro de 2014)

Se a causa da injustiça está enraizada no que Fraser e Honneth chamaram de “padrões de representação social”, esta situação apenas mudaria se a própria representação fosse afetada, ou seja, se houvesse o reconhecimento e a valorização da diversidade social e a positivação das identidades desrespeitadas. No caso acima tratado por Daniela, ela argumenta que os padrões de “representação social” sobre as pessoas que se deslocam do binarismo homem/mulher estão relacionados à perversão, à promiscuidade, ao desrespeito. Entretanto, Daniela argumenta que “um leque de meninas” está rompendo com esse padrão ao ingressarem em universidades, estudarem e se especializarem para o mercado de trabalho. O peso dado ao trabalho e ao estudo vem contrapor-se a ideia da travesti e do transexual que abandona a escola e que sobrevive da prostituição, do tráfico de drogas ou da prática de delitos, experiências que se somam como marcas morais à já estigmatizada experiência de ser travesti ou trans. Segundo Daniela, assim como as mulheres “biológicas” tiveram que romper, em certo momento, com os discursos e representações que negavam seu direito à participação

na vida pública, ao trabalho, etc., as pessoas trans precisam também “provar que são capazes”, enquanto sujeitos sociais.

Contudo, se a identidade é necessária para a própria organização política ao agrupar os indivíduos em torno de uma mesma categoria, ao se constituir como uma causa, definindo demandas sociais, formando plataformas e levantando bandeiras, ao mesmo tempo a identidade se mostra limitada, levando a proposição de críticas dentro do próprio movimento social entre grupos e ativistas que entendem que a adoção de certas terminologias pode se constituir como uma barreira ao processo de reconhecimento.

Judith Butler (2008) argumenta que os termos políticos que se ligam a categorias identitárias e buscam a partir delas explicar uma performance coerente, uma experiência específica e idêntica, findam por fracassar nessa promessa de “unidade, solidariedade e universalidade” que é necessária para a mobilização política. (p.269) Segundo a autora: “Em los últimos años, los términos de identidad parecieron prometer, de diferentes maneras, um reconocimiento pleno” que, uma vez que não possa ser concretizado, leva, eventualmente, à produção de insatisfação e ressentimento contra as mesmas categorias identitárias, problematizando internamente os movimentos sociais, gerando rupturas internas que fazem o questionamento das categorias de representação. (BUTLER, 2008, p.268)

Analisando a categoria “mulheres”, Butler afirma que essa posição de sujeito não se refere a um ente preexistente, mas, ao contrário, faz parte da negociação e da articulação permanente de agrupamentos de sujeitos em relação a outros significantes no campo político. A impossibilidade de fixar um significante, segundo a autora, tem como sua consequência imediata que o “fundamento” do próprio movimento político seja muito mais um espaço de rearticulação que nunca deveria estabelecer o fechamento da categoria. Contudo, o que acontece, muitas vezes, são disputas entre os atores que se mobilizam em torno de uma política de identidade que produz “autodefinições” e “testemunhos ainda mais personalizados e específicos de auto-revelação” com o propósito de encerrar a categoria, ainda que, tal como diz Butler, nunca satisfaçam o ideal que sustenta a própria política. (BUTLER, 2008, p.311)

No caso da transexualidade, além dos limites das categorias identitárias, há o fato de que o reconhecimento que é buscado acaba por vincular-se, em muitos casos, às categorias de homem e mulher e não, especificamente, de transexual. A fachada social vem expressar uma imagem de si “mulher” ou “homem”. Ao ser mantida a fachada, quando pessoas trans tornam- se “passáveis”, muitos sujeitos abandonam a categoria transexual, que só se faz necessária

para essas pessoas quando precisam explicar o desacordo entre a imagem de si e aquilo que seus corpos mostram. Dessa forma, nem todas as pessoas trans acham necessário nomear a sua experiência em todos os espaços como “transexualidade”, embora reconheçam a importância do uso da categoria e se posicionem a partir dela para fins políticos. Trata-se de uma forma de representar as pessoas que se constroem a partir da categoria e reivindicam reconhecimento e direitos específicos:

Eu fui muito abençoada com meus pais. Eu nunca precisei me afirmar como gay, ou travesti ou transexual para eles. De forma nenhuma. E nem fico me afirmando o tempo todo. Falo muito essa fala por ser parte do movimento social e por representar toda uma classe LGBT. Hoje eu me declaro como mulher transexual não cirurgiada, embora esteja caminhando no processo transexualizador. (DANIELA – Entrevista em setembro de 2014)

No momento em que há necessidade de uma visibilidade eu acho que é importante assumir uma identidade. Mas na rua eu não vejo necessidade. Do mesmo jeito que eu não vejo ninguém gritando “eu sou hétero”, “eu sou gay”. [...] Quando você está passável, você explicar pra uma pessoa que você é trans é você dizer que você tem um genital diferente. Porque todo o resto do seu corpo se resume a isso. A pessoa esquece que você tem braços, pernas, olhos, cabeça, enfim. Você se resumiu a um genital, automaticamente. (CAIO - Entrevista em setembro de 2014)

Como Daniela e Caio argumentam, para eles, se afirmar como transexual faz parte de um processo de representação e visibilização de uma categoria política. No cotidiano, muitas vezes se posicionar através dessa categoria, quando a performance, o corpo e mesmo os documentos já sustentam um lugar de mulher ou homem, gera mais constrangimentos que realmente compreensão. Como Caio afirma, se dizer trans para alguém que já enxerga uma fachada de homem é você marcar esse corpo com um desacordo, um genital que não corresponde a fachada, fazendo a pessoa ser vista pelo estigma e não em sua totalidade. Aqui, mais uma vez, falamos de um limite intrínseco à qualquer tentativa de se reduzir uma experiência em termos de uma categoria, ainda que a vida política e as relações sociais não se sustentem sem essas mesmas categorias.

Ainda assim, entendemos que a busca por reconhecimento, seja a partir da transexualidade ou do lugar de homem ou mulher, é o que move tais sujeitos ao engajamento com serviços, tecnologias e políticas que os permitirão constituir uma fachada social que entendem como correspondente à compreensão subjetiva sobre quem são “verdadeiramente”. Como afirma Luarna Cortez (2015) em sua etnografia sobre o processo de transição vivido por homens transexuais:

O reconhecimento é o que torna a experiência trans “social” no sentido estrito. É na busca por ele que as mudanças corporais são realizadas; é nessa

procura que os sujeitos acessam (ou não) um serviço de saúde a fim de utilizar seus direitos. O próprio uso do nome social é um reconhecimento que o Estado dá às pessoas trans, do tipo formal, institucionalizado. E quando perguntei em questionário a respeito da satisfação em relação ao próprio corpo, a resposta quase uníssona me disse do momento em que serão reconhecidos como homens – pelo seu corpo, aparência física, pela sua voz, documentos etc. (CORTEZ, 2015, p.65)

A seguir, discutiremos sobre o panorama nacional e local dos movimentos sociais por direitos para transexuais, entendendo que as negociações identitárias, que estamos discutindo até agora, marcam a construção dos grupos, das lideranças e das bandeiras levantadas, levando tanto à alianças quanto à disputas e rompimentos entre sujeitos que se identificam a partir de uma mesma categoria.

2.2. “Uma andorinha só não faz verão”: movimentos, ativismos e

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