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1.1 (Des)construções do corpo, do sexo e do gênero

Figura 111 Qual a relação entre, de um lado, o corpo, como uma coleção de órgãos, sentimentos, necessidades, impulsos, possibilidades biológicas e, de outro, os nossos desejos, comportamentos e identidades sexuais? O que é que faz com que esses tópicos sejam tão culturalmente

significativos e tão moral e politicamente carregados? (WEEKS, 2007, p. 38).

As questões acima apontadas por Jeffrey Weeks instigam a análise das histórias do corpo, do gênero, do sexo e daquilo que se convencionou chamar “identidades” (orientações) sexuais e de como estas categorias adquiriram status de natureza em grande parte das culturas ocidentais e constituíram terreno fértil para o surgimento das experiências “trans”.

No contexto das sociedades ocidentais modernas, de forma ampla, acredita-se que há uma correspondência “natural” entre as categorias de corpo, sexo, gênero, desejo, maneiras de viver, etc. As possibilidades de enquadramento destas categorias seriam possíveis apenas em um referencial binário-normativo: “homem” ou “mulher”. Sobre tais categorias, entendemos que fazem parte de um enredo histórico que constantemente se atualiza, mas que também evoca questionamentos, promove mudanças radicais na forma como estas mesmas categorias são compreendidas, apropriadas e empregadas.

Por exemplo, no que se refere às “identidades” homem/mulher, estas passam por mudanças significativas desde quando os movimentos feministas (fins de 1960, décadas de 1970 e 1980) iniciam a busca por “modos-de-ser-mulher” não-submissos e menos afeitos à violência. Entretanto, ainda que fundamental para as primeiras discussões que condenavam a atribuição de modos específicos de viver-mulher justificados por um suposto “destino biológico”, o conceito de gênero não foi utilizado dentro do movimento feminista de maneira estável. Experimentou inúmeros questionamentos e continua sendo criticado e (re)modelado pelos atores deste e de outros movimentos (feministas, LGBT, transgênero, queer), das políticas governamentais e por acadêmicos que discutem os modos de viver corpo e sexualidade na contemporaneidade.

Na obra “A reinvenção do corpo” (2006), a pesquisadora Berenice Bento propõe tendências explicativas dos processos constitutivos das “identidades de gênero”, que se dividiriam em três momentos aos quais denominou de universal, relacional e plural. Tais tendências permitiriam a compreensão de como a noção de gênero se relaciona historicamente com a sexualidade, o corpo e a subjetividade. (BENTO, 2006, p. 69).

Simone Beauvoir, ao afirmar em 1948 que “não se nasce mulher” no livro “O segundo sexo”, atuou como uma pioneira dos movimentos feministas considerados universalizantes, primeira das tendências classificadas por Bento. Essas correntes eram consideradas universalizantes por suporem que a subordinação feminina estivesse

determinada por uma estrutura oposicional/binária e universal que traria de um lado a mulher subordinada e, do outro, o homem opressor. Segundo Pierre Bourdieu esses esquemas universais de pensamento instituem, arbitrariamente, oposições entre atividades e matérias (corporais) entre o masculino e o feminino, naturalizando diferenças. (BOURDIEU, 1998)

No campo da antropologia, Michelle Rosaldo afirma que na busca por origens dos sistemas de gênero, a antropologia viria sustentar “um discurso calcado em termos universais; e universalismo nos permite fazer deduções precipitadas sobre a significação sociológica do que as pessoas fazem ou, pior, do que, em termos biológicos, elas são”. Quando se parte para pesquisar tendo como base concepções universalistas, os dados etnográficos iriam apenas fortalecer a ideia de que as assimetrias sexuais, presentes em todos os lugares (assim como as relações de parentesco), seriam um tipo de verdade primordial ligada às exigências de uma psicologia sexual. (ROSALDO, 1995, s/p)

Distanciando-se dos modelos oposicionistas de gênero, alguns questionamentos começaram a ser formulados em meados da década de 1990 por outras vertentes dos movimentos feministas discutindo a noção de uma “mulher universal”, necessária para a formação de uma identidade ao movimento, mas que desconsiderava variáveis sociológicas (raça, religião, etnia, nacionalidade, “orientação sexual”) fundamentais para modificações concretas. As diversas “identidades”, ou melhor, os diversos modos de ser mulher não sustentavam mais uma concepção universalizante o que permitiu a produção de discussões também sobre o “ser homem”. As críticas feitas à colagem entre sexo e gênero tem como premissa os argumentos das teses de Joan Scott que questionava a diferença sexual como um atributo “natural” e afirmava que o gênero seria adotado como categoria analítica, sendo o que constitui relações de poder sustentadas em diferenças sexuais (SCOTT, 1995, p.88).

Abre-se espaço para a segunda tendência explicativa do gênero, segundo Berenice Bento, que indicava a formação de um movimento relacional em termos dos modos em que homens e mulheres se constituiriam socialmente.

Bento afirma que as pesquisas realizadas por esse novo campo abandonam a ideia de que “o homem se constrói numa relação de oposição à mulher”, como até então a tendência universal sugeria, e eram orientadas pela premissa que o masculino e o feminino se constroem relacionalmente entre modos de viver que se articulam para a formação de identidades de gênero diversas (MÉLLO & ALEXANDRE, 2011, 136).

Paralelamente aos trabalhos desenvolvidos nas ciências humanas, temos estudos das ciências médicas e da sexologia, dentre os quais os de John Money e Anke Ehrdardt que, ao trabalharem com crianças consideradas intersex12, passaram a utilizar o termo gênero em 1947 para conceber o “sexo psicológico”. Queriam demonstrar que tal “sexo psicológico” poderia ser moldado pelos pais das crianças intersex, independente do “sexo natural” (anatômico/genético) de nascimento. Ehrhardt, Money e as primeiras feministas dos movimentos universalizantes e relacionais colocaram, portanto, os termos de tal maneira que o sexo viria representar a anatomia e o funcionamento fisiológico do corpo (matéria biológica naturalizada), enquanto o gênero representaria as forças sociais que moldam o comportamento (o construto social/cultural). (FAUSTO-STERLING, 2001, p.14)

Em 1972, os sexólogos John Money e Anke Ehrhardt popularizaram a idéia de que sexo e gênero são categorias separadas. Sexo, diziam, se refere aos atributos físicos e é anatômica e fisiologicamente determinado. Viam o gênero como uma transformação psicológica do eu – a convicção interior de que se é homem ou mulher (identidade de gênero) e as expressões comportamentais dessa convicção (FAUSTO-STERLING, 2001, p.15).

As duas primeiras tendências explicativas dos processos de construção das identidades de gênero (universal e relacional), segundo o ponto de vista de Berenice Bento, fixam, portanto, no referencial binário (homem/mulher; feminino/masculino) o fundamento de explicação das teorias sobre sexualidade, subjetividade e gênero. Entretanto, quando introduzimos a categoria “corpo” e analisamos sua historicidade, abrimos espaço para que se critique a compreensão das condutas de homens e mulheres a partir das diferenças entre corpos “naturais” e “distintos”. (MÉLLO & ALEXANDRE, 2011, p.148).

Thomas Laqueur, em sua obra “Inventando o sexo”, afirma que, na segunda metade do século XVIII, na busca de que posições sociais distintas para homens e mulheres fossem marcadas e legitimadas, foi o contexto em que se passou a proliferar discursos de verdade sobre a sexualidade e teve, como principal consequência, a naturalização do corpo dimórfico, ou seja, um corpo possuindo duas configurações distintas, com órgãos e funcionamentos distintos: um “corpo homem” e um “corpo mulher”. (LAQUEUR, 2001, p.117).

Segundo o médico Galeno [...] as mulheres eram homens nos quais uma carência de calor vital havia resultado na retenção, no interior, de estruturas –

12 _ Termo originado no contexto médico para nomear pessoas que nascem com uma “gama de

ambiguidades sexuais”, tendo sido utilizado pelos ativistas políticos com um outro enfoque, inclusive o de criticar a “urgência” médica por um procedimento cirúrgico “corretor”. (MACHADO, 2008, p.110)

como as partes genitais – que, no macho, eram visíveis de fora. O vocabulário não distinguia sistematicamente as partes do corpo que hoje são percebidas como diferentes: por isso, durante um longo tempo só existia uma palavra para designar testículos e ovários, não sendo a vagina sequer nomeada (BOZON, 2004, p. 36)

Nesse contexto, o que diferenciaria homens e mulheres não seriam as características orgânicas (órgãos, cromossomos, hormônios, etc), mas as capacidades de reiterarem certos comportamentos e ocuparem determinados lugares de poder. “Ser homem ou ser mulher era possuir um papel social [...] e não apenas ter um corpo diferente. Se não tivesse um comportamento adequado, um homem corria o risco de se afeminar” (BOZON, 2004, p.36).

Desta forma, as práticas advindas de diferentes contextos científicos contribuíram com a produção de corpos-sexuados na medida em que também diferenciaram e naturalizam órgãos próprios tanto para mulheres como para homens. Ou seja, sobre uma pressuposta diferença estética, se convencionou naturalizar uma espécie de harmonização de formas a fim de conservar os pressupostos do que caracteriza um homem e uma mulher. Percebemos que as práticas discursivas de fundamentação biológica ao “darem nome” aos corpos, ao contrário de uma descrição (intencional e supostamente) neutra da realidade, fabricam estes corpos, em vez de simplesmente descobri-los e descrevê-los.

Acompanhando as mudanças nas nomenclaturas da biologia, que foram produzidas para diferenciar corpos-homens e corpos-mulheres, toda uma “psicologia da diferença” veio a qualificar o que era apropriado e esperado em termos da “personalidade” e dos “comportamentos” destes corpos agora tão distintos. A partir da construção de corpos “naturais” de homem e mulher, busca-se justificar os comportamentos e os modos de vida em uma sociedade a partir dos elementos “orgânicos” desse corpo. Nas sociedades ocidentais modernas, vivemos sob uma lógica heteronormativa, segundo a qual “nosso gênero” é (nós somos) o que nossa genitália “naturalmente” informa.

O corpo “normal”, portanto, estaria inscrito no que Judith Butler (2008) chamou de matriz heterossexual, definida como o modelo que confere inteligibilidade cultural ao gênero, naturalizando corpos e desejos. A matriz heterossexual pressupõe que um corpo “coerente” possui um sexo estável expresso mediante um gênero estável. Desta forma, masculino expressa homem e o feminino expressa mulher.

A noção de sexo entendido como categoria natural e, portanto, aquilo que não dá margem à modificação, o lugar passivo, pré-discursivo, essencial, sobre o qual o construto social “gênero” viria incidir, é amplamente discutida por Butler. Ao falar que o “social” se

imporia à “natureza”, e entendendo que não há o “natural” fora de um discurso/prática sobre ele (que por si só já e social), poderíamos propor, portanto, que o gênero materializaria o “sexo”, entendendo tal materialização como “um processo [...] que se estabiliza através do tempo para produzir o efeito de fronteira, de permanência e de superfície o que chamamos matéria” (BUTLER, 2008, p. 28).

[...] el sexo es uma construccion ideal [...] No es una realidade simple o uma condición estática de um cuerpo, sino un proceso mediante el cual las normas reguladoras materializan el “sexo” y logran tal materialización em virtude de la reiteración forzada de essas normas. Que esta reiteración sea necesaria es una señal de que la materialización nunca es completa (BUTLER, 2008, p.18)

É nesse sentido que Butler defende a noção de performatividade, entendida como “a prática reiterativa e referencial mediante a qual o discurso produz os efeitos que nomeia”. Desta forma, os corpos deveriam reiterar o lugar-homem/lugar-mulher a eles qualificados desde mesmo antes do nascimento, ao ser realizado o exame da ultrassonografia, quando será impresso sobre um corpo todo o destino de comportamentos, contornos, ações, modos de ser, ou seja, quando o gênero materializará na superfície deste corpo um sexo dentro do referencial binário de homem ou mulher. (BUTLER, 2008, p.18).

Mas se não falamos mais em termos de natureza e sim de performances corporais de gênero e sexualidade, abrimos espaço para uma última perspectiva, dentre aquelas sugeridas por Bento, o denominado movimento plural. Esta tendência se caracteriza principalmente por críticas ao conceito de identidade e por conceber que as experiências de gênero e da sexualidade são subversivas, escapando às expectativas sociais e suas categorizações.

Beatriz Preciado (2011), em lugar da noção de performatividade, entende o gênero como uma prótese, afirmando que esta prótese não passa de imitação do que, ficcionalmente, foi naturalizado como o que constitui o ser-homem e o ser-mulher. Um objeto que assume a função do órgão funcionaria como prótese, da mesma forma como o órgãoinstituído como “natural”. Nesse sentido, se os considerarmos como ficções de gênero, os conceitos de natural e artificial, imitado e imitador não possuiriam mais estabilidade.

Entendemos, portanto, que nossa sociedade vive regulada por uma matriz heterossexual que pressupõe que a sexualidade e a “identidade de gênero” devem encontrar, irrestritamente, estabilidade no “corpo biológico”. Desta forma, conforma e resigna: pênis- homem-masculino-heterossexual, de um lado, e, do outro, vagina-mulher-feminina-

heterossexual. Tudo aquilo que não estiver idêntico a esta normatização deve deixar de existir: deixa de ser um sujeito-humano possível e torna-se abjeto, o que não se adequa ao que dita o “corpo biológico”. Gays, lésbicas, travestis, transexuais, crossdressers, drag queens, drag

kings13, constróem seus corpos deslocando a suposta natureza e coerência da cadeia corpo- sexo-gênero-desejo. Por estarem afastadas da lógica binária (homem/mulher) de construção corporal, essas experiências de si passam a ser abjetas, ininteligíveis em uma sociedade heterocentrada (BUTLER, 2002). Devem ser estudadas, ajustadas, normatizadas e governadas.

Contudo, pessoas e grupos deslocados do ideal heteronormativo, dentre eles alguns(as) transexuais, vêm resistindo aos discursos que constroem os corpos como “normais” ou “anormais”. Proliferam movimentos que, além de realizações teórico-acadêmicas, são ainda compostos de articulações políticas, de ações micro ou macro-territorializadas de subversão dos códigos de gênero etc.

Tendo discutido brevemente sobre a naturalização das categorias “homem” e “mulher” em contextos Ocidentais, discutiremos a seguir como as emoções são enredadas nesse projeto de generificação de experiências, sendo algumas emoções e sentimentos experimentados como relativos à feminilidade e outros como exclusivos à expressão de masculinidade.

1.2. “Ao homem a razão, à mulher a emoção”: emoções generificadas e a

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