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4.3 “Nem todas as verdades se dizem”: os documentos e a (des)patologização da transexualidade

4.3.1. O prontuário

O prontuário é o conjunto de documentos que contém as informações sobre o atendimento médico de uma pessoa em um determinado serviço de saúde, que pode ser público ou privado. No prontuário estão dispostos as fichas de identificação, anamnese, exames, diagnóstico (laudo), da evolução clínica e prescrição médica (terapêutica ou medicação ministrada ou prescrita) bem como a ficha de alta ou óbito. O prontuário é um documento sigiloso, não podendo seu conteúdo ser compartilhado com terceiros. Entretanto, apesar de sigiloso, o prontuário é de propriedade da instituição e do próprio paciente, devendo este ter acesso às informações disponíveis sempre que solicitar. Como está disposto na resolução n.1.246/88, do Conselho Federal de Medicina, que trata do Código de Ética Médica, é vedado ao médico:

Art. 69 - Deixar de elaborar prontuário médico de cada paciente. Art. 70 - Negar ao paciente acesso a seu prontuário médico, ficha clínica ou similar, bem como deixar de dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionar riscos para o paciente ou para terceiros.

De acordo com a portaria 2.803 de 2013 do Ministério da Saúde que define as diretrizes de assistência ao usuário dos ambulatórios e hospitais que realizam o processo

transexualizador, o “Registro das Informações do Paciente” do ambulatório deve constar de um prontuário único para cada paciente “que inclua todos os tipos de atendimento a ele referente”. Assim, as informações requeridas segundo a portaria são: identificação (nome social e nome de registro); anamnese; avaliação multiprofissional e interdisciplinar; evolução; prescrição; exames laboratoriais e de imagem necessários ao processo transexualizador na modalidade ambulatorial; sumário de alta e outros documentos tais como o Consentimento Livre e Esclarecido. Dessa forma, percebemos que o prontuário é uma peça importante na dinâmica ambulatorial uma vez que informa não apenas a trajetória médica (quando a pessoa trans chega ao hospital\ambulatório), mas inclui também elementos sobre a trajetória de vida, as experiências anteriores de uso de substâncias, alteração corporal e usos do corpo que compõem um enredo que influenciará nas tomadas de decisão da equipe sobre terapias, regimes de cuidado e no próprio diagnóstico.

Em alguns momentos de conversa com mulheres trans que faziam uso dos serviços do ambulatório, percebi que era compartilhado entre elas algumas suposições sobre as informações que deviam estar dispostas em seus prontuários. Em uma das conversas, uma mulher trans alertou a colega que aguardava atendimento com o psiquiatra que esta devia ter cuidado sobre o que comentava com ele, principalmente sobre o fato de que conseguia sentir prazer com o órgão sexual e que não percebia a cirurgia de ablação do pênis como algo fundamental, pois isso poderia influenciar negativamente em seu diagnóstico e que isso “vai ficar lá no prontuário”.

Em outra conversa, falava com Caio a respeito do uso de hormônios e ele confidenciou comigo que estava cogitando a possibilidade de utilizar hormônios de uso veterinário, uma vez que estes eram menos dolorosos do que aqueles comprados no Paraguai. Aparentemente, eles trariam bons resultados, se administrados em doses corretas. Chegou a me falar também que iria conversar com o médico do ambulatório sobre essa decisão e pedir para que este solicitasse exames para acompanhar suas taxas de testosterona. Quando eu lhe questionei se esta solicitação iria “complicar o prontuário”, ele me respondeu que não ligava mais para o prontuário. “Eu acho que desde a primeira consulta com o psiquiatra meu

prontuário já está complicado” disse, referindo-se ao fato de não ter mais buscado o

acompanhamento com este profissional por acreditar que este havia interpretado mal algumas informações compartilhadas em uma primeira consulta.

O prontuário, então, é entendido como uma materialidade que pode ser tanto aliada quanto rival ou complicadora no processo de avaliação das pessoas trans para concessão de terapêuticas, quando há o diagnóstico de “transexualismo”. Frequentemente, portanto, percebia as dicas que um usuário compartilhava com outro sobre o que devia ser dito e o que devia ser ocultado no momento das consultas, de forma que o prontuário pudesse sustentar uma história coerente quanto às experiências de um sujeito em relação à transexualidade.

Outro problema é quando tem um trans que não é heterossexual. Já dá problema. É que isso é composto por todo mundo da equipe, o que eu acho muito complicado, porque fica tudo no seu prontuário. Tudo, de todos os médicos. Aí, por exemplo, eu vou falar sobre o meu genital com um médico tal, aí ele vai colocar no meu prontuário. E a fonoaudióloga vai ter acesso. É meio que uma forma de fazer com que você não minta. Você chega pro psiquiatra e diz “Não, eu nunca tive nenhuma relação homossexual. Não gosto de homem”. Aí você vai fazer um exame com o ginecologista e ele vai saber se teve ou não. E vai ficar lá no seu prontuário. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014 )

De acordo com o relato acima, a percepção de Caio é que o prontuário serve para “descobrir” quem de fato o sujeito é, qual a sua “verdade”, onde se localiza seu desejo, quais as experiências que confirmam ser ele, de fato, transexual e quais experiências podem colocar essa certeza em xeque. Uma vez que uma informação tenha sido registrada no prontuário, ela passa a ser uma prova nesse processo investigativo que parece se tornar o acompanhamento médico e psiquiátrico. Como indica Caio, é “uma forma de fazer com que você não minta”.

O que está em jogo são discursos de verdade: a do sujeito trans que busca ter reconhecida a verdade “íntima, subjetiva e essencial” pela qual constrói sua fachada, requer a mudança do nome e performatiza um modo de ser mais feminino ou masculino e a outra verdade, atestada pelo olhar do especialista, que confirme que a verdade que o sujeito reivindica é, de fato, onde está encerrada a sua identidade.

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