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Havia me encontrado com Caio para realizar a entrevista na Universidade Federal da Paraíba. O rapaz, que já havia iniciado vários cursos diferentes de graduação, afirmava que se sentia a vontade nesse lugar. Conversávamos a mais de duas horas em uma praça sem grande movimento quando fomos interrompidos por um casal que passava perto de onde estávamos sentados. Caio os cumprimentou e perguntou por um amigo em comum. Ao se afastarem, Caio, falando em tom de voz mais baixo, me confidenciou: “Tá vendo eles dois? Estudaram comigo. Mas não sabem nada que eu sou trans não”. (Trecho do Diário de Campo – Outubro de 2014)

A confidência de Caio chama atenção para um último aspecto levantado em algumas das conversas que tive. Envolve a necessidade que alguns de meus interlocutores sentiam de preservar suas experiências de si, não falando abertamente sobre ser transexual. Caio afirmava que, uma vez possuindo uma fachada social passável, expor a experiência da transexualidade o tornava, na verdade, vulnerável, ou seja, passível de estigma. Ainda assim, considerava importante existir uma identificação a partir da categoria trans como uma forma de promover ativismo e luta por direitos.

Como pras meninas o processo é, digamos, mais difícil, acho que elas percebem que as pessoas olham pra sua cara e veem que você é trans. No meu caso, ninguém que olha pra minha cara vai saber que eu sou trans. Então pra que que eu vou contar isso pra alguém? Só que tem gente que leva isso pra um extremo, tendem a se isolar mesmo, se esconder. (CAIO - Entrevista em outubro de 2014)

Caio afirmou que sentia dificuldade de conhecer alguns dos homens trans que estavam inscritos no protocolo transexualizador do Ambulatório de João Pessoa, uma vez que muitos evitavam se expor ou conhecer outros transexuais. Eles compareciam ao ambulatório apenas para as consultas, negando qualquer forma de sociabilidade com outros trans que estivessem no serviço de saúde. Afirmou, inclusive, que os homens trans teriam mais facilidade de preservar a fachada social, pois as transformações corporais se davam mais rapidamente com

eles do que com as mulheres trans, o que possibilitava que eles reivindicassem fora do contexto médico o reconhecimento como homem e não como transexual.

Todavia, essa mesma “invisibilização” acaba por tornar os homens trans preteridos dentro do movimento, retardando os avanços nas políticas destinadas a esse grupo específico. Presenciei uma conversa entre Daniela e Caio, na qual Daniela criticava a postura de distanciamento do rapaz e de outros homens trans, além da falta de organização política e representação de homens trans em João Pessoa. Isso não permitia, segundo ela, que as demandas dos homens trans como sujeitos fossem ouvidas, encaminhadas aos setores competentes e solucionadas, demandas estas que geravam, inclusive, o afastamento de alguns rapazes do processo transexualizador, mantido em serviços de saúde, tal como o ambulatório.

Há espaços que a gente sente a necessidade de se visibilizar pra que políticas públicas aconteçam, enfim... Mas há espaços em que a gente não quer visibilidade até porque isso pode nos tornar vulneráveis à violências. [...] Separar, separar, não dá. (BRUNO – Entrevista em setembro de 2014)

Bruno, por sua vez, relatou durante a entrevista a dificuldade que sentia em “dar a cara a tapa” e se expor como homem trans e ser porta-voz do movimento. Ele, que havia sido uma das lideranças do movimento de homens trans de João Pessoa, a frente de campanhas, mobilizações e da realização do I Encontro de Homens Trans do Norte e Nordeste e da Semana de Visibilidade Trans (dos quais falamos anteriormente), reconhecia estar afastado do movimento uma vez que agora, casado e pai, não queria expor a si mesmo e sua família ao estigma ligado à transexualidade. Sempre evitando falar em sua esposa e filho, Bruno afirmou que alguns dos parentes e amigos próximos ao casal desconheciam que ele fosse homem transexual e ele temia que, ao se expor como ativista a partir desse lugar, essa experiência fosse tornada pública.

Se entendemos que a busca pela verdade de si faz parte desse projeto de produção pessoal como um modo de garantir autodesenvolvimento e bem-estar, gerando, assim, um projeto de “tornar-se quem se é”, percebemos que, de fato, posicionar-se a partir da transexualidade pode resultar na estigmatização, especialmente para os sujeitos já reconhecidos como homens ou mulheres. Ainda que a luta travada pelo movimento trans seja também por respeito às diversas identidades de gênero, sabemos que hoje posicionar-se a partir da transexualidade é estar sujeito, em vários casos, a preconceito, violências e, consequentemente, experimentar medos, humilhações, sofrimento, etc.

Ser verdadeiro, autêntico e, principalmente, ser reconhecido nessa verdade torna-se condição para ter confiança, prazer consigo mesmo, autoestima elevada e bem-estar. A auto- elaboração que cada sujeito realiza pressupõe que a performance e a fachada social bem como a subjetividade (como verdade de si) estejam coerentes. Ainda que experimentada no discurso como “essência”, essa verdade é, como vimos, negociada e produzida sempre em termos relacionais. Segundo os relatos de nossos interlocutores, que os próximos capítulos firmarão, uma vez que a pessoa trans se descobre como homem ou mulher e que apresente sua feminilidade ou masculinidade adequadamente, que também produza um corpo (de mulher ou homem) estética e socialmente aprovado, além de responder à noção de verdade que têm de si, então, é do lugar de homem e mulher que ele se posicionará, e não mais de transexual. Haverá, somente aí, a completude, a realização, a noção de “finalização” desse processo de “se tornar quem se é”.

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Nesse capítulo, vimos como o posicionamento dos sujeitos a partir de uma categoria identitária - transexual- é importante tanto para a produção de um governo de si, a enunciação de uma verdade, mas que também possui importância no cenário dos ativismos sociais e das lutas por direitos, que se constituem a partir das políticas de reconhecimento. Também discutimos que a produção de identificações, (auto)nomeações e as afirmações que os trans fazem sobre si próprios, sobre quem são, se mostram muito menos rígidas do que os saberes- poderes que conformam a transexualidade, dependendo muito mais dos contextos em que se dá a identificação, ou seja, sendo menos um apego pessoal ou uma necessidade intrínseca da categoria “transexual”. Por fim, discutimos sobre o panorama de ativismos trans no Brasil e em João Pessoa, atentando para o papel das suas lideranças e representantes na formação de um modo de “ser trans”, refletindo sobre os dilemas que envolvem a participação política e, por vezes, “a necessária” invisibilização da experiência da transexualidade.

A seguir, apresentaremos o Centro de Referência LGBT de João Pessoa, que, entre outros serviços, oferece assessoria jurídica nos casos de retificação do prenome nos documentos. Assim, discutiremos como a utilização dos documentos de identificação pode

expor as pessoas trans a diversas situações de constrangimento e como as emoções produzidas nesse contextos (raiva, medo, dor, vergonha) se convertem em narrativas de dor que possuem potencial micro-político para mobilizar os operadores do Judiciário à concessão de direitos.

3.

“PARA UMA ALEGRIA, MIL DORES”: O ESPAÇO LGBT E A TUTELA

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