• Nenhum resultado encontrado

0 Introdução geral

1.4.3 Ato III Transição

1.4.3.1 Cenas 1 a 3: O templário ama Recha

Na primeira cena, Recha e Daia esperam pelo templário enquanto Natan vai falar com Saladino. Daia exprime seu desejo ou esperança que Recha volte para a Europa, mas Recha se identifica mais com a Palestina, rejeitando o Cristianismo. Ela se refugia no racionalismo de seu pai adotivo Natan. Aqui Lessing coloca na boca de Recha considerações iluministas que não convencem, pois dificilmente poderiam fazer parte do repertório argumentativo de uma jovem tão inocente. Ela questiona a idéia que Jahvé pertença ao ser humano, que se possa saber o território ao qual pertençamos. Recha recrimina sua criada por imaginar-lhe um futuro europeu, longe do pai,

confundindo as sementes da razão semeadas em sua alma por Natan com as plantas e flores européias.

Recha. “(...) Wem eignet Gott? Was ist das für ein Gott,

Der einem Menschen eignet? Der für sich Muß kämpfen lassen? - Und wie weiß

Man denn, für welchen Erdkloß man geboren, Wenn man’s für den nicht ist, auf welchem man Geboren? - Wenn mein Vater dich so hörte!- Was tat er dir, mir immer nur mein Glück so weit von ihm als möglich vorzuspiegeln? Was tat er dir, den Samen der Vernunft, Den er so rein in meine Seele streute, Mit deines Landes Unkraut oder Blumen So gern zu mischen? (...)”54 p. 39

Na segunda cena, o templário entra e não permite que Recha se ajoelhe diante dele. A atitude dela perante a obediência moral do templário é irônica. O questionamento de Recha impressiona e perturba o templário, que subitamente se apaixona por ela. Recha quer conversar com ele, mas ele se mostra distraído, como todo apaixonado. Ao ser chamado duas vezes, o templário se vale disto como desculpa para ir embora, dizendo inclusive que Natan corre perigo. De novo, a caracterização psicológica de Recha não convence por ser nem juvenil, nem feminina o suficiente. Esperar-se-ia de uma mocinha como Recha que ela não tivesse essa abordagem irônica, ousada e racionalista. Também não fica claro que este tipo de comportamento insolente iria atrair um jovem de índole conservadora como o templário. A contradição e inconsistência do personagem ficam mais evidentes se lembrarmos que, no início da peça, a própria Recha, que agora se nos afigura como sendo tão racional, antes acreditava ter sido salva por um anjo. De modo algum é claro que Recha seja capaz do uso da razão, e mesmo que o fosse, não é claro que isso a tornaria mais atraente para o templário. Trata-se, portanto, de um personagem implausível que Lessing inventa, talvez o mais fraco na peça.

54 Recha. "(...) A quem possui Deus? Que Deus é esse, / que possui um ser humano? Que em seu nome / deve permitir que se lute? - E como sabemos / então, para qual terra nascemos, / Se não aquela na qual / nascemos? - Se meu pai te ouvisse! / O que ele te fez, para que me representasses sempre minha felicidade / como sendo possível só tão longe dele? / O que ele te fez, para que misturasses as sementes da razão, / que ele lançou tão puras na minha alma, / com as ervas ou flores de tua terra / com tanto gosto? (...)"

Na terceira cena, Recha confessa a Daia ser tomada por um sentimento de serenidade após os dias anteriores de instabilidade („Sturm”). Ela confia que o templário lhe será sempre querido (ou caro, wert) na vida.

1.4.3.2 Cenas 4 a 7: Natan educa Saladino: a parábola do anel como cerne

da peça

Na quarta cena, Sittah expõe a Saladino sua armadilha para capturar Natan, mas o sultão não se sente confortável com este modo de obter dinheiro do judeu. Mesmo assim, ele é convencido por sua irmã que, se o judeu é desonesto, deve ser tratado desonestamente. Sendo, porém, sábio e bom, deve ele então ser capaz de demonstrá- lo.

Na quinta cena, Saladino e Natan se encontram e, por causa do apelido dado ao mercador pelo povo, começam a falar sobre a sabedoria (Weisheit) e esperteza (Klugheit). Natan explica que o esperto é o que sabe alcançar a satisfação de seus interesses. Por sua vez, Saladino considera que o sábio é aquele que reflete sobre os preconceitos que o povo aceita sem pensar. Neste momento, Saladino coloca a questão capciosa a Natan sobre qual das três religiões, Judaísmo, Islã ou Cristianismo, seria a verdadeira e porque ele permaneceu judeu, dando-lhe tempo para preparar sua resposta. Lessing retoma aqui o desafio lançado por Johann Caspar Lavater (1741- 1801) a Moses Mendelssohn de ou refutar o Cristianismo quando isso era criminalizado, ou então converter-se do Judaísmo ao Cristianismo.

Na sexta cena, Natan, surpreso que Saladino tenha lhe pedido pela verdade e não por dinheiro, suspeita de uma armadilha, pois percebe que qualquer resposta em que preferisse uma religião à outra, o poria em uma posição difícil. Ele não pode defender o Judaísmo perante o defensor maior do Islã e, se defender seja o Islã ou o Cristianismo, ele teria que se converter. Daí vem-lhe a idéia de usar uma história para se desembaraçar da situação.

Na sétima cena, Natan anuncia que irá falar como se fosse ser ouvido por todo o mundo, por toda a humanidade. Saladino se diz contente com isto, pois considera que o sábio é aquele que se consagra totalmente à verdade („... das nenn/Ich einen Weisen!

Nie die Wahrheit zu/ Verhehlen! für sie alles auf das Spiel/ Zu setzen! Leib und Leben! Gut und Blut!”).

Lessing retoma o terceiro conto do judeu Melquizedek do primeiro dia do Decamerone de Bocaccio, em que Saladino pergunta a Melquizedek qual seria a verdadeira religião entre o Judaísmo, Cristianismo e o Islã. Enquanto na versão bocaccesca a intenção de Saladino é retratada como sendo de colocar uma armadilha, na versão lessinguiana, Saladino honestamente deseja ser esclarecido. Melquizedek resolve seu problema contando uma história. Um judeu tinha um anel muito valioso que era passado de pai para filho. Segundo a regra, apenas o filho mais virtuoso receberia o anel. Após algumas gerações ocorreu uma situação na qual o pai tinha três filhos excelentes, e que igualmente mereciam o anel. Mas havia só um anel. A solução foi fazer secretamente dois anéis idênticos ao original e, no leito de morte, o pai deu a cada um um anel, um de cada vez. Deste modo, cada um acreditou ter o anel, pois tudo foi feito de modo que cada um não soubesse que o outro havia recebido o anel também. No entanto, esta artimanha não poderia durar muito, e logo revelou-se que cada um dos três irmãos tinha um anel, e não era possível distinguí-los entre si. A solução foi, portanto, entender que os três eram igualmente dignos, e que não fazia sentido uma disputa entre eles. Por metáfora, a lição do conto é que as três religiões também são, a seu modo, adequadas para cada povo, e de valor igual. Deste modo, a sugestão é que haja tolerância e respeito mútuo entre elas.

Saladino é comovido por esta história e se envergonha de ter colocado uma armadilha para Natan, oferecendo-lhe sua amizade. Natan responde oferecendo então o seu dinheiro. Mencionando Natan também sua dívida para com o templário, Saladino o encarrega de trazê-lo para que Sittah possa ver sua semelhança com seu irmão Assad.

Na versão lessinguiana, a lição do anel é reforçada pelo vínculo familiar entre os personagens, que só se revelará mais tarde no enredo. Recha, filha adotiva de Natan, o judeu sábio, é, na verdade, irmã do templário que a salvou do incêndio. O Templário, que havia sido poupado por Saladino (que era curdo) por parecer-se a seu irmão é, na verdade, seu próprio sobrinho, que havia retornado da Europa à casa em Palestina na Cruzada. Assim, embora se queira fazer esta reunião da família de Saladino em uma

espécie de modelo para a confraternização da humanidade toda, ela se limita a povos médios-orientais. Nem o templário nem Recha são completamente alemães, sendo-o apenas do lado materno.

Cumpre ressaltar que, neste contexto, Natan se vale de uma narrativa para “responder” à questão que lhe foi posta. Não houve, a rigor, uma argüição lógica, mas uma descrição de eventos ficcionais através do tempo. Para que a equivalência moral e teológica entre Judaísmo, Cristianismo e Islã fosse estabelecida, seria necessária toda uma complexa discussão filosófica. A artimanha de utilizar a narrativa e a parábola de modo algum satisfaz a razão, e muito menos a ciência55. Assim, ao invés de demonstrar a “sabedoria” de Natan, Lessing mostra mais seu alto QI verbal (algo de resto constatado em estudos empíricos, cf. MacDonald, (MacDonald 1994), APTSDA, p. 190)56.

1.4.3.3 Cenas 8 a 10: A confusão do templário

Na oitava cena, o templário se questiona sobre seu amor por Recha, sua transformação face às experiências de captura, condenação à morte e perdão por Saladino, além da forte impressão que lhe foi causada por Natan, que não corresponde ao estereótipo que ele tinha do judeu. Considerando-se morto como templário após sua captura, exclama sua admiração por Natan: “Que judeu!” („Welch ein Jude!”). Deste modo, Lessing procura sempre reforçar o estímulo a se admirar o judeu como um ser superior.

Na nona cena, Natan informa ao templário que Saladino quer vê-lo. Natan convida o cavaleiro para sua casa, mas, sabendo que ele já estivera lá, indaga sobre a impressão causada por Recha. O templário diz que não quer vê-la se não o puder para sempre. Ele abraça o judeu e pede para ser aceito como filho, revela a Natan sua paixão por Recha e intenção de casá-la, mas o pai adotivo se mostra relutante. Há uma inversão de papéis então, em que o templário passa a exigir de Natan que não se

55

Veremos adiante algo similar no diálogo entre Tamino e o orador em A flauta mágica. Decisões cruciais são tomadas pelos personagens tendo como base não argumentos examinados socraticamente, mas apenas efeitos retóricos espúrios.

56 K. MacDonald resume assim os resultados sobre inteligência entre judeus Askenazitas: "Taken together, the data suggest a mean IQ in the 117 range for Ashkenazi Jewish children, with a Verbal IQ in the range of 125 and a Performance IQ in the average range. These results, if correct, would indicate a difference of almost two standard deviations from the Caucasian mean in Verbal IQ - exactly the type of intellectual ability that has been the focus of Jewish education and eugenic practices." A people that shall dwell

prenda à religião e permita que os afetos mais fundamentais (die erste Banden der Natur), de amor entre os gêneros e de indivíduo universal a indivíduo universal (Mensch) se realizem. Natan indaga, porém, sobre o suposto pai do templário Conrad von Stauffen, que o próprio Natan havia conhecido. O templário explica que ele, Curd von Stauffen, tem o mesmo nome que o pai. Natan explica, porém, que o Conrad von Stauffen que ele conhecera fora templário e, logo, não poderia ter tido filhos. Frustrado com esta investigação genealógica, e amargo com a falta de resposta sobre seu pedido pela mão de Recha, o templário rejeita o convite de Natan de ir a sua casa.

Na décima cena, Daia consegue extrair do templário a confissão de seu amor por Recha e o faz jurar que se comprometerá com sua salvação. Ao saber que Natan haveria recusado a proposta de casamento do templário, ela decide romper sua promessa de silêncio e revela ao templário a origem cristã e européia de Recha. Isto abala totalmente a confiança do templário em Natan. Confuso e perturbado, o templário se retira para decidir o que irá fazer. Daia lhe pede que a leve junto com Recha de volta à Europa.

De fato, o comportamento de Natan de manter sua filha adotiva na ignorância sobre sua origem e religião parece pouco “sábia” e “esclarecida”, e é o que possibilita toda a confusão de identidades na peça. Como justificar este obscurantismo de deixar a filha adotiva nas trevas, e conciliá-lo com a suposta “educação racional” e “iluminada”? Certamente, alegar que isto possa ser justificado pelo dogma que somos todos iguais não convence.

Além desta grave incoerência de Natan, Lessing sofistica demais os argumentos de Daia, fazendo-a especular descabidamente sobre o sentido das coisas e o caminho ao qual nos induz o Senhor, que estariam além do que o mero indivíduo esperto faria.

Daja. “Scheint freilich wenig Sinn zu haben. - Doch

Zuweilen ist des Sinns in einer Sache Auch mehr, als wir vermuten; und es wäre So unerhört doch nicht, daß uns der Heiland Auf Wegen zu sich zöge, die der Kluge Von selbst nicht leicht betreten würde.”57

57

Daia. "Parece realmente ter pouco sentido. - Mas / às vezes há sentido em algo / mais do que supomos; e não seria / inaudito, que o Salvador / nos trouxesse para si por caminhos que o esperto / por si não tomaria por si facilmente."

De fato, dada a sua condição humilde, falta de educação, e a simplicidade de sua fé, surpreende que uma criada como Daia possa sugerir uma suposta intervenção divina na paixão do templário por Recha.