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0 Introdução geral

2 Moses Mendelssohn como Natan

2.2 Jerusalém esclarecida (1783)

2.3.3 Mendelssohn como traidor deísta (Arkush e Sorkin)

A tentativa mendelssohniana de repensar o Judaísmo no interior do quadro conceitual proposto pelo cosmopolitismo iluminista, por mais incompleta e truncada que fosse, deixou marcas profundas na autoimagem étnica judaica. Sendo um profundo conhecedor da tradição israelita, o pai do Haskalá introduziu o individualismo moderno ocidental, o racionalismo da religião natural e uma rejeição da teocracia que se chocava com a herança coletivista do Judaísmo. O caráter “alienígena” desses elementos ainda incomoda estudiosos contemporâneos de linha mais ortodoxa.

Allan Arkush, por exemplo, em seu artigo “The Questionable Judaism of Moses Mendelssohn” ((Arkush 1999)), põe em questão, como o próprio título sugere, a fé religiosa do autor de Jerusalém. Sem dúvida, Mendelssohn teria sido religioso no sentido de acreditar na existência de Deus, da Providência e na imortalidade da alma. Mas a religião natural e racional do “Sócrates alemão” ficaria muito aquém de uma fé judaica convincente. Assim, ele teria sido um “deísta dissimulador” e um “judeu questionável”.

David Sorkin ((Sorkin 1999)) levanta, similarmente, a questão do abandono do Judaísmo por parte da família Mendelssohn como uma espécie de traição. Joseph Mendelssohn (1770-1848), o filho banqueiro de Moses,109 descrevia com desprezo a condição não esclarecida dos judeus não assimilados. Segundo ele, seu pai teria inclusive traduzido o Pentateuco ao alemão para evitar o uso do Iídiche, que ele menosprezava.110 Sorkin descreve bem a pespectiva do judeu-alemão assimilado.

“In writing of his father’s childhood and early education, Joseph saw the Jews of the eighteenth century as lacking all redeeming qualities. They had no „Bildung“ (education) and lived in a combination of “ignorance and shameless filth“ since they were legally segregated from society, forced into demeaning occupations

109

Joseph era também tio do compositor Felix Mendelssohn-Bartholdy. Embora ele nunca tivesse abandonado o Judaísmo, seu filho (Georg) Benjamin se converteu ao Cristianismo.

110

Nas palavras de Sorkin (1999, p. 10): “The Pentateuch translation aimed to dislodge the Yiddish which Mendelssohn despised and to lead Jewish students away from the Talmud and set them on the road to German language, science and literature”.

and kept in intellectual servitude by east European Jewish leaders and rabbis who taught in Yiddish (“which was a crass combination of German and Hebrew and did not deserve to be called a language“) and rejected any contact with the larger culture. The Jews of the eighteenth century displayed no essential differences from those of the sixteenth.” (Sorkin 1999, p. 9)

Além disso, Sorkin explica que, segundo o relato de Joseph, a relação do “Sócrates alemão” com o Judaísmo chegaria, no limite extremo, a não passar de uma mera tática para poder viabilizar o projeto reformista. Moses ter-se-ia valido de seus conhecimentos da tradição hebraica apenas para poder dispor de alguma autoridade no interior da comunidade judaica.

“Joseph in fact understood his father’s relationship to Judaism exclusively in terms of this reformatory project: Mendelssohn calculatingly continued to observe Jewish law since otherwise he would not have been able to influence his fellow Jews. Similarly, he argued that the rabbis opposed his father’s endeavors but refused to take measures against him because of his imposing knowledge of Talmud and Jewish law.” (Sorkin 1999, p.10)

Teríamos, assim, a inversão especular perfeita da tese que Mendelssohn utilizava o Iluminismo como mero instrumento para obter as vantagens da cidadania para os judeus implantados nos países europeus. Segundo este ângulo, o pai do Haskalá seria algum tipo de traidor deísta que, em sua alienação, estaria subvertendo a comunidade judaica tradicional ao tentar modernizá-la.

No entanto, Sorkin insiste que as obras em Hebraico não foram suficientemente consideradas, e que elas sugerem um investimento de esforço tal que não faria sentido para um “judeu questionável”. Daí a necessidade de recuperar a “metade” judaica de Mendelssohn, que teria sido perdida no afã germanizador de seus amigos e familiares assimilados.

Arkush também reconhece que, apesar de tudo, o “Sócrates alemão” considerava o Judaísmo uma religião superior ao Cristianismo, que teríamos então que ver como sendo algo inferior.

“Whatever Mendelssohn may have believed, at bottom, about the Jewish religion, he certainly considered it to be superior to Christianity, both in terms of its contents and the level of morality it sustained.” (Arkush, p. 39)

Mesmo assim, Arkush levanta, de modo bastante preciso, os pontos que tornam praticamente impossível uma conciliação entre o engajamento iluminista e a religiosidade do autor de Jerusalém. Havia não só o racionalismo rigoroso e intransigente do “Sócrates alemão”, mas sua postura individualista e solidamente liberal no que se referia à liberdade de crença perante a autoridade civil e eclesiástica. Ademais, havia também o recurso, na argumentação mendelssohniana, a afirmações históricas senão falsas, pelo menos bastante discutíveis, como a de que, com a perda da autonomia política, o poder de coerção religiosa teria simplesmente desaparecido das comunidades judaicas no Exílio. E, de qualquer forma, era indiscutível que o Judaísmo original havia sido teocrático e coercitivo, o que dificilmente se poderia compatibilizar com a noção de uma religião voluntária, natural, e racional (i. é, que poderia dispensar totalmente a revelação).

Tendo isso em vista, cumpre reconhecer que a insistência de Sorkin sobre um compromisso maior de Mendelssohn com os interesses judaicos, enquanto supostamente manifesto pela produção em Hebraico, permanece ainda genérico demais. Isso é particularmente verdade porque no debate entre Arkush e Sorkin o Judaísmo recebe uma ênfase religiosa, em detrimento do aspecto identitário, que é justamente o resultado do tipo de modernização empreendido pelo pai do Haskalá. Assim, tanto Arkush quanto Sorkin permanecem atrelados, em sua leitura, à perspectiva religiosa ortodoxa e, portanto, ficam aquém do nível de reflexão necessário para entender o problema.

Essa complexidade era mais bem entendida pelo grande estudioso de Mendelssohn, Alexander Altmann, quando ele comentava a necessidade do autor de Jerusalém ajustar-se de modo flexível às exigências incompatíveis dos dois mundos nos quais tentou viver.

“It was no easy task for Mendelssohn to bring the two strands of his being into harmony. Living as he did in two worlds, as it were, he had to express his Jewishness with varying emphases and in different keys.” A. Altmann, Mendelssohn, p. 195 (citado por Sorkin 1999, p. 19)

A diferença é que Arkush faz uma cobrança obtusa de que Mendelssohn deveria, enquanto judeu, ter uma fé mais próxima à ortodoxia. Por seu lado, Sorkin deseja resgatar o caráter judaico de Moshe mi-Dessau, e espera conseguir isso explorando a

obra exegética em Hebraico. Mas ao optarem por privilegiar o aspecto religioso, ambos perdem o ponto central da grande transformação empreendida por Mendelssohn. Após ela, não seria mais possível ser um judeu ortodoxo e tradicional, pois ele havia já inoculado a modernidade em seu seio. A fase religiosa do Judaísmo seria agora suplantada por uma fase secular, étnica, e profundamente engajada na transformação política do mundo contemporâneo.