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0 Introdução geral

1.4.4 Ato IV Crise

1.4.4.1 Cenas 1 a 2: O templário busca conselho do patriarca

Na primeira cena, o templário conversa com o monge cristão que lhe havia anteriormente contado sobre a intenção do patriarca de assassinar Saladino. O monge se confessa dividido, pois é obrigado pelo seu voto de obediência a servir de instrumento para os projetos vis do patriarca. Quando o templário se aproxima, o monge supõe que ele teria aceitado a proposta de espionar e assassinar Saladino, mas o templário explica que vem apenas pedir um conselho ao patriarca. O templário cai de novo na intolerância cristã ao dizer que religião sempre é de partido, e que não há algo acima disso. Ele quer se fazer aconselhar por um bom cristão e quer pedir isto do monge, mas este diz não querer se intrometer em questões terrenas, e o patriarca se aproxima, tornando o encontro inevitável.

Na segunda cena, Lessing faz o patriarca aparecer com toda a pompa sacerdotal („mit allem geistlichen Pomp”) possível, o que contrasta com seu exterior amigável e sua visita aos doentes. Para o patriarca, a supremacia da Igreja se justificaria por ser ela anjo de Deus, que deve ser cegamente obedecida, pois a vã razão encontra seus limites na vontade e arbítrio divinos que a criou. O templário explica seu caso, contando que um judeu havia educado uma criança batizada como judia. O patriarca indaga se se trata de uma hipótese ou um fato, pois a punição seria o rogo. Lessing faz então o templário argumentar o caso a favor de Natan, pois ele teria salvo a criança e a teria educado segundo a razão. Grotescamente, Lessing faz o patriarca dizer que teria sido melhor que a criança tivesse morrido do que ter sido desgraçada por um judeu e, quanto à educação racional, esta seria três vezes pior que uma educação em qualquer outra religião. Lessing faz o patriarca repetir mecanicamente a frase: “Não importa, o judeu será queimado” („Tut nichts, der Jude wird verbrannt”). O templário percebe que é inútil falar com o patriarca e procura se desvencilhar sem revelar o nome do judeu. O patriarca comenta o acordo com Saladino pelo qual os cristãos seriam protegidos, e os

ateus perseguidos. Quando o templário explica que irá se encontrar com o sultão, o patriarca pede que lhe transmita suas melhores saudações e diz entender que o caso do judeu seria apenas uma hipótese. Após a saída do templário, o patriarca ordena ao monge que investigue o caso e descubra quem é o judeu.

Lessing não poupa esforços para denegrir a autoridade eclesiástica representada pela figura do patriarca, que é, sem dúvida, o personagem mais malévolo da peça. É possível que a experiência com o pastor Goeze tenha inspirado esta caricatura grotesca mas, seja como for, é altamente intolerante e estreita para alguém que se pretende defensor da tolerância. Como nota Sedding (p. 86), o patriarca é a única figura que carece de um lado positivo e, embora Lessing tente caracterizá-lo por vezes em modo satírico, permanece como uma ameaça constante no decorrer da peça.

1.4.4.2 Cenas 3 a 5: O templário protesta contra Natan perante Saladino

Na terceira cena, escravos trazem o ouro emprestado por Natan ao palácio do sultão. Achando tudo excessivo, Saladino pergunta ao escravo quanto falta. Ouvindo que faltaria a metade ainda, ordena que o resto seja levado a Sittah. Saladino também diz querer dar parte do ouro ao monge mendicante Al Hafi. Ou seja, neste início de cena, Lessing caracteriza Saladino como um monarca completamente incapaz de gerir suas finanças. Enquanto esperam por Natan e o templário, Sittah mostra a Saladino uma imagem de seu irmão desaparecido Assad. Ele lamenta a morte de Lilla, sua irmã mais velha, que nunca lhe perdou ter deixado Assad fugir sozinho. Através da imagem, Saladino e Sittah tentarão determinar quão semelhantes são ele e o templário.

Na quarta cena, o templário chega e tem sua liberdade assegurada por Saladino. Reconhecendo a semelhança com seu irmão, convida-o a permanecer com ele, a despeito de sua religião. O sultão exprime sua tolerância religiosa por meio de uma metáfora: “Eu nunca exigi/ que em todas as árvores crescesse a mesma casca” („Ich habe nie verlangt,/ Daß allen Bäumen eine Rinde wachse”). Saladino e o templário fazem amizade, e o jovem conta sua frustração com Natan por ter ele rejeitado seu pedido de casamento com Recha. Deste modo, o templário desmascara a pretensa virtude, sabedoria e tolerância de Natan: seria um sonho, achar que os judeus pudessem deixar de ser judeus. Natan seria um lobo judaico disfarçado com a lã da ovelha. No entanto, Saladino se opõe a isto, ordenando que ele se acalme: „Sei ruhig,

Christ!”. O templário então lamenta ter ido falar com o malévolo patriarca, e Saladino deixa claro que ele teria estado mais aberto para aconselhá-lo. Mais uma vez, o Cristianismo fica associado à intolerância, demonstrando a hostilidade anti-cristã de Lessing. Saladino promete interceder pelo templário junto a Natan.

Na quinta cena, Saladino e Sittah concordam sobre a semelhança do templário com Assad. Saladino, em resposta à curiosidade de sua irmã sobre os pais do templário, lembra a atração de Assad por mulheres de raça européia, que Lessing, no entanto, formula como “belas damas cristãs” („hübschen Christendamen”). A questão racial fica então formulada como uma diferença de religião. Tanto Saladino quanto Sittah concordam que o templário deve ficar com Recha, e o sultão dá consentimento a sua irmã de ir buscar a moça.

1.4.4.3 Cenas 6 a 8: A auto-educação de Natan como pré-história

Na sexta cena, Daia e seu patrão hebraico examinam um tecido, e a ela exclama que daria um belo vestido de noiva. Natan pergunta se é ela que vai se casar e lhe dá de presente o tecido. No entanto, a criada recusa o presente se Natan não prometer terminar com o pecado de criar Recha como judia e, além disso, dar seu consentimento ao casamento com o templário. Natan lhe pede ter paciência, pois precisa se certificar sobre a ascendência do templário, sem revelar que não é pai de Recha.

Na sétima cena, o monge cristão e Natan se encontram. Natan diz querer permanecer pai de Recha. O monge revela o motivo de sua vinda. O patriarca lhe havia pedido descobrir quem seria o judeu com uma filha adotiva cristã, e o monge se lembra de ter entregado uma criança a Natan dezoito anos antes, quando era escudeiro. Wolf von Filnek, pai da menina, o havia encarregado de entregar sua filha a Natan antes de morrer. O monge assegura a Natan que não o entregará ao patriarca. O comportamento de Natan de criar sua filha como judia seria “segundo a natureza” (natürlich). Deixá-la ser criada como cristã por outros não seria mostrar amor pela filha de seu amigo, e o amor paterno seria mais importante que o Cristianismo. Além deste raciocínio secularizante, Lessing coloca na boca do monge um outro argumento, judaicizante. Os cristãos haveriam esquecido frequentemente demais que o Cristianismo seria fundado no Judaísmo e que Cristo era judeu.

Klosterbruder. “(...) Wenn Ihr die Christin durch die zweite Hand

Als Christin auferziehen lassen: aber So hättet Ihr das Kindchen Eures Freunds Auch nicht geliebt. Und Kinder brauchen Liebe, Wär’s eines wilden Tieres Lieb’ auch nur, In solchen Jahren mehr, als Christentum. Zum Christentume hat’s noch immer Zeit.

Wenn nur das Mädchen sonst gesund und fromm Vor Euern Augen aufgewachsen ist,

So blieb’s vor Gottes Augen, was es war. Und ist denn nicht das ganze Christentum Aufs Judentum gebaut? Es hat mich oft Geärgert, hat mir Tränen g’nug gekostet,

Wenn Christen gar so sehr vergessen konnten, Daß unser Herr ja selbst ein Jude war.”58

Tudo isto mostra uma considerável indiferença de Lessing contra o Cristianismo e a educação cristã. Ele também minimiza e oculta as diferenças entre o particularismo essencial do Judaísmo e o universalismo irrenunciável do Cristianismo. O argumento que o Cristianismo tenha sido precedido historicamente pelo Judaísmo não é tão relevante, dado que após a vinda de Cristo, a lei mosaica perde seu estatuto, assim como o povo judeu perde a exclusividade divina que antes possuía. Lessing usa o termo “construído sobre” (gebaut auf) como se os princípios fundamentais do Judaísmo ainda valessem para o Cristianismo, o que é evidentemente falso. Estes são pontos que qualquer pessoa com a menor educação cristã imediatamente perceberia e criticaria. Talvez isso explique porque Lessing achava interessante que a educação cristã fosse substituída apenas pela educação “racional” e judaica administrada por Natan.

A seguir, Natan conta a história da morte de sua família em um pogrom nas mãos de cristãos. Sua mulher e sete filhos, junto com a família de seu irmão, conta Natan, foram queimados. Sua reação a isto teria sido de abandonar Jahvé, de amaldiçoar o mundo e a si mesmo, e de jurar ódio irreconciliável à Cristandade. No terceiro dia, porém, Natan conta que a razão o levou aceitar o conselho divino de se autosuperar, adotando a criança que lhe seria então entregue como sua. O monge vê nesta auto-educação de Natan, reminiscente da história de Jó, um exemplo de

58

Monge. "(...) Se Vossa Senhoria a cristã por segunda mão / deixasse educar como cristã: / então não teria amado a criança de Vosso amigo. / E crianças precisam mais de amor, / mesmo que fosse apenas o amor de um animal selvagem, / nesses anos, do que de Cristianismo. / Para o Cristianismo há sempre tempo. / Já se a menina sã e piedosa / perante Vossos olhos cresceu, / então permaneceu perante os olhos de Deus, o que ela era. / E não é toda a Cristandade / construída sobre o Judaísmo? Tem-me frequentemente / irritado, tem-me custado lágrimas o suficiente, / que cristãos pudessem esquecer tanto, / que nosso Senhor

Cristianismo, e Natan responde no mesmo tom, dizendo que constata no monge um comportamento judaico exemplar. Em suma, Lessing equaliza assim Judaismo e Cristianismo, dissolvendo ambos na maçonaria. A rememoração da sua tragédia pessoal dá a Natan novas forças para um novo ato de auto-superação. Caso haja parentes de Recha, ele se dispõe a devolvê-la. Ele pede mais informações ao monge sobre os parentes de sua filha adotiva, e este responde que sua mãe teria sido a irmã de um Conrad von Stauffen. O monge quer dar-lhe o livro de orações de Wolf von Filnek, pai de Recha, que contém a lista de seus parentes em escrita árabe.

Na oitava cena, Daia traz a notícia que Sittah convida Recha ao palácio. Natan interroga sua criada se não seria uma armadilha do malévolo patriarca, o que ela duvida. Natan vai falar pessoalmente com os enviados de Sittah para se certificar que sejam mesmo dela. Em monólogo, Daia exprime seu medo que Recha caia nas mãos dos muçulmanos e seja perdida tanto para o templário quanto para o Cristianismo. Por causa deste medo, ela decide revelar a Recha sua origem cristã.

O Cristianismo aqui, mesmo nesta breve cena, é vilão mais uma vez. Tanto o patriarca é visto como um perigoso intrigante pelo lado mau, quanto Daia, pelo lado “bom”, revela pela enésima vez sua “intolerância” e talvez até “racismo” por não querer que Recha caia nas mãos de um muçulmano. Deste jeito, nas mãos de Lessing, o Cristianismo não se salva de jeito nenhum.