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0 Introdução geral

2 Moses Mendelssohn como Natan

2.2 Jerusalém esclarecida (1783)

2.3.2 Mendelssohn como defensor dos direitos humanos

No prefácio à sua tradução do ensaio de Manasseh ben Israel, Mendelssohn considera a possível acusação de ser um mero propagandista dos interesses de sua etnia. No contexto do prefácio, ele estava procurando desmontar argumentos comuns contra os judeus em geral, um deles sendo que eles seriam, como todo comerciante, militar, professor, e funcionário estatal, Verzehrer (ou seja, consumidores ou devoradores) e não Hervorbringer (produtores). O autor de Jerusalem responde que o comerciante judeu mais insignificante, ao disponibilizar produtos necessários à produção, passa a ter uma utilidade considerável para a sociedade. Nesse sentido, ele seria realmente produtivo. A prova de que ele não estaria fazendo mera propaganda étnica seria o caso da Holanda, com seu sucesso comercial e industrial após sua acolhida dos judeus sefarditas ibéricos.

“Der geringste Handelsjude ist in dieser Betrachtung kein bloßer Verzehrer, sondern ein nützlicher Einwohner (ich darf nicht sagen, Bürger) des Staats, ein wirklicher Hervorbringer.

Man sage nicht, ich sey ein partheyischer Sachwalter meiner Glaubensbrüder, und such alles zu vergrößern, was zu ihrem Vortheil, oder zu ihrer Empfehlung gereichen kan (sic). Ich berufe mich abermals auf Holland, und auf welches Land könnte man sich, wenn von Handlung und Industrie die Rede ist, füglicher berufen?“103 Mendelssohn, Vorrede, p. 21.

Em uma passagem anterior do prefácio, Mendelssohn também demonstra ter uma consciência muito clara sobre a diferença entre a defesa dos direitos dos seres humanos enquanto tais e da apologia de interesses étnicos, por definição particulares. Lembrando Dohm e seu trabalho, ele nega que a sua intenção tenha sido promover interesses judaicos, mas teria sido, isso sim, a defesa da humanidade e de seus direitos. Mendelssohn considera uma feliz coincidência104 que se possam defender as duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, tanto os interesses particulares quanto os direitos universais. Ele adiciona, porém, uma observação importante. É a de que o

explicado por ele mesmo como sendo impossível. / Esta acusação de inconsistência pode ser feita contra Mendelssohn” 103

“O judeu comerciante mais diminuto é, nesta perspectiva, não um mero consumidor, mas um habitante útil (não posso dizer cidadão) do Estado, um real produtor. / Não se diga que eu sou um representante partidário dos meus irmãos de fé, e que eu procuro engrandecer o que pode lhes dar vantagem ou servir de encômio. Eu lembro de novo a Holanda, e a que país poderíamos nos referir com mais razão, em se tratando de comércio e indústria?”

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Pelo menos do ponto de vista motivacional, a defesa dos interesses de indivíduos ou grupos genealogicamente mais próximos a nós representa um esforço menor porque a tendência da seleção natural é eliminar genes que favoreçam o comportamento altruísta (no sentido de prejudicar a capacidade reprodutiva do organismo altruista) nos indivíduos. Organismos reprodutivamente altruístas

sábio do século XVIII teria superado as diferenças e consideraria apenas o ser humano em si.

“Als philosophisch-politischer Schriftsteller, dünkt mich, hat Herr DOHM die Materie fast erschöpft, (...). Seine Absicht ist, weder für das Judenthum, noch für die Juden eine Apologie zu schreiben. Er führet bloß die Sache der Menschheit, und vertheidiget ihre Rechte. Ein Glück für uns, wenn diese Sache auch zugleich die unserige wird, wenn man auf die Rechte der Menschheit nicht dringen kann, ohne zugleich die Unserigen zu reklamieren. Der Weltweise aus dem 18ten Jarhhunterte hat sich über den Unterschied der Lehren und Meinungen hinweggesetzt, und in dem Menschen nur den Menschen betrachtet.“105 Mendelssohn, Vorrede, p. 10.

Tendo em vista essa valorização mendelssohniana de uma universalidade cosmopolita, porém, torna-se automaticamente problemática qualquer defesa de direitos, para qualquer grupo étnico, que vá além daqueles que lhe forem inerentes por sua humanidade abstrata. Se o “Sócrates alemão”, sendo um sábio do século XVIII, deveria procurar o universal, então não há como justificar sua defesa dos interesses étnicos próprios sem postular a identidade cosmopolita como fundamento conceitual subjacente à identidade judaica. Na ordem de prioridade lógica, seria necessário primeiro afirmar a humanidade dos judeus, repudiando qualquer superioridade por eleição divina, possibilitando assim a consideração de seus direitos enquanto seres humanos universais. O particularismo judaico só poderia entrar posteriormente, então, como diferenciação etno-religiosa, mas permanecendo uma identidade não privilegiada por direitos especiais que não fossem já, por igualdade perante a lei, concedidos a todos os outros grupos com identidades análogas. A ênfase na universalidade cosmopolita surge quando Mendelssohn deseja habilitar os judeus para que possam se candidatar à cidadania e assim participar diretamente do Estado laico europeu onde se encontrassem. Porém, no momento em que essa inserção do judeu põe em risco sua identidade e lealdade para com a comunidade judaica internacional, o pai do Haskalá freia o processo de integração e retrocede em direção ao particularismo judaico.

simplesmente desaparecem, pois sacrificam a replicação de sua matriz genética para auxiliar a reprodução de outros genótipos. 105 “O Sr. DOHM esgotou, como escritor filosófico-político, parece-me, o assunto, (...). Sua intenção não é escrever uma apologia, nem para os judeus, nem para o Judaísmo. Ele promove apenas a questão da humanidade, e defende seus direitos. É uma felicidade e sorte para nós, se essa questão também ao mesmo tempo é nossa, se não podemos insistir nos direitos da humanidade sem também reivindicar os nossos. O sábio do século XVIII já superou a distinção entre doutrinas e opiniões, e considera apenas o humano no ser humano.”

Certamente, o vaivém desse percurso argumentativo poderia sugerir “confusão intelectual” do autor.

É sabido que Mendelssohn, à época, sofria de mal dos nervos (Nervenschwäche). Em sua famosa carta (16 de Agosto de 1783) ao autor de Jerusalém, Kant, após algumas observações sobre a boa saúde, faz questão de dizer que o livro não trazia o menor indício da doença (“... ohne einmal jene Nervenschwäche (davon man doch im J e r u s a l e m nicht die mindeste Spuhr antrifft) hiebey in Betracht zu ziehen”) e lamentava que Mendelssohn, com sua acuidade (scharfsinnige Aufmerksamkeit) não pudesse se ocupar mais de metafísica, agora que a Crítica da razão pura havia sido publicada. O filósofo königsberguiano explica as condições da gestação (uns 12 anos) e da redação (entre 4 e 5 meses) da obra, justificando sua opção por um estilo técnico e não o da filosofia popular, no qual o pai do Haskalá era um mestre consagrado.

“Es sind wenige so glücklich, vor sich und zugleich in der Stelle anderer dencken (sic) und die ihnen allen angemessene Manier im Vortrage treffen zu können. Es ist nur ein Mendelssohn.”106 Kant, Kants Briefwechsel, Band I, 1747-1788 / (hrsg. von Rudolf Reicke), p. 344.

Cumpre lembrar que, vinte anos antes, em 1763, Mendelssohn havia ganhado o primeiro prêmio da Academia Berlinesa de Ciências (Berliner Akademie der Wissenschaften) por seu "Tratado sobre a evidência nas ciências metafísicas“ („Abhandlung über die Evidenz in methaphysischen Wissenschaften“). Kant ficara em segundo lugar.107

O reconhecimento da argúcia de Mendelssohn é reiterada mais adiante, nas palavras finais da carta sobre Jerusalem. O filósofo prussiano elogia em particular a defesa da liberdade de pensamento e a rejeição da abordagem histórica da religião.

"...Herr F r i e d l ä n d e r wird Ihnen sagen, mit welcher Bewunderung der Scharfsinnigkeit, Feinheit und Klugheit ich Ihr J e r u s a l e m gelesen habe. Ich halte das Buch für die Verkündigung einer großen, obzwar langsam bevor stehenden und fortrückenden Reform, die nicht allein Ihre Nation, sondern auch

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“Há poucos tão felizes a ponto de conseguir pensar para si e no lugar dos outros, e de conseguir encontrar o modo de exposição adequado para eles todos. Há somente um Mendelssohn.”

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Yirmiyahu Yovel (Dark Riddle, p.19) explora a possibilidade que a competição que Kant teria tido que enfrentar, na juventude, contra o coetâneo Mendelssohn, e, na velhice, contra o jovem Salomon Maimon, que propunha revisões da filosofia transcendental, resultasse em atitudes anti-judaicas. Isso se concretizaria no direcionamento da filosofia kantiana contra o estilo ao mesmo tempo “dogmático” e popular representado por Mendelssohn.

andere treffen wird. Sie haben Ihre Religion mit einem solchen Grade von Gewissensfreiheit zu vereinigen gewußt, die man ihr gar nicht zugetraut hätte und dergleichen sich keine andere rühmen kann. Sie haben zugleich die Notwendigkeit einer unbeschränkten Gewissensfreiheit zu jeder Religion so gründlich und so hell vorgetragen, daß auch endlich die Kirche unsererseits darauf wird denken müssen, wie sie alles, was das Gewissen belästigen und bedrücken kann, von der ihrigen absondert, welches endlich die Menschen in Ansehung der wesentlichen Religionspunkte vereinigen muß; denn alle das Gewissen belästigende Religionspunkte kommen uns von der Geschichte, wenn man den Glauben an deren Wahrheit zur Bedingung der Seligkeit macht."108 (Kants Briefwechsel, S. 347)

Em face desse prestígio indiscutível que o “Sócrates alemão” gozava enquanto uma das mentes mais finas na Europa, torna-se difícil argumentar convincentemente que ele teria sido incapaz de compreender os requisitos do Iluminismo no que dizia respeito à integração dos judeus. De fato, Yirmiyahu Yovel ((Yovel 1998), p.14-15) fala de uma contradição não no sentido formal, mas no sentido prático e histórico.

“Another of Mendelssohn’s flaws, perhaps the most consequential, is the contradiction between viewing Judaism as a particular constitution and the endeavor to emancipate the Jews politically. Emancipation demanded the Jews’ political assimilation, their entry as equal citizens into the European nations (as Frenchmen, Germans, etc. in their nation, and as direct citizens of the French or the German state, unmediated by an interim body like the Jewish community). This required the abolition of autonomous Jewish communities with their own laws and the political integration of Jews as individuals into the host society. This is not a formal contradiction, but a practical and historical one; it is the opposition between the medieval and the modern situation of the Jews. To continue Jewish existence in Mendelssohn’s way, as a special legal community, required extending into modernity the medieval ghetto situation in which the Jews were enclosed in their autonomous community; but this contradicted another Mendelssohnian principle, which required religion to be voluntary and the Jews to modernize, to get out of their enclosure and become integrated into European society. Jewish assimilation was in large measure the result of this contradiction – a reaction to it, rather than its resolution.” Yovel (Yovel 1998), p.14-15.

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“... O Sr. Friedländer poderá contar-lhe com qual admiração pela sua sagacidade, fineza e esperteza eu li seu Jerusalém. Eu considero o livro um anúncio de uma grande reforma, conquanto demorada e progressiva, que irá afetar não só a sua nação, mas a todas. O Senhor soube unir à sua religião um tal grau de liberdade de consciência que não se esperaria dela, e de um modo que nenhuma outra pode se vangloriar. O Senhor também argüiu de modo tão fundamental e claro sobre a necessidade de uma liberdade de consciência ilimitada para toda religião, que finalmente também de nosso lado a Igreja terá que refletir sobre como separar tudo o que pode perturbar e oprimir a consciência daquilo em sua esfera que deverá por fim unir os seres humanos em vistas dos pontos essenciais da religião. Pois todos os pontos perturbadores da consciência provêm a nós da história, se fazemos na crença de sua verdade a condição de sua bênção. ”

Evidentemente, se a assimilação tinha por conseqüência a dissolução das comunidades judaicas, era inevitável que o Haskalá teria que enfrentar uma oposição renhida no interior dessas mesmas, e não só por parte do rabinato ortodoxo cuja ideologia talmúdica seria substituída pelo direito cosmopolita e pela ciência natural.