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0 Introdução geral

1.4.1 Ato I Exposição

1.4.1.1 Cenas 1 a 3 : Introdução de Natan, volta a Jerusalém, educa Recha,

encontra o monge-mendigo Al Hafi

Na primeira cena, Natan, um negociante judeu de sucesso, está retornando a Jerusalém vindo da Babilônia com bastante lucro de dívidas pagas. Ele é recebido por Daia, sua criada cristã de origem alemã, que lhe traz uma má notícia. Natan revela porém já saber que sua casa havia queimado em um incêndio. Mas Daia revela a ele algo que ele não sabia. Sua filha adotiva Recha, originalmente cristã, fora salva da morte no incêndio por um templário, que depois se mostrará ser seu irmão, e cuja vida

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“Semana passada li as primeiras dez páginas do Natan e as apreciei muito. Kant as recebeu de Berlim. Ele as julga meramente como a segunda parte de Os judeus, e não suporta nenhum herói desse povo. Tão divinamente rigorosa é a nossa filosofia nos seus preconceitos, apesar de toda sua tolerância e imparcialidade!”

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Lamport (p. 84) nota que Friedrich Schlegel, embora tendo elogiado os versos do Natan como sendo a melhor prosa de Lessing, não teria aprovado o coloquialismo de Sittah em que ela se diz ainda não totalmente na bancarrota (Noch bin ich auf/ Dem Trocknen völlig nicht, Lessing, Ato II, cena ii, p. 40) por ser excessivamente vulgar.

havia sido inesperadamente poupada por Saladino. Como seria de se esperar, Natan passa por um tremendo susto e se mostra bastante aliviado com esta notícia, prometendo uns tecidos à sua criada como presente. Mas ao exclamar: “Minha Recha!”, Daia, que é cristã, e sabe que Recha originariamente também o era, questiona seu direito a esta possessividade de pai adotivo, por ser ele judeu. Natan responde que: “Não sem maior direito! Tudo que eu tenho me foi dado por natureza e sorte. Apenas a posse (de Recha) me foi concedida pela virtude.”

Nathan - “Nichts mit größerm! Alles, was

Ich sonst besitze, hat Natur und Glück Mir zugeteilt. Dies Eigentum allein Dank ich der Tugend.”

A técnica de Lessing aqui é começar a peça com um sobressalto emocional, facilitando a identificação do leitor e espectador com Natan. Daia, ao questionar seu direito de paternidade adotiva por causa de seu Judaísmo, reforça esta simpatia por Natan, que se vê não só momentaneamente aflito, mas também vítima de “preconceito” cristão, tema que será martelado no decorrer da peça inteira. A intensidade da vida familiar judaica é explorada por Lessing para demonstrar a humanidade de Natan e, por extensão, dos judeus em geral. Fica também claro que a origem dos seus bens é pela “natureza e sorte”. A posse de Recha por virtude se explicará mais tarde quando Natan discutirá as circunstâncias (o assassinato de sua família) nas quais aceitou adotá-la.

Cumpre notar que a caracterização dos personagens é bastante sutil, de modo que para um olhar atento saltam detalhes que mereceriam bastante comentário, já neste encontro inicial entre Daia e Natan. Em particular, chama a atenção o alto nível de emotividade que Lessing cria através destas situações dramáticas. Contudo, apesar deste refinamento na caracterização e na intensidade das emoções geradas, a construção como um todo se ressente de uma artificiosidade suspeita. Isto faz com que os personagens, com toda sua paixão, coerência e sinceridade, causem uma sensação de estranheza. Como veremos a seguir, tanto Saladino, quanto seus sobrinhos Recha e o templário, vivem no desconhecimento não só de parte de suas identidades, mas também da relação de parentesco que existe entre eles, e que é descoberta pelo sábio Natan. Estes aspectos estão presentes já aqui, mas irão perdurar pelo decurso da peça.

O comportamento dos cristãos também é foco de crítica desde o início. Tanto Daia quanto o templário demonstram desprezo ou pelo menos preconceito perante os judeus. Após ter salvado Recha, o templário se recusa até mesmo a falar com Daia por ela ser a criada de Natan. Além desta caracterização inicial do preconceito cristão, Lessing acentua o aspecto irracional da fé. Recha, após ter sido salva, teria sido tomada pela fantasia que seu salvador fora um anjo. Natan se proporá, porém, a extirpar-lhe esta doce ilusão (süßer Wahn) da crença em anjos, compartilhada por judeus, cristãos e muçulmanos, substituindo-a, na cabeça de sua filha adotiva, por uma verdade (Wahrheit) ainda mais doce, qual seja, que seu salvador foi um indivíduo universal (Mensch) mais amável que um anjo. Tudo isto exprime pelo menos um certo desprezo iluminista pela crendice religiosa popular que, estando associada à menina Recha, adquire uma conotação implícita de infantilidade (só uma criança acredita em anjos). Este processo de passagem da ilusão à verdade (Wahn zu Wahrheit) é um caminho educativo guiado pelo sábio Natan. Ao mencionar que a crença em anjos é comum às três religiões, Lessing está sugerindo que todas as três poderiam ser “iluminadas” em tal modo que, no fundo, as diferenças entre estas religiões seria superficial. A centralidade, no entanto, é dada ao Judaísmo na figura de Natan.

Há, portanto, uma compressão enorme de temas em um espaço dramático extremamente reduzido, de apenas uma cena. Esta é a densidade que faz o Natan muito mais complexo e rico que Os judeus. Enquanto na peça juvenil há apenas propaganda e um esquematismo padronizado de roteiro cômico, o Natan está saturado de temas e alusões filosófico-teológicas complexas, em um estilo quase barroco, enquanto Lessing procura intensificar ao máximo o aspecto emotivo das situações, como um pré-romântico.

Na segunda cena, Lessing introduz noções fundamentais de sua visão teológica. Natan irá ensinar à sua filha o significado dos milagres e da intervenção divina. Ele explicará o seu salvamento pela ação do templário. Isto sim, segundo ele, seria o verdadeiro conceito de milagre. Não o meramente extraordinário, mas a própria intervenção divina é que constitui o milagre. Deste modo, Lessing mostra rejeitar o Deismo. Além disto, ele enfatiza a prioridade do agir sobre o mero ter-fé.

Na terceira cena, Natan se encontra com o monge-mendigo muçulmano Al Hafi, que é seu companheiro de partidas de xadrez. Aparecendo agora bem-vestido, Al Hafi explica a Natan que havia sido escolhido por Saladino para ser o tesoureiro, pois assim poderia atender ao sonho (Wahn) proto-socialista do sultão de resolver o problema da mendicância. Além disso, diz ele a Natan, o sultão precisa de dinheiro, e está disposto a pagar qualquer taxa de juros pelo empréstimo. Natan responde distinguindo entre Al Hafi como amigo e como funcionário do Estado, dizendo que ao primeiro emprestaria, mas não ao segundo. Al Hafi se confessa infeliz com esta sua nova função, e considera abandonar tudo e voltar a uma vida ascética no Ganges.

1.4.1.2 Cenas 4 a 6 : O orgulho do templário

Na quarta cena, Daia vem avisar a Natan que o templário estava na cercania, perto de algumas palmeiras, alimentando-se de tâmaras. Natan lhe pede que vá a convidá-lo para uma visita, mas Daia lhe explica que o templário se recusa a falar com judeus. Mesmo assim, Natan manda Daia para que fale com ele até que Natan possa alcançá-lo e se encontrar com eles. Mais uma vez, Lessing enfatiza o suposto preconceito dos cristãos, contrastado-o com o espírito aberto e generoso de Natan.

Na quinta cena, um monge cristão vem falar com o templário, explicando que vem interrogá-lo em nome do patriarca. O templário explica que, junto com dezenove outros templários, havia rompido a trégua e, sendo capturado, ia ser executado com os outros, quando Saladino surpreendentemente o perdoou. O monge diz já saber disso, e inclusive conta ao templário algo que ele próprio desconhecia. Saladino o havia perdoado porque vira no templário uma semelhança com seu irmão Assad (que mais tarde será revelado como o pai do templário). O monge também explica que fora encarregado pelo patriarca de saber se o templário poderia trabalhar como espião e até tentar assassinar Saladino. O templário reage a isso tudo negativamente, pois considera isso desonroso. Lessing fabrica e explora aqui mais uma situação para denegrir os cristãos e o patriarca.

Na sexta cena, Daia tenta convencer o templário a falar com Natan e Recha, mas ele se mostra irredutível. Daia faz notar ao templário que Natan é considerado “sábio” pelo seu povo, embora seja tão rico, ao que o templário responde que, para os judeus, as duas coisas são sinônimas. Ele faz o templário dizer: “Judeu é judeu./Eu sou

um suábio grosseiro” („Jud’ ist Jude./Ich bin ein plumper Schwab”). Ou seja, nesta frase, Lessing associa o aspecto étnico de ser suábio com o preconceito contra os judeus, algo negativo na sua valoração. O mesmo acontece na repreensão de Daia: “Vá então, urso alemão! Vá então! “ („So geh, du deutscher Bär! So geh!”). Note-se que a própria Daia, por ser cristã, já teria atitudes preconceituosas, mas elas seriam ultrapassadas pelo templário, com sua identidade étnica arraigada e sua fé religiosa. No final da peça, Lessing fará Natan destruir esta identidade étnica germânica através da revelação da origem curda de seu pai.52 Paralelamente, sua fé cristã será minada pelo mau exemplo dado pelo patriarca e pelo constante repetir da cantilena sobre o “indivíduo universal esclarecido” (Mensch).