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0 Introdução geral

2 Moses Mendelssohn como Natan

2.2 Jerusalém esclarecida (1783)

2.2.2 Parte II: A missão monoteísta do Judaísmo

2.2.2.1 O caso das colônias judaicas

Na segunda parte, o autor de Jerusalém responderá a objeções e questões de gentios que haviam sido motivadas principalmente por seu prefácio à tradução alemã ao livro de Manasseh ben Israel. Este prefácio era pretendido pelo próprio Mendelssohn como um apêndice ao tratado apologético de Christian Wilhelm Dohm (1751-1820) Sobre o melhoramento civil dos judeus (Über die bürgerliche Verbesserung der Juden) de 1781. Tanto a tradução do livro de Manasseh quanto o prefácio visavam estimular a discussão iniciada por Dohm sobre a concessão de cidadania aos judeus.

Dohm, um historiador e diplomata gentio, havia promovido os interesses judaicos argumentando a favor da concessão de direitos civis para estas comunidades estabelecidas em território estrangeiro.89 Colocava-se então a questão de até que ponto seria lícito conceder autonomia jurisdicional às colônias judaicas, tanto em questões civis e religiosas gerais quanto à questão específica da expulsão e excomunhão.

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“Não esqueçamos que, segundo meus princípios, o Estado não é autorizado a vincular renda, cargos honoríficos, e privilégios com certas opiniões doutrinais. No que diz respeito ao cargo de professor, é o dever do Estado indicar instrutores que sejam capazes de ensinar sabedoria e virtude, e de difundir essas verdades úteis que dizem respeito diretamente à felicidade da sociedade. Todos os detalhes devem ser delegados ao melhor conhecimento e juízo do professor; impedindo assim que surjam confusões intermináveis e colisões de deveres que, no final, levarão até mesmo os virtuosos à hipocrisia e à imoralidade. Toda ofensa contra os ditames da razão acaba sendo vingada.”

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Segundo Kevin MacDonald ((MacDonald 1998b) p. 195), Mendelssohn teria engajado Dohm para escrever esta propaganda seguindo uma estratégia inteligente de recrutar líderes gentios para promover causas judaicas perante um público gentio. A similaridade e origem no ingroup aumenta sabidamente o apelo da mensagem e a capacidade de induzir o resto do grupo étnico a ter atitudes positivas. Isso é mais difícil de conseguir quando o propagandista é percebido como sendo de outro grupo (outgroup). Lessing e Dohm, portanto, ao promover os interesses da colônia judaica, ao invés daqueles de seu próprio grupo étnico alemão, desempenham uma função disfuncional e mal-adaptativa para o seu grupo.

Contudo, Moshe mi-Dessau não poderia dar-se por satisfeito. De fato, não lhe agradou a idéia de ter a colônia judaica delimitada a um espaço específico, ao qual o Estado gentio poderia conceder o direito de autogoverno. No entanto, como vimos anteriormente, pela teoria mendelssohniana do contrato social, não seria possível nem mesmo uma tal concessão, principalmente em casos de consciência religiosa. Nem o Estado nem a Igreja teriam direito sobre o foro íntimo dos cidadãos. Há, portanto, um desacordo fundamental com Dohm sobre a excomunhão e sobre o poder religioso, pois este seria por definição ilegítimo.

A linguagem usada por Mendelssohn aqui é razoavelmente forte. Merece ser notado que ele fala dos princípios da razão sã (gesunde Menschenvernunft) como sendo algo cuja divindade (Göttlichkeit) nós todos seríamos compelidos a reconhecer. A intenção de destruir o poder espiritual da Igreja Católica é explícita no trecho a seguir. O uso do termo “Uebel” para designar o governo religioso, que deveria ser erradicado pela raiz, revela de modo incontrovertível este ressentimento judaico.

“Wenn nach den Grundsätzen der gesunden Vernunft, deren Göttlichkeit wir alle anerkennen müssen, weder Staat noch Kirche befugt wäre, sich in Glaubenssachen ein anderes Recht anzumaßen, als das Recht zu belehren; eine andere Macht, als die Macht der Ueberführung, eine andere Zucht, als die Zucht durch Vernunft und Grundsätze? Kann dieses erweislich, und dem gesunden Menschenverstande einleuchtend gemacht werden; so ist kein ausdrücklicher Vertrag, noch vielweniger Herkommen und Verjährung mächtig genug, ein Recht geltend zu machen, das ihm entgegengesetzt ist; so ist aller kirchliche Zwang widerrechtlich, alle äußere Mach in Religionssachen gewaltsame Anmassung, und wenn dieses ist; so darf, so kann die Mutterkirche kein Recht verleihen, das ihr selber nicht zukömmt, keine Macht vergeben, die sie sich mit Unrecht angemaßt hat. Es kann seyn, daß der Mißbrauch, durch irgend ein allgemeines Vorurtheil, so um sich gegriffen, so sehr in den Gemüthern der Menschen Wurzel gefaßt hat, daß es nicht thunlich, oder nicht rathsam wäre, ihn mit einem Male, ohne weise Vorbereitung abzuschaffen; aber in diesem Falle ist es doch wenigstens unsere Schuldigkeit, ihm von ferne her entgegen zu arbeiten, und vorerst seiner fernern Ausbreitung jenen Damm entgegen zu setzen. Können wir ein Uebel nicht völlig ausrotten; so müssen wir ihm wenigstens die Wurzel abstechen.”90 Mendelssohn, Jerusalem, p. 74.

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“E se, de acordo com os princípios da razão sã, cuja divindade todos devemos reconhecer, nem o Estado nem a Igreja estariam autorizados a pretender algum direito em questões de fé além do direito a ensinar; nenhum outro poder que o de persuadir; nenhuma outra disciplina que a da razão e dos princípios? Se isso puder ser demonstrado e tornado claro para a razão sã, nenhum contrato explícito, muito menos tradição ou prescrição, será poderoso suficiente para fazer valer um direito que se contrapõe a ele próprio; toda coerção eclesiástica será ilegal, todo poder externo em questões religiosas será uma usurpação violenta; e, se isso for assim, a Igreja Mãe não poderá conceder um direito que não lhe pertence, nem delegar um poder, o qual injustamente arrogou para si. Pode ser que esse abuso, por meio de algum preconceito ou outro, tenha se tornado tão difuso e tão profundamente arraigado nas mentes dos homens que não seria factível ou aconselhável aboli-lo de uma vez, sem uma sábia preparação. Mas em tal caso, é

Tudo isso levanta uma dificuldade considerável. Por um lado, o Cristianismo já representa uma primeira etapa de judaicização dos povos europeus, originariamente politeístas. Assim, a secularização poderia ser entendida como uma liberação do poder religioso exercido a partir de uma matriz teológica hebraica (a Bíblia) sobre a civilização ocidental. Por outro lado, a pura e simples extirpação da Igreja Católica para atender ao ressentimento e à vontade de poder judaicos de modo algum parece defensável, pois não fica claro quem ocuparia o vácuo deixado por ela. Sabemos, pela nossa leitura de seu colaborador Lessing, que esse lugar caberia exclusivamente à elite judaica. O herói inspirador de Natan, o sábio estava claramente promovendo uma secularização da sociedade européia que só poderia levar ao ateísmo, materialismo e epicurismo. Esta destruição parcial do sagrado não podia ser substituída com sucesso por um mero culto superficial dos “direitos humanos” e da “vida”. Como veremos a seguir, embora Mendelssohn, por consistência, tenha que teoricamente restringir o poder do rabinato, de modo algum ele desejava abandonar ou destruir o Judaísmo. Mas, no final das contas, a conversão dos maskilim (seguidores do Haskalá), não mais sujeitos ao rabinato, ao Protestantismo também mostra a superficialidade das teses iluministas sobre a religião. A proposta de Mendelssohn, embora procure atacar especificamente o poder da Igreja Católica, atinge também o Judaísmo, apesar de todas as suas diferenças estruturais. Esse é o “dano colateral” da munição administrada pelo “Sócrates alemão” e apenas comprova o grau de sua destrutividade.

O autor de Jerusalém menciona a seguir o seu prefácio à tradução do livro de Manasseh ben Israel e se felicita com a Prússia de Frederico II, notório maçom, pelo espírito de tolerância que ele pôde desfrutar. Frederico estaria em acordo com suas doutrinas e teria mostrado sabedoria e moderação ao não tocar nos “privilégios” eclesiásticos. Mendelssohn explica que levará séculos até que as pessoas não- esclarecidas “entendam” que estes “privilégios” não seriam lícitos nem úteis. Ele já nota, porém, que o espírito de “tolerância” já havia se infiltrado o suficiente a ponto que a prática eclesiástica da excomunhão e da coerção perdera sua popularidade. Além

pelo menos nosso dever opô-lo à distância, e, antes de tudo, erigir uma represa contra sua futura expansão. Se não podemos erradicar um mal completamente, devemos pelo menos cortar suas raízes.”

disso, o pai do Haskalá se alegra de que o clero protestante local estaria promovendo este racionalismo como sendo o verdadeiro medo de Jahvé entre os iniluminados. Descrevendo o direito eclesiástico como um “ídolo”, ele regojiza que estes pastores estivessem colocando a verdade no pedestal. Ao contrário destes pastores cristãos bonzinhos e “esclarecidos”, haveria contudo aqueles gentios que não teriam gostado de seu prefácio, embora não tivessem conseguido refutar seus argumentos.

2.2.2.2 Resposta ao resenhista das Göttingsche Anzeigen

Um destes gentios pensantes teria sido o resenhista das Göttingsche Anzeigen von gelehrten Sachen (Setembro 1782)91. Comentando o prefácio de Mendelssohn, ele teria reclamado que estes argumentos seriam severos e novos, e que, além disso, inviabilizariam um debate, pois simplesmente negavam premissas usualmente aceitas (i.é, que a Igreja e o Estado teriam o direito sobre as convicções dos cidadãos).

O “Sócrates alemão” reconhece isso, mas insiste que o debate ainda seria possível. Ele alega que se pode sempre examinar os pressupostos de todo jogo. No caso do tribunal de justiça, o assassino que diz não ver diferença entre seu reato, e o ato de matar um animal, pode ser condenado, a despeito de sua não aceitação dos princípios do direito. O padre, porém, que irá conversar com ele antes de sua execução, teria, supostamente, que responder a suas dúvidas de modo puramente racional. Mendelssohn alega que, na religião, isso teria que ser como nas artes e nas ciências. Segundo sua visão ultraracionalista, não haveria artigo de fé que não pudesse, em princípio, ser submetido a exame crítico. A religião seria, assim, um tribunal de última instância que proveria as respostas que faltam ao Estado.

O resenhista havia dado como um contra-exemplo o caso do mohel que realiza o controverso ato de circuncisão nos meninos. Este estaria incumbido pela comunidade judaica de fazer esta operação. Caso ele mais tarde se convencesse que a circuncisão é uma mutilação genital danosa que não devia ser feita, e deixasse de cumprir seu contrato, que direitos teria ele? O resenhista argumenta que isto seria similar ao caso do pastor que teria que continuar seu ofício, mesmo tendo perdido a fé.

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O filósofo judeu responde que o caso não se aplica, pois o mohel desempenharia um papel comunitário que, em princípio, caberia ao pai. Haveria inclusive vários indivíduos competindo para poder fazer a operação, e a única regalia recebida pelo serviço seria o de sentar na ponta da mesa na comemoração posterior ao ato. Sendo um serviço, o mohel ganharia por seu trabalho, mas isto não teria comparação com os privilégios dispensados aos membros do clero. Além disso, de pouco importariam as convicções pessoais do mohel sobre seu trabalho. Caso ele achasse a circuncisão uma crueldade, ele teria simplesmente que procurar um outro emprego.

Para que o argumento do resenhista tivesse força, ele teria que demonstrar que (a) haveria um vínculo entre direitos sobre bens e pessoas e as convicções, e (b) que leis positivas e contratos poderiam fundar um tal direito sobre as convicções. Mendelssohn aponta com razão que o contra-exemplo do mohel não faz nada para estabelecer um tal direito. No caso de pastores compelidos a propalar doutrinas nas quais não acreditam, haver-se-ia de ter em mente a distinção entre o direito do Estado sobre ações enquanto tais, e atos que transmitem convicções. O mohel pode fazer a operação a despeito de suas crenças. O pastor que deve pregar algo no qual não acredita estaria em uma situação mais complexa, dado que o ensinamento perderia seu valor e sinceridade. Mendelssohn prefere não prescrever o que um pastor nessa situação deveria fazer, deixando isso a cargo da consciência individual e das circunstâncias de cada caso. Ele insiste que uma refutação de seu argumento teria que demonstrar os pontos (a) e (b) com base no direito natural. Ele também critica os autores precedentes a ele, que simplesmente partiam de um “jus circa sacra”, que teria então que ser atribuído a alguém. Mesmo Hobbes não teria escapado deste pecado.

2.2.2.3 Resposta a August Friedrich Cranz (o “pesquisador”)

O autor de Jerusalém passa então a responder a August Friedrich Cranz (1737- 1801), que lhe havia escrito uma carta anônima descrevendo-se como um “pesquisador” (Suchende, philalethes), que é o termo maçônico que designa aquele que rebusca os mistérios esotéricos. Cranz, que pode ter sido maçom, tinha grande simpatia por Mendelssohn e acreditava que o reformador judeu era um crente no Judaísmo tradicional mas que teria caído em contradição com sua própria fé. Dizendo-se motivado pelo ideal de “um pastor e um rebanho”, Cranz considerava o momento

propício para tentar converter o “Sócrates alemão” para o Cristianismo. A tentativa anterior de Johann Caspar Lavater havia sido infeliz e mal-sucedida. Assinando sua carta com um “S” seguida de pontinhos, Cranz esperava com este ardil fazer Mendelssohn crer que a carta teria sido redigida por Joseph von Sonnenfels de Viena, que era tido em alta estima por ele. O ardil funcionou e motivou a própria redação de Jerusalém. Só mais tarde se esclareceria que a carta teria sido escrita por Cranz, mas o importante era que ela já havia surtido efeito de estimular Mendelssohn a escrever seu ensaio.

O argumento básico de Cranz era que a rejeição do poder eclesiástico retiraria as bases da religião mosaica. Deste modo, o pai do Haskalá estaria se colocando em uma posição complicada. A questão seria: como poderia ele conciliar sua defesa da liberdade de consciência e sua crítica do direito de excomunhão com o sistema de governo judaico? O próprio Antigo Testamento mostrava que Moisés vinculava a coerção e a punição à não-observância dos deveres para com Jahvé, portanto, do direito eclesiástico com o ensinamento doutrinal. Cranz concordava com Mendelssohn que o cumprimento desses deveres com base no medo seria pura escravidão, mas não via como Esclarecimento e Judaísmo tradicional poderiam ser conciliados. A pedra fundamental do Judaísmo seria essa vinculação entre o poder eclesiástico e a religião, sendo a lei mosaica dada por revelação. Deste modo, objetava Cranz, ficava difícil de entender a posição real de Mendelssohn. Ao mesmo tempo, Cranz procura levantar a possibilidade do reformador judeu se converter ao Cristianismo, dado que ele via no Haskalá uma certa convergência com o Protestantismo. De fato, isto se justifica, pois historicamente sabemos que muitos maskilim se coverteram, inclusive a família do próprio Mendelssohn. A questão posta pelo “pesquisador” era, portanto, muito legítima e relevante, obrigando Mendelssohn a clarificar mais sua relação com o Judaísmo tradicional.

A resposta a Cranz será, em síntese, que, após a destruição do segundo templo, o Judaísmo teria se tornado uma doutrina racional contendo verdades eternas, ou seja, uma religião, e não mais um Estado teocrático (ou hierocrático).92 Deste modo, o poder

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Como veremos mais adiante, Kant não irá aceitar esse argumento, e continuará a considerar o Judaísmo não como suposta religião, mas como forma teocrática de organização étnica e política.

eclesiástico mosaico não seria mais legítimo nas condições históricas atuais, o mesmo valendo para a excomunhão (herem) . Assim, Mendelssohn procura não ceder na sua concepção do direito natural, enquanto reformula o Judaísmo tradicional para adequá-lo à ideologia iluminista. Na sua resposta, ele reconhece o mérito da crítica de Cranz, pois a concepção de Judaísmo tradicional, como descrita por ele, seria de fato a de muitos judeus. Isso não mudaria, contudo, o fato que a autoridade religiosa poderia, pela força, apenas suprimir a expressão da razão, mas não refutar os argumentos. Mesmo que ele fosse obrigado ao silêncio pela autoridade rabínica, esses argumentos não refutados reapareceriam na sua mente sob a forma da dúvida, que ele tentaria aplacar através de preces piedosas.

Mendelssohn se faz de ofendido, porém, perante a sugestão que ele estaria tentando subverter o Judaísmo tradicional, apesar de ser exatamente isso que ele estava fazendo. Ele também exprime irritação com a sugestão de Cranz que, após esse primeiro passo, de rejeitar o Judaísmo tradicional, ele se aproxime do Cristianismo. A réplica a isto será que, se o Judaísmo é metaforicamente o andar fundamental ou térreo sob o Cristianismo, de pouco adiantaria mudar para o andar superior, se tudo irá colapsar sob o exame racional. O convite não deveria ser o de conversão, mas que judeus e cristãos procurem dissipar a aparente contradição entre Bíblia e ciência natural.

Neste momento, o pai do Haskalá passa a discutir as questões colocadas no pós-escrito à carta de Cranz, que foram enviadas junto com esta com o nome do autor, Daniel Ernst Mörschel. Deste modo, a resposta a Cranz fica postergada ao final do texto, junto com a conclusão da resposta a Mörschel. É esta última que ocupará a maior extensão do texto mendelssohniano, e nele o autor estará basicamente reformulando os conceitos fundamentais Judaísmo tradicional como revelação, as condições de validade das leis, e sua missão como veiculador do monoteísmo puro. Segundo Alexander Altmann (Altmann, p. 25), a resposta não satisfez Cranz. Para o “pesquisador”, o filósofo judeu provavelmente não teria podido dizer o que realmente pensava por motivos políticos. O fato é que a contradição apontada por Cranz era incontrovertível e que só restava a Mendelssohn mascarar ao máximo o conflito com o Judaísmo tradicional.

A resposta real, no entanto, é que, para obter direitos civis para a colônia judaica, era necessário adotar uma posição contratualista e racionalista, em princípio oferecendo como contrapartida a renúncia e o sacrifício93 do Judaísmo. Não teria feito sentido algum propor a aquisição de cidadania nos Estados europeus, supostamente se integrando, sem ao mesmo tempo abandonar o modo de vida judaico. A tarefa de Mendelssohn era advogar em causa da própria etnia e fazer isso parecendo ser o mais “racional” possível para dar a seu argumento o máximo de respeitabilidade. A elite financeira judaica que o sustentava estava provavelmente muito pouco preocupada com finezas teológicas e doutrinárias, sendo para ela muito mais relevante remover empecilhos à sua ascenção política. Mais importante que a consistência lógica era avançar a ideologia iluminista que teria um efeito poderosamente destrutivo sobre o ethos (ou espírito comunitário) dos povos europeus cristianizados. Dada a experiência histórica dos judeus na Diáspora, a herança etnocêntrica do Judaísmo tradicional havia sido já submetida com sucesso a dificuldades desconhecidas aos outros povos. Assim, podia-se esperar que o efeito corrosivo da ideologia iluminista seria muito menos eficaz entre judeus do que entre os gentios e, assim sendo, abrir-se-iam as portas para uma nova ordem judaico-maçônica que suplantaria tanto a Igreja Católica quanto os setores conservadores da aristocracia européia.94 De fato, é isso que ocorreria com a Revolução Rrancesa. É neste contexto estratégico que a contradição de Mendelssohn, que de outro modo permaneceria inexplicável, passa a fazer sentido.

De fato, a conversão dos maskilim e sua assimilação foi uma perda para o Judaísmo, e pode ser vista como um dano colateral da estratégia iluminista. No entanto, do ponto de vista genético, isso significa um influxo no conjunto gênico gentio sem que tenha havido um comparável e recíproco influxo europeu nas comunidades ortodoxas, que continuaram a impor a endogamia. Esta impermeabilidade genética das comunidades judaicas ortodoxas faz com que elas preservem sua genealogia e coesão enquanto a aristocracia e classe média gentias se hibridizavam cada vez mais. O

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Kant, como veremos adiante, conceitua esse sacrifício da identidade na assimilação como uma "eutanásia" do Judaismo, o que não tem, cumpre enfatizar, absolutamente nenhuma conotação genocida, quanto mais se considerarmos a integração como algo voluntário.

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resultado prático disto é que, no outgroup gentio, o nível de solidariedade grupal e etnocentrismo será nitidamente menor, tornando-o mais fácil de dividir e de administrar.

Altmann (Altmann p. 12) nota que, no rascunho do texto de Jerusalem, Mendelssohn havia pretendido tomar uma atitude explicitamente anti-cristã. Em resposta às críticas que Cranz havia feito à intolerância da legislação mosaica, ele pretendia dirigir a mesma acusação ao Cristianismo, e até mesmo o Protestantismo. Isso mostra, portanto, a intenção agressiva e apologética do pai do Haskalá.

É importante também notar que a conclusão de Jerusalém, em que Mendelssohn irá repudiar a idéia de uma união das religiões, faz também parte da resposta a Cranz. O herói inspirador de Natan, o sábio justifica essa rejeição dizendo que, por detrás do princípio “um pastor para um rebanho”, se esconderiam malévolas intenções de tirania