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Mendelssohn como apóstata criptocristão (Hennings, Cranz, Hamann)

0 Introdução geral

2 Moses Mendelssohn como Natan

2.2 Jerusalém esclarecida (1783)

2.3.4 Mendelssohn como apóstata criptocristão (Hennings, Cranz, Hamann)

Na perspectiva dos iluministas sinceramente cristãos e amigavelmente dispostos como Von Hennings e mesmo Cranz, a religião tolerante, racional e verdadeira descrita por Mendelssohn corresponderia não ao Judaísmo histórico, mas ao Cristianismo ideal buscado pelas Luzes. A própria surpresa pelo espírito reformista mendelssohniano, expressada por Kant em sua carta, reflete essa descrença geral na sinceridade da fé judaica do autor de Jerusalem.111

Na contracorrente do Iluminismo berlinês, Johann Georg Hamann (1730-1788) dedicou dois escritos, Golgotha und Scheblimini (1784) e Fliegender Brief (1784), à crítica da obra-prima mendelssohniana. O ponto de partida da reflexão de Hamann era sua concordância fundamental com a rejeição lessingueana tanto da leitura literal ortodoxa da Bíblia, quanto da crítica neóloga do Antigo Testamento (por sua suposta incompatibilidade com a razão natural). Sem dúvida, a abordagem literal ortodoxa era excessivamente restritiva, mas a linha neóloga submetia o Antigo Testamento a uma análise tão devastadora que levava ao seu descrédito total. Entre os vários pontos criticados destacavam-se pelo menos estes: a ausência de uma clara concepção de imortalidade da alma, a criação ex nihilo do mundo, o Deus cruel e vingativo, e o caráter não universal da sua moral. Com seu livro Phaidon, Mendelssohn havia justamente tentado atender a sentida falta de uma concepção da imortalidade no Antigo Testamento, mas sua escolha de situar seu diálogo em Atenas e não Jerusalém podia ser interpretado, e provavelmente o era à época, como uma admissão dessa deficiência.112

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Allan Arkush (1999, p. 44) escreve: “Even after reading Jerusalem, Kant, Maimon, and other contemporaries of Mendelssohn remained convinced that he was something less than a sincere defender of Judaism.”

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Hamann via Mendelssohn, portanto, com suspeita, pois considerava Jerusalém a tentativa de importar a abordagem neóloga para dentro do Judaismo. Em Golgotha und Scheblimini ele irá fazer uma crítica imanente da teoria mendelssohniana dos direitos. Além de protestar contra as dicotomias entre Estado e Igreja, entre ações (Handlungen) e convicções (Gesinnungen), entre razões de verdade (Wahrheitsgründe) e motivações (Bewegungsgründe), Hamann observa que o “Sócrates alemão” terminaria por não só contradizer seu esquema do Judaísmo, mas de assumir uma posição hobbesiana para garantir a paz social a qualquer custo. Ele encerra sua crítica lançando acusações de hipocrisia e manipulação verbal.

“Man verwirrt nämlich die Begriffe, und es ist im genausten Verstande eben so wenig der Wahrheit gemäß, als dem Besten der Leser zuträglich, wenn man Staat und Kirche entgegen setzt, die innere Glückseligkeit von der äußern Ruhe und Sicherheit so scharf abschneidet, wie das Zeitliche vom Ewigen. (...)

Zur wahren Erfüllung unserer Pflichten, und zur Vollkommenheit des Menschen gehören Handlungen und Gesinnungen. Staat und Kirche haben beide zu ihrem Gegenstande. Folglich sind Handlungen ohne Gesinnungen, und Gesinnungen ohne Handlungen, eine Halbierung ganzer und lebendiger Pflichten in zwo todte Hälften. Wenn Bewegungsgründe keine Wahrheitsgründe mehr seyn dürfen, und Wahrheitsgründe zu Bewegungsgründen weiter nicht taugen; wenn das Wesen vom nothwendigen Verstande, und die Wirklichkeit vom zufälligen Willen abhängt: so hört alle göttliche und menschliche Einheit auf, in Gesinnungen und Handlungen. Der Staat wird ein Körper ohne Geist und Leben – ein Aas für Adler! Die Kirche ein Gespenst, ohne Fleisch und Bein – ein Popanz für Sperlinge! Die Vernunft mit dem unveränderlichen Zusammenhange sich einander voraussetzender oder ausschließender Begriffe, steht stille (...)

Dennoch meynt der Theorist, daß allenfalls dem Staat eben so wenig an den Gesinnungen seiner Unterthanen gelegen seyn dürfe, als dem lieben Gott an ihren Handlungen, wodurch er nicht nur seinem eigenen Schemen des Judenthums widerspricht, sondern abermal einstimmig mit Hobbes die höchste Glückseligkeit in äußerlicher Ruhe und Sicherheit setzt, sie mag kommen, woher sie wolle und vollkommen so fürchterlich seyn, wie jene Abendruhe in einer Festung, welche des Nachts übergehen soll, daß sie, wie Jeremias sagt, „einen ewigen Schlaf schlafen, von dem sie nimmer aufwachen.“ Durch solche Wortspiele physiognomischer und hypokritischer Unbestimmtheit kann sich in unsern erleuchteten Zeiten der Mitternacht jeder Buchstaben- und Wortkrämer über den sachverständigen Meister eine Triumph erwerben, den er im Grunde

writing, at the end of the eighteenth century, the world of letters was amply populated by men who regarded the ancient Israelites in general and the biblical writers in particular as a childishly ignorant, superstitious, and prejudiced lot whose testimony lacked much credibility. Their ranks included not only the French philosophes, whom he held in low regard, but people such as H.S. Reimarus and G.E. Lessing., for whom he had great respect.”

doch ihm zu verdanken hat; aber eine Sprachverwirrung der Begriffe bleibt nicht ohne practische Folgen.”113 Hamann (Hamann 1821-1843)(p. 39-41)

Embora o contexto específico seja bastante diferente, não seria de todo descabido traçar um paralelo (ou uma analogia) entre o anti-Iluminismo de Hamann e a oposição de Pascal ao cartesianismo. No caso do “mago nórdico”, porém, há uma cobrança de sinceridade (ou honestidade intelectual) que está associada a um espírito político em certo sentido mais “liberal” (ou anti-totalitário, sendo que ele via Frederico II da Prússia ainda como um déspota, por mais esclarecido que se pretendesse). No caso específico da crítica a Mendelssohn, essa cobrança se direcionava mais para o que poderíamos chamar a “autenticidade étnica” do pai do Haskalá, com intuito não de desconstrui-la, mas, ao contrário, para defendê-la e aproveitar a oportunidade de escavar mais profundamente o significado do Iluminismo em geral e suas conseqüências espirituais negativas. A insistência de Hamann seria na preservação da autenticidade judaica do “Sócrates alemão”, o que seria preferível à tentativa iluminista de assumir algum tipo de identidade cosmopolita, mesmo que parcial.

Os iluministas cristãos viam o Judaísmo como sendo intolerante e preso inflexivelmente à lei do talião. Desse modo, supunham que Mendelssohn teria falsificado esse caráter de sua religião ancestral com intuito não só reformista, mas talvez também cristianizante, abrindo-a para um espírito mais caridoso e humano. Nesse sentido, o pai do Haskalá seria um apóstata do Judaísmo e uma espécie de protocristão ou criptocristão. Incapazes de compreender a posição real de Mendelssohn, projetavam nele sua própria visão cristã, reconhecendo a intolerância do

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“Começa-se a confundir os conceitos, e é até tão pouco adequado à verdade, no sentido mais preciso, quanto pouco suportável para o melhor dos leitores, se o Estado e a Igreja são opostos um ao outro, se a felicidade interna é separada tão severamente da paz e segurança externas, como o temporal seria do eterno (...). / Para o verdadeiro cumprimento de nossos deveres e, para a perfeição do ser humano, são necessárias ações e convicções. Estado e Igreja têm ambos como objeto. Logo, ações sem convicções, e convicções sem ações, são uma divisão de deveres vivos e completos em duas metades mortas. Se motivações não podem ser mais razões de verdade, e razões de verdade não servem mais como motivações; se a entidade depende do entendimento necessário, e a realidade depende da vontade contingente: então cessa toda unidade divina e humana, em convicções e ações. O Estado se torna um corpo sem espírito e vida – uma isca cadavérica para águias! A Igreja se torna um fantasma, sem carne e osso – um marionete para pardais! A razão permanece imóvel com o contexto inalterável dos conceitos que se pressupõem uns aos outros ou se excluem mutuamente. (...) / E, no entanto, opina o teórico (i.e. Mendelssohn, T.T.) que, em todo caso, as convicções de seus súditos diriam tão pouco respeito ao Estado quanto as ações do fiéis a Deus, pelo que o autor não só contradiz seu próprio esquema do Judaísmo, mas, de novo, em concordância com Hobbes, põe a maior felicidade na paz e segurança externas, venham como e onde vierem e sejam tão completamente medonhas, quanto aquela calma noturna na fortaleza, a qual deve transcorrer a noite, de modo que, como diz Jeremias, “durma um sono eterno, do qual ela nunca acordará.” Através de tais jogos de palavra e vagueza fisionômica e hipócrita é possível, em nossos tempos esclarecidos, que qualquer sofista alcance um triunfo sobre o erudito mestre, que ironicamente lhe proporcionou essa possibilidade, mas a confusão lingüística dos conceitos não permanece sem conseqüências práticas.”

Judaísmo mas desconsiderando a tentativa desesperada do pensador judeu de manter a sua identidade étnica enquanto professava um cosmopolitismo defensor de direitos humanos universais.

A interpretação iluminista cristã da intolerância no Judaísmo se estenderá mais tarde até Dühring (Judenfrage, p. 149), por exemplo, que irá inclusive argumentar que seria a intolerância do próprio culto judaico que não poderia jamais ser tolerada, com base no princípio de “não se tolerar o intolerante” e no exame honesto do Judaísmo em seu conflito histórico fundamental com o resto da humanidade. Um sinal gritante da intolerância judaica estaria na advocacia explícita do seu próprio interesse étnico às custas dos outros, e na sua tentativa de legitimar-se perante si e os outros através de uma pretensa supremacia divina, como vimos em A Educação da Humanidade de Lessing.

“5. The word “tolerance” is always on the lips of the modern Jews, when they speak of themselves and demand completely unhindered play for their type and way. Tolerance, however, is that which suits no people less than precisely the Jews. Their religion is the most exclusive and most intolerant of all; for it basically lets nothing be valid but merely the naked Jewish self-interest and its goals. The half-Jew, Lessing, was somewhat timid with his parable of the three rings, that is, religions. Where the genuine one is he apparently did not answer. The modern Jews tirelessly nurture not merely the Lessinguian false- and semi-Enlightenment and a sort of ideas of tolerance, in that they put forth a shield from the so-called German literature; they have also taken up a bolder way. The apparently modest claim of mere toleration is interchanged with an open arrogance which glorifies the Jewish life and the accompanying religion as something beyond which nothing else extends. The Jewish religion is apparently a non plus ultra, an original embodiment of all humanity, gentleness and wisdom, and whatever else all these bold falsehoods still maintain among the writers of Jewish adverstiments.” Dühring, Judenfrage, p. 86-87.

Na perspectiva dühringuiana, em face deste ativismo étnico, em forma filosófica, visando a judaicização e imposição de interesses estranhos ao patrimônio genético- cultural europeu, a mera análise da (in)consistência lógica da argumentação mendelssohniana de pouco adiantaria se perdéssemos de vista o contexto político em que este discurso irá desempenhar sua função propagandística.

Toda tecnicidade do discurso lógico e jurídico mendelssohniano, supostamente iluminista, esconde uma unilateralidade, uma paixão etnocêntrica e um jogo duplo que só se revelam plenamente no final retórico de Jerusalém. Ao defender um Iluminismo

pela metade para si e a exigir um Iluminismo total para os outros, Mendelssohn mostra ali sua verdadeira face, a do ativista que via a filosofia não como fim em si (que mereceria ser cultivado pelo seu valor intrínseco), mas como um meio publicitário para conseguir vantagens para seu grupo étnico. É isso que nos leva a questionar a coerência e a honestidade intelectual do autor.