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Um autor afinado com seu tempo: O Rio que conta e canta dá o tom a Manuel Antonio de Almeida

Em uma das muitas situações das Memórias de um Sargento de Milícias, romance em que criador e criatura chegam às vezes a se confundir na grande narrativa que é um verdadeiro

patchwork de pequenas histórias justapostas, o cronista da nova metrópole lusitana nos

lembra o que é produzir uma história segundo a gramática do processamento oralizado da informação:

Era má sina do major ter sempre de andar desmanchando prazeres alheios; e infelicidade para nós que escrevemos estas linhas estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes: a fidelidade porém com que acompanhamos a época, da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes, a isso nos obriga (ALMEIDA, 2005, p. 210).

Numa espécie de aspiração jornalístico-literária de reproduzir tanto quanto possível os costumes da sociedade de um tempo e lugar, Almeida transfere para a palavra escrita e impressa a maneira de narrar das personagens que ele mesmo cria. O trabalho de produzir uma representação da cidade e do povo comum que nela se movimenta em sarabanda (CANDIDO, 2006, p. 533), mesmo que pretensamente fiel à realidade, requer muito mais a imersão do escritor no objeto de preocupação, ainda que em estatuto de memória, do que uma observação cientificista a escrutinar os sujeitos e as coisas, para daí isolá-los e assim desvendar uma razão de ser e estar no mundo, uma explicação para as ações, uma análise psicológica das motivações. Se o cronista é, na maior parte das vezes, um homem de seu tempo, ou se propõe a isso, como é o caso de Almeida, o escritor das Memórias não pode, então, ser criticado pela ausência de uma “densidade psicológica de um Machado”, porque o tempo vivido e mais tarde contado – o do Rio de Janeiro do início do século XIX - é o de uma sociedade tradicional que trabalha a informação sobretudo em regime de oralidade. Esta estrutura mental não teria que, necessariamente, determinar a escrita do romance; entretanto, em Almeida, o oral, também como modo de produção da existência e da experiência de uma maioria anônima, deixa fortes marcas na obra. A repetição, por exemplo, como mecanismo oralizado de memória que favorece a retomada e a reconstrução narrativa, já presente nas práticas sociais cotidianas da sociedade de informação do tempo do rei, perpassa também a criação literária de tal maneira que esta se torna exemplar do mundo representado:

No dia seguinte a mesma velha chamou-a para a janela à hora do dia antecedente; e o toma-largura passou como sempre, e fez o seu cumprimento. A velha disse nessa ocasião, como completando o seu pensamento da véspera... (ALMEIDA, 2005, p. 200).

Na janela, não mais como um posto de observação distanciada do letrado do século XVII que fez questão de diferenciar-se do populacho que circulava pela rua, mas agora como lugar de interação, a velha é a representação do narrador oralizado, que o contador de histórias chamado Almeida resolveu encarnar. O romance, à semelhança das textualidades urdidas no cotidiano pela fala e o gesto, avança e recua no tempo, expande-se no espaço e acompanha a movimentação dos indivíduos e grupos na nova metrópole efervescente de acontecimentos,

num esquema de “duplicação progressiva”, que fomenta o recall50

, sem contudo retardar o andamento da tessitura e acentuando, de fato, o momentum narrativo (KELBER, 1997, 68).

Pode-se dizer que a estrutura folhetinesca do romance, conforme foi primeiramente publicado, é um tipo de materialidade que influencia o autor na retomada constante do fio narrativo de uma história fragmentada e construída em blocos. No início de vários capítulos, Almeida, como a velha na janela, recupera um assunto que foi suspenso e deixado para trás e, em seguida, acrescenta dados novos para fazer avançar o romance. Frases e expressões do tipo “Os leitores estarão lembrados do que...”, “como dissemos”, “pelo que temos referido”, “esta cena que acabamos de pintar”, “deixemos...e voltemos...”, “como já fizemos sentir aos leitores” reconstroem a estrutura de uma conversa do dia-a-dia e a contação oral, que carecem de remontar ao que já foi narrado como artifício mnemônico (ALMEIDA, 2005, p. 51; 75; 109; 124; 178). Leonardo, a personagem-pretexto que garante unidade à sequencia de situações, aos blocos de acontecimentos justapostos (CANDIDO, 2006, p. 534), é frequentemente lembrado no início dos capítulos como memorando, ou seja, o moleque é não apenas memorável pelas travessuras, o que confere ao acontecimento ainda mais um caráter de excepcional e de inusitado, mas também funciona como uma espécie de ferramenta de ligação mnemônica para a tessitura da intriga: “Dadas as explicações do capítulo precedente, voltemos ao nosso memorando, de quem por pouco nos esquecemos” (ALMEIDA, 2005, p. 61). Entretanto, a suspensão de uma cena para nela se inserir outra, como uma digressão oral que assiduamente inunda as conversações, e depois reavê-la, não acontece apenas no intervalo entre um capítulo e outro, mas, repetidas vezes, surpreende o leitor no meio de uma história. Esse trabalho de configuração é explicado amiúde pelo autor no diálogo com um leitor

explícito no texto. Didático e preocupado, inclusive, em não cansá-lo com tantas repetições,

talvez por saber que a palavra impressa como memória espacializada e materializada no papel e na tinta por si só pudesse dispensar o artifício da retomada constante da informação, Manuel Antonio de Almeida diz o tempo todo como é feita essa tessitura. O escritor ainda mostra, desta maneira, que aquilo que narra ou descreve é uma cena pintada pela escrita e, portanto, a representação de um mundo dado a narrar, embora ele considere plausível a ideia de que possa reproduzi-lo com fidelidade. Para isso, oscila entre a onisciência – “Lendo na intimidade do pensamento da velha, com a nossa liberdade de contador de histórias, diremos

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Optamos por não traduzir, no texto, o vocábulo inglês cujo sentido atual, no campo da informática, é bem elucidativo do trabalho mnemônico de configuração narrativa: “rechamada; 1 - ato de trazer de volta texto ou arquivos da memória (interna ou externa); 2 – trazer de volta texto ou arquivos da memória para edição”. Cf. DICIONÁRIO ELETRÔNICO MICHAELIS Inglês e Português. São Paulo: Digerati, s/d.

ao leitor, que o não tiver adivinhado, que...” – e a percepção limitada – “O que eles se diziam não posso dizê-lo ao leitor, porque o não sei” (ALMEIDA, 2005, p. 141; 200). Esta última situação faz parecer que o autor escreve pelo que ouve, pelo que ouviu contar, seja numa conversa à beira da janela, numa “conferência” sobre a esteira, em meio a uma patuscada, ou até mesmo no conhecido Canto dos Meirinhos, em lugares e momentos que ele mesmo diz serem bem propícios não apenas à circulação de boatos como também à imaginação produtora de histórias. Ao assumir de vez a função de contador, acaba igualando-se às personagens.

O que poderia passar apenas como um romance de costumes (CANDIDO, 2006, p. 531-535) torna-se uma verdadeira teoria da narrativa, e da narrativa oralizada. Almeida, como um José Manuel ou uma Dona Maria, num ambiente de interação onde o que é contado no diálogo está o tempo todo suscetível a mudanças que indicam rumos novos ao texto, lembra o leitor do que lhe já foi dito (“por aquele motivo que o leitor bem sabe”), instiga-o a tentar desvendar a trama (“o leitor sem dúvida já adivinhou que...”), acalma-o e preserva-o de possíveis aborrecimentos com a leitura (“para sossegarmos os leitores...” e “uma mentira muito sem sabor, que nós poupamos aos leitores”), coloca-se também como um boateiro que sussurra a notícia no ouvido (“saiba o leitor em segredo...”) e deixa claro que o que faz é uma obra de síntese (“começaram estes últimos em conversa renhida, de que damos aqui uma pequena amostra” e “pouparemos os leitores certos detalhes”), pela impossibilidade de reproduzir todo o conteúdo das falas. O narrador ainda joga para a personagem, como se ele e o leitor estivessem com ela numa roda de conversação, a tarefa de esclarecer um dado obscuro de uma história ou um traço distintivo do indivíduo: “O amigo do Leonardo que explique o que isso quer dizer, e explicando dará também a conhecer o que era ele próprio na família” (2005, p. 51; 75; 132; 155; 175; 183; 201).

Almeida quer tornar a narrativa agradável ao leitor, à semelhança de uma conversa na esteira, em frente de casa, numa noite de luar que só o Rio de Janeiro daquela época é capaz de oferecer. Portanto, a escrita precisa ter a lógica da comunicação oral e se tornar uma fala armazenada, num suporte de memória: “Os leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem passado em casa da família de Vidinha não tenhamos falado nesta última personagem”. As estratégias de que utiliza para isso estão fortemente ligadas ao clima de interação e intimidade com que o leitor, transformado em compadre que já está por dentro das situações, é colocado na trama: “Os leitores, familiarizados com o destino que tinham todos os prisioneiros do major Vidigal, adivinham já que lhe indicaram o caminho da Casa da Guarda no Largo da Sé” (2005, p. 198; 203). Além da linguagem coloquial, numa sintaxe que

elucida “uma prosa direta e simples” (CANDIDO, 2006, p. 535), o autor deixa um rastro de configuração oralizada nas expressões que denotam forte ligação com a música e o som - “Dona Maria dava o cavaco por um mexerico” - ou com a palavra falada, a gestualidade e a memória - “como sabe de cor e salteado a maioria dos leitores” - ou ainda no uso da hipérbole que remete às línguas humanas: “um dia desandou... em ameaças do tamanho da torre de Babel”. Mas o apelo oral na linguagem do romance vai além do uso da fala e do gesto: “Como já fizemos sentir aos leitores”, relembra Almeida, na referência a uma decisão tomada por uma das personagens, anterior ao presente da narração. É preciso também sentir a história, quando isso significa tanto ouvir quanto conhecer, e conhecer por ouvir contar. (2005, p. 117; 125; 167; 182).

O escritor, na função de um mestre de cerimônia, de reza ou de escola, três “instituições” da época encarnadas nas figuras do cônego, do catequista ambulante e do mestre-escola, ora atribui à fala das personagens recursos didáticos orais de constituição da experiência, de que se retiram ensinamentos que visam à coesão da comunidade e à preservação das tradições, ora assume, ele mesmo a tarefa de instruir. “É sempre assim que se sucede: quereis que nos liguemos estreitamente a uma cousa? Fazei-nos sofrer por ela”, conclui Almeida a respeito dos laços que se criaram entre Leonardo e a mulatinha cantora. Mais tarde, numa outra inferência, o narrador comenta, de maneira bem humorada, o estado de espírito de Vidinha, depois de se decepcionar com o jovem pretendente: “Em certos corações o amor é assim, tudo quanto tem de terno, de dedicado, de fiel, desaparece depois de certas provas, e transforma-se num incurável ódio”. Na abertura de um dos capítulos, Almeida nos fornece uma dica a respeito da fonte de tais ensinamentos: “É muito antigo dizer-se que há uma coisa ainda pior do que um inimigo, e é um mau amigo”, como uma espécie de observação generalizante a ser esmiuçada com a narração de acontecimentos que a ilustram. O romance contém várias frases prontas, palavras de ordem e provérbios retirados da sabedoria popular e repetidos no meio dos blocos de histórias que o compõem. São coisas do tipo: “a indiferença é o pior de todos os ódios” ou “os estremecimentos aproveitam, porque é fácil a volta da paz” (2005, p. 172; 199; 216; 218).

O índice de oralidade presente nesse uso de assertivas pelo autor está no contexto da ação humana, configurada em forma de narrativa, em que se inserem. Há uma forte ligação com o concreto, ou seja, com situações da vida material, muitas vezes em histórias cuja trama é composta de cenas dramáticas de disputa, como nas que envolvem as personagens Leonardo e Vidinha. Dessa maneira, conseguem-se a atenção do leitor-ouvinte e a retenção dos valores

e representações de mundo da sociedade da época, quando as narrativas do cotidiano “personalizam e atualizam a informação a ser lembrada”, sem precisar utilizar-se da abstração para discorrer sobre os princípios que norteiam a vida de uma comunidade, uma vez que eles já vêm ilustrados e “gerenciados em forma de história” (KELBER, 1997, p. 57). Por isso, também, as personagens de Almeida são flat characters, como explica Antonio Cândido (2006, p. 533), e o romance é “de costumes”, “de relação”, em que, através do movimento em cena e da interação dos tipos humanos é possível extrair algum ensinamento. Algumas das histórias que formam a grande narrativa são “didáticas”, “gatilhos mnemônicos” à transmissão de conhecimento e sedimentação da experiência, para fazer valer “o objetivo fundamental do processo oral” que é o de “tornar a informação virtualmente presente na memória” (KELBER, 1997, p. 56-57), ainda que o suporte material seja a palavra impressa e com ela a oralidade dialogue em linguagem, temas e maneiras de representar a vida material.

Apesar de não ser uma prerrogativa da oralidade, a construção da imagem na mente do público – até na do leitor implícito no texto – e da informação que ela carrega é essencial ao entendimento da narrativa, que tem outros suportes de memória que não a palavra espacializada na página impressa. Almeida mostra-se frequentemente preocupado com a formação imagética, que também é uma marca deixada, na escrita do autor, pela exigência do processamento oral da informação:

Figure [grifo nosso] o leitor um homenzinho nascido em dias de maio, de pouco mais ou menos trinta e cinco anos de idade, magro, narigudo, de olhar vivo e penetrante, vestido de calção e meias pretas, sapatos de fivela, capote e chapéu armado, e terá idéia [grifo nosso] do físico do Senhor José Manuel, o recém-chegado (2005, p. 110).

A recorrência constante do escritor a cenas da realidade material soa como uma necessidade de justificar o status que ele mesmo se impôs de cronista fiel dos costumes daquela sociedade. Almeida, entendendo que a narrativa, além de necessária, precisa ser verossímil (RICOEUR, 1984), chega ao ponto de pedir ao leitor que confira na experiência vivida a descrição que faz de um personagem ou de uma ambientação: “Quem quiser ter a ideia exata destes móveis procure no consistório de alguma irmandade antiga, onde temos visto alguns deles”. Para isso, supõe também o narrador que seu público conhece bem o Rio do tempo do rei, para referenciar dados do romance: “Todos sabem nesta cidade onde é o Oratório de Pedra”. Embora a frase seja afirmativa, Almeida, no diálogo com o leitor, acaba checando um detalhe do cenário: “Sem dúvida naquele oratório havia a imagem de algum santo, e o povo devoto ia ali rezar? Exatamente. Mas por que é que...”. A estreita ligação entre

ficção e realidade ainda se percebe numa referência que o autor faz ao chefe da Guarda do Rei: “Entretanto é isso uma verdade, e se fosse ainda vivo o nosso amigo Vidigal, de quem já tivemos ocasião de falar em alguns capítulos dessa historieta...” (2005, p. 59; 125). Ao dizer que a personagem foi retirada do mundo que ao escritor é dado a narrar, assim como os cenários de ambientes de comunicação do Rio de Janeiro do início do Oitocentos, Almeida dota o romance não apenas de um estatuto de fidelidade, mas também nos faz pensar como a narrativa, sendo ela própria uma forma de produção material da existência, é capaz de fazer de nossa experiência no mundo um misto de ficção e realidade.

As considerações de Antonio Cândido acerca de Memórias de um Sargento de

Milícias (2006, 531-535) são tanto mais válidas, no contexto desta investigação, quanto mais

apontam para esses vestígios oralizados no romance de Manuel Antonio de Almeida. Quando o crítico literário diz, por exemplo, que “a lei principal das Memórias é o movimento” dos grupos que “vão e vem”, na “agitação incessante do livro” onde “o que importa é o acontecimento”, é preciso compreender, mais uma vez, que a lógica do romance é a de uma conversa, sujeita a tomar novos rumos a cada instante, na interação do narrador com a audiência, no presente do ato de narrar. A impressão que se tem, principalmente quando a obra está chegando ao fim, é que, apressado, o autor parece tirar soluções inesperadas de sua cartola de bom contador, como o faz a personagem Teotônio que, embora com um script organizado das apresentações mambembes, precisa submeter o roteiro às exigências do momento. Foi assim que, para livrar o afilhado das chibatadas do major Vidigal, a comadre vai atrás de Dona Maria que, de repente, tem a ideia de procurar uma paixão antiga do chefe da Guarda para interceder pelo jovem. Assim aparece, como num passe de mágica, “a Maria- Regalada que morava na Prainha” e a comitiva que vai pleitear a causa de Leonardo está formada. Sem poder resistir ao apelo de Regalada e confiante no que ela lhe promete com algumas palavras sussurradas ao ouvido, no canto da sala, o major declara, enfim, que “o rapaz está livre de tudo”, a história volta a fluir e mais uma vez se confirma que “o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social” (ALMEIDA, 2005, 220- 223).

O apelido regalada – “isto de apelidos, era no tempo desta história uma cousa muito comum” - havia se juntado ao nome de uma Maria, “uma mocetona truz..., de um gênio sobremaneira folgazão, [que] vivia em contínua alegria, ria-se de tudo, e cada vez que se ria fazia-o por muito tempo e com muito gosto”. Assim explica o narrador a origem da alcunha atribuída ao amor de Vidigal, num dos raros momentos do romance em que as personagens,

logo que aparecem pela primeira vez, já ganham nomes (2005, p. 221). O homem, afirma Walter Benjamin, é o “orador da linguagem... porque fala no nome”. Isso de dizer no nome e não pelo nome, está associado ao caráter designativo intrínseco da linguagem, uma vez que “a essência linguística [ou de linguagem] do ser humano está no ato de denominar as coisas” (1992b, p. 33). Mas, por que, então, as personagens de Almeida ganham nome próprio tão tardiamente, numa história em que a fala cotidiana e, por conseguinte, a linguagem é o que dá sentido à existência?

Porque, tal qual no mundo oralizado, o que mais interessa é o papel exercido na intriga, é a função de cada personagem que faz engatilhar a narrativa, pois “fora da ação, ninguém existe” (CANDIDO, 2006, p. 534). Ora, mas se a ação implica num sujeito, na presença do indivíduo histórico de um tempo e lugar, que dialoga com o contexto social, o que justificaria a não identificação desse sujeito pelo nome? Sim, essa é a questão. O ser social da oralidade, transmutado em personagem da escrita, também só existe em função do grupo, da “sarabanda”, pois é da vida comunitária que depende a recriação e a atualização constantes dos valores e representações, nas práticas conjuntas em que se inserem os atos de comunicação e processamento da informação. Diferentemente desse sujeito que constrói a experiência a partir do engajamento social, o indivíduo isolado, produto da tecnologia da escrita e sua forma dinamizada que é a impressão, seria mais facilmente localizável num romance em que o “sentido da vida” se sobrepusesse à “moral da história” e a coerência psicológica tivesse prioridade sobre o discurso vivo da comunicação compartilhada (BENJAMIN, 1992b, p. 32; 46). Apesar de a “oralidade preferir histórias personalizadas”, cuja trama está centrada na maior parte das vezes na ação de um protagonista, “nenhuma das personagens evolui para uma personalidade individual”; elas são “figuras permutáveis”, pois “o que mais interessa é o funcionamento dos papéis e não o delineamento das personagens” (KELBER, 1997, p. 51). Por isso, José Manuel, o exímio contador de causos, é, nas palavras de Almeida, “uma crônica viva de todos os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias” (2005, p. 110). Interessa, aí, menos o nome do “incansável falador” do que o caráter representativo dessa figura comum da sociedade fluminense da época. A esse simbolismo concreto das personagens pode-se relacionar o caráter didático de cada uma, imprescindível à função mimética que têm no mundo oral: “No exemplo que nos dá o Leonardo”, diz o narrador em tom imperativo ao leitor, “aprendam o quanto ele tem de duradouro” (2005, p. 166).

O romance de Almeida, pela ingerência da escrita e da impressão, além do background do escritor e jornalista, só pode ser uma representação do mundo oralizado, sua maneira de processar a informação e das práticas sociais que produzem a vida material de um dado tempo e lugar, que se dispôs à tessitura de uma intriga. Assim, é de se constatar também a influência