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Um vislumbre de modernidade: a cidade das letras

Duas décadas depois da Armada, passadas as grandes reformas, o centro do Rio se firma como o espaço de socialização dos letrados, que compunham “as hostes intelectuais da metrópole”, a Meca dos homens da culture savante tropical. É assim que “um simples passeio na rua do Ouvidor equivale a uma consagração literária”, se aquele que caminha pela rua tem a sorte de avistar um Olavo Bilac, por exemplo, em meio à “falta de espaço, a sujeira... [e] o barulho” da grande cidade. Mas, distingui-lo na multidão não é tão difícil: lá vem ele, “saindo de uma confeitaria, de fraque e calça xadrez, com bigodes encerrados de pontas para cima e pincenê de ouro se equilibrando nas abas do nariz”. O intelectual circula pelas áreas centrais de dia e de noite. Pode ser visto “no cais Pharoux, na Garnier, saindo da Casa Rolas, conversando com alguém à porta do Petit Trianon”. O narrador do romance de Ana Miranda está o tempo todo a persegui-lo na cidade, isto é, quando pode fazê-lo, uma vez que o poeta “tem andado mais em Paris que no Rio de Janeiro”. É preciso escrutiná-lo de longe e de perto com o olhar, “matutando se ele seria mesmo o grande poeta finissecular ou apenas um

equívoco causado pela excitação que sua poesia ousada (...) provoca”. Na avenida que ainda é central, mas “que agora se chama Rio Branco”, alinham-se vitrines de lojas, confeitarias e redações de jornais, lugares da intelectualidade cosmopolita. Para ser apresentado a um poeta, jornalista ou escritor, deve-se ir a um café, a um teatro, ao cinema ou ao Passeio Público. Entre uma discussão e outra sobre coisas tão variadas, como o modo de se vestir de um escritor francês, a teoria acerca da arte pela arte, ou até mesmo as associações entre Banville e Baudelaire, é preciso correr para não perder “a sessão de animatógrafo” do Odeon. Até o Passeio Público, barulhento durante o dia, serve, à noite, também à solidão, ao silêncio, à reflexão, ao raciocínio e à ruminação mental, essas necessidades dos homens de letras, que para lá se dirigem, procuram um banco, sentam com um livro ou um jornal entre as pernas e entram em conversação literária (MIRANDA, 1995, p. 11-12; 15-16; 35; 65; 92; 113; 278; 282).

Do início da República ao fim da Primeira Grande Guerra, de Floriano a Wenceslau, de Quaresma a Bilac, multiplicam-se não apenas os letrados na paisagem da capital, como também as próprias letras que os instruíram, no cotidiano da população. Variadas são as concepções desse letramento, que revelam múltiplas tensões de uma Nação advinda do colonialismo escravocrata e da dominação das elites sedentas de poder, dialéticas ainda entranhadas nos modos de comunicação e nas demais práticas culturais. Letramento, nas duas primeiras décadas da República, por vezes expressa condição de classe, herança, privilégio, fator político ou de conquista do poder; noutras, é capacidade, esforço, empenho, desejo ou aplicação; e ainda, pode ser tanto um bem quanto um mal, sintoma de equilíbrio ou desvio da mente, sanidade ou loucura. Enquanto a inteligência está associada aos livros (“Não havia dia em que não comprasse livros [e] desde muito que a mulher lhe entrara na sua simulação de

inteligência”), as noções de saber e conhecimento se ligam, agora, à ideia de informação, um

sinal de que estamos num período áureo da imprensa: um dentista, de formação menor que a de um doutor, é “um cidadão semi-informado, uma espécie de barbeiro”; um dos colegas de manicômio do major Quaresma resolveu, certa feita, encarnar a figura do rei Átila, mas “tinha fracas notícias da personagem, sabia o nome e nada mais” (BARRETO, 2008, p. 43; 90; 163- 164, grifos nossos).

A escrita permeia intensamente as relações sociais. Aparecem com frequência os intercâmbios epistolares: são cartas entre amigos, familiares, homens e mulheres, da Paraíba de Augusto dos Anjos à interiorana Leopoldina, a “Atenas da Mata”, uma alusão à Zona da Mata mineira e ao fato de as letras caminharem de norte a sul da vasta República, e

encontrarem guarida tanto na capital quanto no interior. A prática de escrevê-las revela um “desejo inconsciente de pertencer às [novas] normas costumeiras de se endereçar ao outro” (FARGE, 2003, p. 89), não mais como alguém próximo ou acessível pelo som e pelo gesto, mas separado pelo tempo e pelo espaço que deixaram de ser imediatos e agora carecem de midiatização, no sentido de que a técnica precisa se interpor na comunicação e tornar-se memória materializada para além do corpo que a carrega. “A carta é memória”, nos lembra Arlette Farge, “porque escrever é mais que conveniente” (2003, p. 89) num mundo cada vez mais organizado na escrita e na impressão. Assim tem sido desde o Oitocentos, na França; assim se evidencia no início do século XX, no Brasil. Mas os Correios & Telégrafos de Leopoldina não se ocupam apenas das correspondências pessoais. Com um dia de atraso, consegue-se na cidadezinha “hedonista e intelectual” (MIRANDA, 1995, p. 133), os periódicos publicados no Rio de Janeiro e na região, além da folha do lugar, lidos nas praças, nas casas e nos estabelecimentos comerciais:

Pela manhã, após tomar minha refeição no hotel, vou à estação e compro os jornais de ontem do Rio de Janeiro e a Gazeta Leopoldinense. Este é um jornal bem impresso, com quatro páginas, e que se ufana de ser o único diário da região, além do de Juiz de Fora. Na primeira página há um extenso artigo lamentando a morte de Augusto. Vou à barbearia. Leio o necrológio enquanto espero o barbeiro me atender. Os dois homens que aguardam, sentados nos bancos, também leem os jornais, em silêncio (MIRANDA, 1995, p. 243).

A distribuição de periódicos produzidos na capital em cidades menores do interior, ao mesmo tempo em que nestas áreas periféricas se faz sentir a presença de folhas “próprias”, aponta para a extensividade da circulação dos impressos. A estação de trem como lugar de aquisição ainda reforça o vínculo entre as estradas de ferro e a imprensa, tanto no que diz respeito às formas de distribuição quanto à lógica da linearidade que atravessa o meio de transporte e a mídia. Na citação de Ana Miranda, ainda se verifica uma dupla temporariedade dos jornais. Enquanto um periódico da capital pode se estender na duração, ou seja, não importa se a edição é do dia anterior, a folha local precisa aproximar-se mais do imediato, do que ainda está vivo na memória comunal. Na barbearia, lugar de consumo das notícias impressas, as práticas de leitura se alternam, numa clara intenção de preencher o tempo da espera. Em meio ao trabalho e aos ruídos do ambiente, fregueses compenetrados se alienam no silêncio das letras. Não é difícil imaginar, entretanto, os intervalos de conversa e comentário das notícias, quando os acontecimentos locais, lidos no jornal de Leopoldina e

trazidos pela mídia oral, se juntam às narrativas que vêm de longe e ganham perspectivas tridimensionais.

“Tudo era por escrito”. A frase, que Esther dos Anjos utiliza para relatar ao narrador de A última quimera a maneira como administrava os últimos cuidados ao marido, antes de este falecer, exemplifica a estreita relação entre escrita e sociedade, na Primeira República (MIRANDA, 1995, p. 248). Anos antes, num enterro assistido por Quaresma, as inúmeras grinaldas acompanhadas de recados escritos em “fitas roxas e pretas, com letras douradas” encontram pedras tumulares onde “as inscrições exuberam”, num cemitério suburbano: “são longas, são breves; têm nomes, têm datas, sobrenomes, filiações, toda a certidão de idade do morto...” (BARRETO, 2008, p. 220-222). As noções de superabundância e excesso, presentes na descrição de Lima Barreto, dão conta do alto grau de porosidade que marca a relação entre as letras, os números e as práticas sociais. É um tipo de escrita que revela, ainda, uma situação de pertencimento, um lugar de reconhecimento, uma forma de “exibição da identidade”, nas palavras de Roger Chartier (apud FARGE, 2003, p. 18). Uma personagem que, na intriga do folhetim, esteve o tempo todo marcada por uma pobreza intelectual que a levou à loucura, à doença e a uma semivida, severamente criticada pelo autor, agora é sepultada sob o signo da escrita, que serve para “pôr em relevo as débeis intensidades de vidas banais e ordinárias”. A pedra que marca a última morada de Ismênia é um suporte pesado de memória e de comunicação. As lápides do cemitério periférico que a ela se juntam tornam-se “sinais que dão mostra da presença no mundo”, à semelhança dos documentos que atestam a legitimidade do ser na ordem social – as certidões de batismo, nascimento e casamento, os passaportes, os cartões de membros de irmandades e clubes. São “fragmentos de uma comunicação, de relações que passam com evidência pela leitura e pela escrita”, mesmo que essas práticas tenham, por sua vez, passado ao largo da existência da pobre Ismênia. Não há dúvida de que se depara, agora, com uma paisagem urbana bem diferente da que se observou no início do Oitocentos; uma “sociabilidade regida pela escrita”, perceptível nos espaços em branco do romance, é o “sinal de uma vida em que a letra e o número são companheiros de existência, [que] inscrevem o tempo e o espaço de cada um dos indivíduos, tempo complexo e estirado...”. O espaço reduzido das teias de parentesco e de comunhão, no tempo presente da interação cotidiana, ganha outra dimensão: a escrita torna possível sepultar o presente dos atos vividos no passado, que ganham uma expectativa de futuro quando a tecnologia permitir que se decifre a história de uma vida toda vez que as palavras impressas na lápide se abrirem não à ressurreição do corpo, mas à ressurreição do corpo (e da vida) como narrativa. “Traços do

que se foi... o corpo torna-se um pedaço do acontecimento”, desta vez memoriável e acessível na continuidade histórica. “Corpo apoderado pela lei [que se transforma em] uma palavra legível numa língua social..., o corpo escrito se faz então leitura e cada signo, cada palavra tem sua importância, uma vez que permite religar um defunto geralmente desconhecido à vida que levou ou que teria desejado levar” (FARGE, 2003, p. 17-18; 35-37; 41; 45; 48; 61-62; 77; 99).

Subjacente à terra e à pedra que celebra sua memória, a matéria humana inerte dá a ler todo um conjunto de práticas sociais em que pesa o simbolismo da tecnologia da palavra e da impressão na organização da nova sociedade. “O corpo é o lugar mais absoluto de sua inscrição no político... o mundo político se cruza sobre ele, nele”. Ele é revelador de uma alteridade que também é autoridade, ou seja, existe um Outro que determina, pela escrita que organiza a vida comunal, sua inscrição na realidade empírica, no mundo das relações de produção e das práticas culturais simbólicas. Por isso, ele é um corpo político, já que deixa transparecer “as marcas de sua obediência” ou da desobediência a um determinado sistema. A crítica de Lima Barreto à personagem que criou acaba por revelar o corpo de Ismênia tanto como lugar de recepção do político quanto de resistência e transgressão a ele. Esse “corpo político e afetivo”, agora “privado de voz, crivado de traços, enuncia sua fala e a do outro”: de um lado, a inércia e a indiferença da menina para com o mundo dos livros e, de outro, os valores da intelectualidade e da inteligência associadas a essa materialidade da comunicação, na reprovação da personagem por seu autor. “O corpo físico torna-se um livro de páginas às vezes submissas, outras vezes insubmissas, um livro onde o espaço e o tempo se reencontram para figurar uma vida que passou, recebendo a ordem e o caos do mundo”: a vida aristocrática de uma garota do subúrbio carioca, filha de um militar reformado de inteligência burocrática, cercada de arrivistas políticos que usam da escrita para galgar as escadas do poder. Mas não se pode desvendar tudo a respeito de Ismênia, essa jovem resistente à cultura das letras que permeia as sociabilidades em que se insere a personagem, na vida e nas práticas de morrer. “É preciso saber ainda que existe uma parte inefável do indizível e do não-sabido, mais frequentemente, além disso, do não-percebido” (FARGE, 2003, p. 80-81; 101-102; 104; 112). É o poder da palavra escrita e impressa de preservar alguns espaços em branco e abri-los à interpretação de um mundo, um tempo, uma sociedade, uma cidade, um país.

Na capital, uma pequena jornada de bonde até as bandas da estrada de ferro Leopoldina faz chegar o viandante até o casebre da preta velha alforriada, ex-lavadeira da família Albernaz, Tia Rita, ainda supostamente detentora das tradições dos “costumes e

usanças..., festanças, cantigas e hábitos genuinamente nacionais”. Policarpo Quaresma e o general, na esperança de ali poder resgatar as fontes autênticas do cancioneiro popular para animar uma festa na casa deste último, encontram não apenas uma negra esquecida da “coisa véia do tempo do cativeiro” como também uma mulher indignada com o anacronismo da pesquisa folclórica dos dois amigos: “pra que sô coroné qué sabe isso?” (BARRETO, 2008, p. 30). A reprodução da fala oralizada e coloquial da personagem por Lima Barreto, que denuncia diferenças de classe, de uso e de competência linguística no manejo da norma culta, já sinaliza que ali, no novo cativeiro da pobreza, o mundo oral continuou a fincar suas bases. Mas a descrição que o autor faz da sala da casa onde os convivas foram recebidos é bastante interessante e reveladora da presença da escrita e da impressão que correm no mesmo trilho do bonde que os levara até ali:

A sala era pequena e de telha-vã. Pelas paredes, velhos cromos de folhinhas, registros de santos, recortes de ilustrações de jornais baralhavam-se e subiam por elas acima até dois terços da altura. Ao lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vítor Emanuel com enormes bigodes em desordem; um cromo sentimental de folhinha – uma cabeça de mulher em posição de sonho – parecia olhar um São João Batista ao lado. No alto da porta que levava ao interior da casa, uma lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem a Conceição de louça (BARRETO, 2008, p. 29, grifos nossos). A superfície das paredes que envolvem o espaço, quase toda tomada por farrapos de letras e ilustrações de páginas impressas, desvenda um mundo do olhar composto de “fragmentos de uma comunicação, de relações que passam evidentemente pelos atos de ler e escrever” (FARGE, 2003, p. 35) e remete à forte relação entre escrita e imagem. Afinal, ler é decodificar um signo espacializado numa superfície e que demanda igualmente um aprendizado, uma “educação do olhar”, como na decifração de uma imagem, um desenho ou uma fotografia58. A sala de estar da preta velha é obra fechada e encerrada no suporte material das paredes, um livro ou um caderno de jornal composto de narrativas variadas de linguagem e conteúdo, que formam um quadro ao mesmo tempo completo e inacabado na superfície do cômodo, sujeito às modificações e substituições das peças do grande mosaico visual. Aberta à interpretação de quem a visita e ao leitor do futuro, revela um diálogo imagético entre as ilustrações, entre as letras e as ilustrações, e entre as letras, ilustrações e o sujeito que as

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Ana Maria Mauad nos lembra que é preciso não esquecer que as “regras de leitura” variam segundo as materialidades dos textos, as “representações culturais”, a “situação de recepção”, as condições de “circulação e consumo” e o “controle dos meios técnicos de produção cultural” (2008, p. 39). O que se quer enfatizar, neste capítulo, é o direcionamento do olhar e a informação que se prende ao sentido da visão como característica comum a esse universo imagético variado. Nesse sentido, as letras impressas também podem ser consideradas “imagens visuais”, embora exijam regras e “competências de leitura” distintas.

recompõe, com elas dialoga e que ao mesmo tempo é transformado por elas. São restolhos de uma culture savante que penetra espaços inusitados e se sujeita a apropriações talvez não pensadas. Testemunha da porosidade entre o oral e o escrito, a sala de Tia Rita pode revelar dois sentidos distintos de apropriação dos impressos. Primeiramente, o estado de lucidez e consciência de alguém que percebe a força política e o capital simbólico do letramento na organização da sociedade e, ainda, “o desejo de estar acompanhado de cultura e saber, na variedade de suas formas, mesmo as mais ordinárias (...); o desejo de aceder à liberdade e à mestria de si mesmo que se acredita ver no homem genuinamente culto” (FARGE, 2003, p. 54-55). Entretanto, se considerarmos essa hipótese, estaremos atestando a superioridade da cultura letrada sobre as formas criativas de apropriação, na maioria das vezes instrumentalizadas pela mentalidade oral. Num segundo momento, e talvez o mais inovador justamente por ser mais desconcertante aos olhos da chamada “alta cultura”, Tia Rita retransforma o produto da impressão num mundo visual que não do impresso, ou seja, num ambiente de oralidade. Este universo parece caótico ao intelectual letrado, por representar outra estética: a da cor, da profusão de formas e matizes e da aparente desordem visual, que não é a da ordem letrada, mas da imagem-imaginação. As “imagens visuais” em mosaico podem revelar isso, quando se transformam pela força da mão que as recorta em signos de um mundo que olha astutamente e precisa das imagens como força da imaginação. Essas “formas ordinárias”, remanescentes dos impressos de longa data, demonstram, já na última década do século XIX, um processo de popularização da cultura impressa no Brasil e uma tentativa de massificá-la, que os grandes jornais, principalmente os do Rio de Janeiro, levam a cabo para tentar conquistar e ampliar o público, num país de grande maioria analfabeta59. Exprimem também uma apropriação por parte dos produtores de informação, de estratégias oralizadas constituintes da cultura popular, retrabalhadas pela cultura de massa, na luta por hegemonia. Se, por um lado, a oralidade, agora só pode ser compreendida na relação com o escrito e o impresso, a cultura impressa, ainda que até a contemporaneidade brasileira não se torne cultura de massa, não vai poder se desgarrar das marcas da oralidade.

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Marialva Barbosa, no primeiro capítulo de História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000, expõe as estratégias de popularização adotadas pelos jornais “para atingir um público mais vasto e parcamente alfabetizado”, nos anos iniciais do século XX. Destacam-se a importância dada à literatura (folhetins), o uso de ilustrações, inclusive a cores (caricaturas, desenhos a bico-de-pena e fotografias), a presença de determinados conteúdos ao gosto popular (“os palpites do jogo do bicho, as marchas dos cordões e blocos carnavalescos e os crimes”, passatempos, queixas do povo, crônicas do cotidiano) e “o estilo entrecortado do texto”. A autora ainda referencia dados acerca do analfabetismo no Rio de Janeiro: de um contingente de mais de 600 mil habitantes, “pelo menos 80% da população é constituída de analfabetos” (2007, p. 21-48).

No contexto de uma nação em que o domínio das letras sempre esteve historicamente atado à casta burocrático-sacerdotal, cuja pedra de fundação fora a Bahia sectária e mestiça de Gregório e Vieira, a preta velha alforriada de fins do século XIX vem dizer algo sobre “o mundo do dominado [que] sempre se arranja com o que as elites lhe recusam ou lhe propõem ao recusar-lhe alguma coisa”. Entretanto, a personagem de Lima Barreto, muito provavelmente uma fagulha do espírito do próprio escritor, surge no romance para deixar transparecer algo que, entretanto, “se organiza através dessa dependência, que é a história de uma construção da significação de si entre constrangimentos e esperanças” (FARGE, 2003, p. 56). A preta velha é um dos sinalizadores da tensão entre tradição e modernidade na Primeira República, entre a lembrança da memória colonial e o seu esquecimento, proposto pela classe dominante e os intelectuais, como Olavo Bilac, com ela afinados – o que, para Lima Barreto sempre foi objeto de apreensão. A escravidão que, para nós, mais do que um elemento constituinte da empresa colonizadora foi mesmo sua própria metonímia, é o passado que a lavadeira quer deixar para trás junto com a tradição das histórias orais do tempo do cativeiro, como membro que é de uma nova ordem: a da cidade culturalizante da técnica, que