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Os repórteres da experiência: quando informar é sinônimo de narrar

Na esquina da Rua do Ouvidor com a Rua da Quitanda, os merinhos em cujos “semblantes transluzia um certo ar de majestade forense” continuam o trabalho de fazer circular a palavra. Mas, ao invés de movimentarem-se pela “formidável cadeia judiciária que

envolvia todo o Rio de Janeiro”, quando desdobram as folhas de papel, leem o conteúdo de um processo “em tom confidencial” para depois ouvir o Dou-me por citado!, agora eles estão sossegados no seu Canto, e o que se movimenta é a língua de cada um, “conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias do Vidigal” (ALMEIDA, 2005, p. 13-14). Enquanto isso, Carlota Joaquina, enclausurada no palácio de Botafogo, reúne as últimas intrigas sobre o marido antes de transcrevê-las e enviá-las ao Velho Continente; e Dona Maria, em mais uma “conferência” com as comadres, tira a limpo os fuxicos que rondam o pretendente da sobrinha, o eloqüente José Manuel. El rei, no Paço, recebe o “severo intendente Paulo Fernandes Viana” que, “em seu relatório matinal diário para D. João”, coloca-o a par das aleivosias destiladas “em público pelo pirata inglês Jeremy Blood sobre sua Corte e seus vassalos” (CASTRO, 2007, p. 26).

As informações que pululam em cada um dos centros nervos de produção, armazenamento e difusão, conservam seu caráter de novidade atual e atualizada, do “estar em dia” com os acontecimentos, com o que é inusitado e excepcional. O que circula na cidade, em forma de uma rede de comunicação, é o trabalho de agentes, que apuram a informação através de fontes mais ou menos credíveis, em tipologias da fala e da escrita e em materialidades que requerem mecanismos próprios de memória e códigos estruturados de configuração e decifração de múltiplas textualidades do discurso. As notícias ainda podem estar relacionadas à lógica de determinadas instituições da época, que funcionam como meios organizados, ao mexer na dinâmica dos sentidos e das narrativas cotidianas que dão sentido à existência.

Mas o sistema não se alimenta apenas dos eventos e das situações do dia-a-dia que dão à notícia o contorno daquilo que é novo, atual e curioso. A produção de histórias que remontam a um passado longínquo ou próximo antecipa expectativas de futuro e marca o presente fugidio com representações individuais e coletivas, construídas na ação das personagens, e torna-se o diferencial de um mundo da comunicação marcado não apenas pela vivência afetiva e momentânea dos acontecimentos, como também pela experiência construída na duração. Daí, o desejo e a propensão a narrar. Leonardo, o gaiato-herói, entre uma aventura e outra, sentia necessidade de reconstruir as ações empreendidas junto com o colega de travessuras, ao configurá-las em forma de história. Assim fazia tanto com o sacristão da igreja, quando “reuniam-se os dous, começavam a contar suas diabruras mais

recentes, travando o plano de mil outras novas” (ALMEIDA, 2005, p. 71), quanto com Dom Pedro, de quem se tornou amigo:

Leonardo disse-lhe quem era e, ao sentir o vivo interesse de Pedro, contou- lhe sua história – mentindo só um pouco e exagerando outro tanto, mas enfatizando as passagens que, sabia agora, impressionariam um menino como o príncipe. E que biografia construiu para si mesmo. (CASTRO, 2007, p. 97).

Contar uma história, no Rio de Dom João, é narrar as peripécias de alguém, o agir e o padecer do indivíduo no mundo, quase sempre sob a perspectiva da reconstrução biográfica do sujeito na tessitura da intriga. À pergunta do príncipe, depois da primeira aventura – “E tu, quem és, além de demonstrar ser um vassalo amigo?” (CASTRO, 2007, p. 97), o moleque, que até então desconhecia a verdadeira identidade de Pedro de Alcântara, resolve logo dizer quem era, porém na forma de uma história contada. A estratégia discursiva foi a mesma que o padrinho empregara para apresentar o afilhado à Dona Maria, interessadíssima no que dizia respeito ao gaiato, já famoso pelas travessuras:

Começou ele pela origem do pequeno; remontou à pisadela e ao beliscão com que a Maria e o Leonardo [os pais] tinham começado o seu namoro na viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro, o que fez dar a Dona Maria boas risadas. Passou em seguida à festa do batizado, que descreveu detalhadamente. Até aqui era o drama risonho e feliz; veio depois a tragédia; contou todas aquelas histórias da perfídia de Maria, dos ciúmes do Leonardo e da briga final, cujo resultado trouxera o pequeno às suas mãos (ALMEIDA, 2005, p. 93).

A maneira como o menino e o barbeiro engatilham uma situação de comunicação, pela arte de narrar, através da contextualização da vida da personagem – no primeiro caso, o narrador se confunde com o protagonista - mostra como a matéria-prima da construção narrativa que se transmite de boca em boca se prende à figura do narrador (BENJAMIN, 1992b, p. 37). Leonardo não é estranho às aventuras que transforma em histórias; ele é tanto o autor das façanhas como também o da tessitura da intriga. O padrinho, por outro lado, vivenciou boa parte das peripécias que antecederam a adoção do moleque, ao ouvi-las contar e, depois de certo ponto na biografia do afilhado, passa a presenciar muito do que lhe sucede. As aventuras narradas não se desenrolam, assim, por conta própria, nos lembra Benjamin. Elas precisam de um sujeito histórico, um indivíduo de um tempo e lugar e de um contexto social que o envolve de alguma maneira e perpassa o ser no mundo, uma realidade de que

pode concordar ou discordar, mas que funciona em estatuto de presença. Por isso a importância de se saber a origem das coisas e dos seres:

É tendência dos narradores começar as suas histórias com a descrição das condições em que tomaram conhecimento do que se segue, quando não as fazem passar, pura e simplesmente, por histórias vividas por eles próprios (BENJAMIN, 1989, p. 37).

Os dados do passado, atualizados no presente da performance narrativa, são o fio mnemônico e também o pano de fundo para se entender a ação do homem no mundo, como se a apresentação de alguém no círculo de convívio social tivesse que ser acompanhada do contexto de vida e obra do indivíduo. Leonardo é herdeiro não apenas do nome ou do azar do pai em meter-se o tempo todo em encrencas, como também sua vida é construída pelas histórias que conta e que dele são contadas, na cidade. Os episódios narrados pelo menino ao príncipe, para atraí-lo às travessuras, assim como aqueles escolhidos pelo padrinho para ganhar a simpatia de Dona Maria para com o afilhado são produto de escolhas narrativas, que visam causar algum tipo de efeito na audiência. A mentira, o exagero e a ênfase com que Leonardo conta as histórias apontam mais uma vez para o entendimento da narrativa como obra de síntese (RICOEUR, 1983), além de enfatizar a dinâmica atualizadora do ato de narrar. A audiência, no caso, é determinante para a configuração da intriga que, numa situação de oralidade, vai se transformando a partir das reações dos ouvintes. Leonardo queria conquistar a amizade do príncipe, depois de ter percebido nele o espírito aventureiro e, por isso, “carregou” nas passagens que mais destacavam sua audácia e coragem. O barbeiro, para sensibilizar os interlocutores e assegurar a aceitação do afilhado na casa, cuja má fama já correra a vizinhança e o compadrio todo, resolve unir o cômico e o dramático numa retomada biográfica que conseguiu até entreter a audiência.

Outro traço que se percebe nas histórias contadas nos romances é o seu caráter épico. Logo que se conheceram, os jovenzinhos pareciam ter entrado numa espécie de disputa para ver quem impressionava mais o outro com suas narrações. Pedro se embevecia com o que o novo amigo tinha para lhe oferecer. “As aventuras de Leonardo, aos seus ouvidos, eram dignas das gestas de cavalaria que, no passado, Genoveva lhe contava para dormir” (CASTRO, 2007, p. 97). E daquilo que o príncipe tinha para contar, o que mais impressionou o pivete das ruas foi a narração da viagem da família real para o Brasil:

Leonardo bebia as palavras de Pedro quase sem respirar. Essa, sim, era uma história de mar alto, para fazer calar as gabolices que ouvia dos marujos nas

tavernas da Gamboa, quando eles se reuniam para beber e arrotar mentiras sobre suas viagens... Pedro gostou de perceber que Leonardo o respeitava também por isso, e não apenas por ser o príncipe (CASTRO, 2007, p. 99- 100).

O respeito acaba sendo conquistado quando se revela a habilidade de contar histórias. “Os dois sentiram, ali, que talvez fossem os irmãos que a natureza lhes negara”, observa o autor. O novo laço de parentesco, uma espécie de compadrio dos mais jovens e, mesmo assim esdrúxulo, considerada a origem de cada um dos garotos, é o espelho e a encarnação da vida como narrativa. O sentido da existência, tanto individual como coletiva, está no agir e no padecer no mundo, como já enfatizamos, configurados também em histórias, num tempo em que principalmente pelo falar e pelo ouvir mudavam-se as circunstâncias da vida, definiam-se caminhos, garantia-se a sobrevivência, proporcionava-se entretenimento e marcava-se a posição dos sujeitos históricos na sociedade. A história de Pedro termina com a chegada ao Rio, um espetáculo singular que ele pôde assistir de um lugar privilegiado, “de seu posto no convés” do navio, e que Leonardo muito provavelmente havia acompanhado de outro ângulo, em terra. E o que fica da epopéia de Dom João é menos sua fidedignidade histórica do que sua condição de acontecimento memorável.

A qualidade épica da narrativa de viagem é um elemento forte a compor o imaginário lusitano, da realeza ao povo comum, como se a vida fosse feita de Bojadores a cruzar, de filhos por quem rezar e de noivas que ficam por casar. Mas o que faz a alma não se tornar “pequena” talvez seja a vontade ou a necessidade de narrar o grande “mar salgado” e as peripécias dos que nele se atrevem a “passar além da dor” (PESSOA, 1994, p. 82). Numa espécie de sarau, promovido por Dona Maria, José Manuel, de perambular por lugares diferentes e, portanto, dono de um repertório de causar inveja a qualquer cronista da época, tira uma história após a outra do baú de memórias e, assim, vai distraindo os convivas da portuguesa. Uma delas, que “lhe acontecera na sua última viagem à Bahia”, intitulada O

naufrágio dos potes, que Almeida reproduz entre aspas, no romance, é bem ilustrativa dessa

característica das narrações orais:

“Estávamos quase a chegar ao ancoradouro; viajava ao lado do meu navio um enorme peru carregado unicamente de potes. De repente arma-se um temporal, que parecia vir o mundo abaixo; o vento era tão forte, que do mar, apesar da escuridão, viam-se contradançar no espaço as telhas arrancadas da Cidade Alta. Afinal quando já parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo, veio uma onda tão forte e em tal direção, que as duas embarcações esbarraram com toda a força uma contra a outra. Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar, não puderam mais resistir, e abriram-se

ambas de meio a meio: o navio vasou toda a sua carga e passageiros, e o peru toda a sua carregação de potes; ficou o mar coalhado deles, em tão grande quantidade os havia! Os marinheiros e outros passageiros tratavam de agarrar-se a tábuas, caixões e outros objetos para se salvarem; porém o único que se escapou fui eu, e isso devo à feliz lembrança que tive: do pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que boiava mais perto. Com o meu peso o pote mergulhou, e enchendo-se d‟água desapareceu debaixo de meus pés; porém isto não teve lugar antes que eu, percebendo o que ia acontecer, não saltasse imediatamente desse pote para outro. A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma cousa, porém servi-me do mesmo meio, e assim, como a força das ondas os impelia para a praia, vim de pote em pote até a terra sem o menor acidente!” (ALMEIDA, 2005, p. 114-115, respeitada a ortografia da edição).

“A história é a filha favorita da oralidade”, diz Werner Kelber (1997, p. 106). E a narrativa oral é uma sequencia de ações encadeadas para prender a atenção do ouvinte, em que até os objetos inanimados ganham o status de personagens que agem no tempo e no espaço. Na intriga tecida por José Manuel, o temporal “se arma”, as telhas “se contradançam no espaço”, as embarcações “se esbarram e se abrem de meio a meio”, o navio “vaza” a carga, e o pote “mergulha e desaparece” no mar. O impacto na audiência e a compreensão da trama no momento da performance são facilitados por uma série de recursos, como o uso de verbos de ação; a desobrigação do narrador de inserir uma análise psicológica das personagens e suas atitudes, sem deixar tempo para a reflexão; o emprego de objetos e elementos do mundo concreto, que dispensa abstrações e figuras estilísticas complicadas; o apelo ao imaginário dos mares como construção recorrente; e, ainda, o uso da ordem direta em que se dão as ações, o qual é subvertido pelo narrador apenas uma vez, quando primeiro conta que o pote desaparece debaixo de seus pés, para depois dizer que antes disso tivera a ideia de saltar de um pote a outro. Entretanto, esse “deslize”, além de indicativo da interferência da escrita pelo eu lírico do autor do romance, pode ser considerado também uma digressão, um tipo de observação parentética no ato oral de narrar, um nó na textualidade, quando se percebe que é preciso fazer uma ressalva para, em seguida, dar prosseguimento à tessitura da intriga.

Depois de inserir a história do “maldizente” no romance - repleta de mentiras e exageros que, se enganaram a Dona Maria, não conseguiram o mesmo efeito com a comadre, madrinha de Leonardo – Almeida lembra que, “como esta, contava José Manuel milhares de histórias”. A expressão como esta, utilizada pelo autor, sugere uma propriedade da narrativa oral que é a presença de uma estrutura comum submetida a variações, um padrão ligado a convenções que, na ocorrência de desvios, “tende a fazer com que a narrativa retorne em direção à estabilidade formal”. Entretanto, explica Kelber, “as restrições na composição não

se manifestam como amarras sobre o material. Há um amplo espaço de manobra narrativa e nenhuma história é exatamente como a outra” (1997, p. 49).

As histórias oralizadas que se prendem à estrutura arquetípica do mar como metáfora da aventura, na verdade transcendem o imaginário lusitano, passam pelos tempos bíblicos e viajam ainda mais longe, de volta aos mitos gregos. Então, podemos dizer que nosso José Manuel, o indivíduo falante do Rio de Dom João, é o retorno ao mesmo tempo de Ulisses e do apóstolo Pedro. O grego precisa enfrentar a fúria de Posêidon e a tentação das sereias, entre tantos outros percalços, para conseguir chegar em casa; o hebreu teve que vencer o medo e quase afundou completamente quando começou a duvidar que podia caminhar sobre as águas; e aquele que é o estereótipo do povo fluminense da época safa-se por um lampejo de esperteza e logra dar na praia. As narrativas têm um propósito didático comum, que se conjuga a outras funções sobrepujantes de entretenimento e edificação espiritual, por exemplo. Mostram que não há obstáculo que os senhores dos mares não possam ultrapassar. Por isso, é preciso lembrar as civilizações que vivem da imensidão das águas do poder do homem de superar as vicissitudes da natureza, e isso permanece como lição na experiência que se constrói através das histórias contadas. Homero, os evangelistas cristãos, Fernando Pessoa e Manuel Antonio de Almeida sabem que a narrativa, como explica Ricoeur, é o “arranjo sistemático dos incidentes da vida”, para responder à “necessidade de se imprimir o selo da ordem sobre o caos, o sentido sobre o não-sentido, a concordância sobre a discordância” (1984, p. 45; 54).

2.7. Um autor afinado com seu tempo: O Rio que conta e canta dá o tom a Manuel