• Nenhum resultado encontrado

O sorridente début de uma quimera: o Rio de Janeiro e a Belle Époque tropical

“O melhor e o pior dos tempos, a era da sabedoria e da insensatez, da crença e da incredulidade; a estação das luzes e das trevas, a primavera da esperança e o inverno do desespero, em que se tinha tudo e ao mesmo tempo nada; um tempo que dava a impressão de que todos iriam direto ou para o céu ou para o lado oposto – em resumo, esse tempo parecia tanto quanto o tempo presente”55

. Assim Charles Dickens inicia seu romance histórico de cunho memorialístico A tale of two cities, publicado em 1859, cujo enredo se passava nos anos que antecederam e que também viram explodir a Revolução Francesa. A sensação do escritor inglês com o tempo é no mínimo interessante, numa época de mudanças correntes na

55

Tradução livre feita pelo autor das linhas iniciais do romance. In: DICKENS, Charles. A tale of two cities. United States of America: The World Publishing Co., 1955, p. 11.

Paris e na Londres de uma Europa tumultuada por conflitos. Quase um século de revoluções de toda sorte – sociais, políticas, econômicas e tecnológicas – acabou paradoxalmente por dar a impressão ao artista de um tempo lento e contínuo. As novidades que surgiam a cada instante não eram suficientes para destacar as rupturas do progresso e fazer valer para o escritor as marcas da modernidade que se anunciava no Velho Continente.

No Brasil, um sentimento contraditório de deslumbramento e insegurança também pôde ser experimentado dos últimos anos do século XIX às duas primeiras décadas da “era dos extremos”. O país entrava na modernidade, ou, pelo menos, uma parte dele se acreditava inserida no novo rumo que a ordem e o progresso dariam conta de ensejar. O imperativo do momento na capital da República, no sentido inverso ao da percepção de Dickens sobre o fim dos Setecentos e a primeira metade dos Oitocentos, era dilatar o intervalo de tempo e espaço entre a nova metrópole-modelo que a técnica ajudava a construir e a antiga sociedade da colônia e do império, mesmo que, para isso, se confundisse o tradicional com o arcaico e o atrasado. Alguns intelectuais que ali viveram e produziram narrativas, entretanto, munidos da palavra impressa como ferramenta de observação e análise do mundo em volta, conseguiram enxergar na passagem para a modernidade gestada no Rio de Janeiro um misto de rupturas - localizando na chamada Belle Époque tropical os sinais de que os tempos eram realmente outros - e tantas continuidades que insistiam em permanecer como formações herdadas do passado colonial.

O marechal Floriano e o major Quaresma foram homens que viram o Império cair e agora se tornam personagens de um país na “marcha da civilização”. Um mundo de possibilidades e expectativas se abre à “Pátria criança ainda, ainda na sua formação...”. O clima inigualável e a terra fértil são capazes de, juntos, produzir tudo. A indústria manufatureira já cobre de botas os pés dos ufanistas mais exaltados, como o major, e os veste de panos nacionais. Uma “ciência toda nova” trabalhava para a racionalização da vida. A expressão, utilizada por uma das personagens de Lima Barreto, traz subjacente a concepção do conhecimento científico como aquilo que se renova constantemente e é capaz de sobrepor- se aos saberes tradicionais empedrados do passado. Na capital da nascente República, as novas descobertas da razão humana se faziam presentes e necessárias, como a efervescência de ideias e a promessa de felicidade. Instrumentos de medição e controle dos fenômenos naturais podiam ser adquiridos no comércio da capital. A medicina exercida pelos bacharéis vinha em substituição às práticas dos curandeiros; era preciso higienizar, imunizar e regenerar a metrópole. Mas, antes disso, uma terapêutica psiquiátrica já se efetivara, com a instituição

do manicômio a exercer o controle dos corpos e das mentes em desalinho, de que tanto o major Quaresma quanto seu criador se tornariam clientes (BARRETO, 2008, p. 19-20; 25; 90; 94-95; 106; 176; 217).

Na Belle Époque, a vida da cidade cosmopolita era um teatro a céu aberto e os eventos que marcavam as cenas cotidianas eram acompanhados por multidões. A população, ávida por novidades, que assistiu à chegada do rei no começo do Oitocentos, desta vez se vê representada por uma burguesia ascendente e ilustrada que se equipa de binóculos próprios e alugados, estende e amplia o olho para observar as regatas, as corridas do turfe, os cortejos cívicos, os desfiles militares, os funerais das personalidades, as inaugurações dos monumentos, os bombardeios da Revolta da Armada e os carnavais. A mesma incapacidade dos olhos nus de vencerem a distância era experimentada pelos pés dos homens e as patas dos animais. A técnica e os meios que os estendem, além de alterarem os padrões e a proporção das relações sensoriais (MCLUHAN, 1964, p.18-19), ainda tornam os seres dependentes desses apêndices tecnológicos, na tarefa de perceber outra arquitetura espacial e temporal. Para que o tempo, o espaço e a própria noção de informação a eles vinculada assumissem uma nova configuração, na modernidade que se pretendia, a tecnologia tinha que intervir a favor da velocidade exigida na nova era.

O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que nos põem em comunicação com o resto do mundo... O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do mistério, e traz, além de notícias gerais, boas ou más, também o gesto, um sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe... (BARRETO, 2008, p. 102, grifos nossos).

A metrópole explodia e, com ela, os meios de interligação e comunicação da era moderna. Na cidade estendida até a sub-urbe, nas regiões periféricas dependentes do centro de poder político, econômico e cultural que ela representava, bondes, trens e mais tarde os automóveis cumpriam esse destino místico-midiático da técnica: o de religar os espaços fragmentados, acelerar a informação que chega até eles e permitir a circulação de indivíduos e suas narrativas de um ponto a outro. A ansiedade de Policarpo Quaresma à espera do amigo violeiro na estação de Curuzu, onde se localizava o sítio do Sossego, já revela uma expectativa de velocidade na comunicação, que os veículos de transporte deveriam suprir na estrutura centro-margem da capital federal. O trem que chega “arfando e estirando como um réptil pela estação afora” (BARRETO, 2008, p. 102), ao se incluir no inventário dos media encarregados de acelerar a informação, ainda faz esticar o centro nervoso da metrópole em

desenvolvimento, de onde vêm as notícias, as leis, as ordenanças, a moda, os sons e as letras. Uma prova de que, na era da eletricidade, a “comunicação” já se tornava sinônimo de “movimento da informação”, ao estender os espaços e ao mesmo tempo reduzir e controlar as distâncias (McLUHAN, 1964, p. 89). A noção de rede, já presente no circuito oralizado do tempo do rei, agora se vê materializada e ilustrada no trem, como uma das tecnologias que aproximam e tornam as coisas comunicáveis. O desenvolvimento da cidade, segundo McLuhan, coincide com outro desenvolvimento, o da escrita fonética (1964, p. 99), potencializada pela tecnologia da impressão, tão em voga na nossa Belle Époque. A ideia de extensão que o trem carrega, tão bem expressa na comparação feita por Lima Barreto, faz pensar em quanto nossa incursão pela modernidade, mesmo que aos trancos e barrancos e ainda tendo que lidar com um passado insistentemente oral, está associada à tecnologia de Gutenberg. À explosão dos espaços da metrópole corresponde outra explosão, a das letras impressas. Um dos jornais de maior circulação, a Gazeta de Notícias, é vendido “por toda a cidade, nos quiosques, nas pontes das barcas, nas estações de bondes e em todas as estações da Estrada de Ferro D. Pedro II” (BARBOSA, 2007a, p. 28)56

.

O ponto de vista fixo de Quaresma no trem que está para chegar, juntamente com a noção intensificada de perspectiva, é o resultado da extensão da faculdade visual, num tempo em que a tecnologia da impressão permeava o cotidiano das gentes no Rio de Janeiro e passava a integrar um circuito de comunicação já existente, antes oralizado por excelência e que agora conta, além do livro, com os jornais e revistas que apelam para o olhar decifrador de letras e imagens. A linha férrea, em que o trem e o bonde se estiram e fazem estender a cidade, obedece à mesma lógica de linearidade da palavra impressa no papel, disposta num suporte de memória portátil capaz de dispor as letras da escrita fonética em sequências que originam frases e períodos a serem acompanhados pelos olhos. A estrada por onde circula o automóvel, incorporado mais tarde à paisagem urbana da cidade e do país, também não se furta à mesma “ilusão de que o espaço é visual, uniforme e contínuo” (McLUHAN, 1964, p. 172). Quaresma espera o trem que chega e passa: “Não se demorou muito. Apitou de novo e saiu a levar notícias, amigos, riquezas, tristezas por outras estações além” (BARRETO, 2008, p. 102). Dividido entre as paradas do réptil mecânico, a personagem-título inventada por Lima Barreto é um ponto fincado num traço sequencial, geometricamente disposto no espaço, assim

56

Marialva Barbosa mostra a dimensão alcançada pela imprensa no contexto sociocultural da Belle Époque, ao fornecer uma estatística impressionante: “Segundo informação do escritor Olavo Bilac, as cinco mais importantes folhas da cidade – o Jornal do Brasil, o Jornal do Commercio, Gazeta de Notícias, Correio da Manhã e O Paiz – tiram juntas 150 mil exemplares. Numa cidade de pouco mais de 600 mil habitantes, observa- se o extraordinário poder de difusão desses impressos” (2007, p. 41).

como as linhas do texto nas páginas dos impressos. Muito mais do que mera coincidência, a confluência de tecnologias extensivas na remodelação da cidade e do país é o grande marco de nossa Belle Époque tropical, um tempo em que a palavra impressa, “extensão tipográfica do homem”, alcançou seu maior florescimento, habitou uma cidade em expansão, abriu caminho para a mídia de massa e fez nascer o público57.

A constituição do Rio de Janeiro como “cidade panbrasileira” e “metrópole-modelo” da experiência com a técnica (SEVCENKO, 1998, p. 522), à frente de um projeto de nação que se pretende moderna, é o reflexo de características comumente associadas à cultura do impresso. A cidade que antes era toda ouvidos, no tempo do rei, até pela dimensão um pouco maior do que a de uma aldeia onde cada voz e cada ruído ganham ressonância, como nas sociedades tradicionais que antecedem a civilização letrada, agora se encontra fragmentada entre o centro e o subúrbio e distingue-se pela apresentação visual de sua paisagem e sua gente, na modernidade das aparências e na aparência de modernidade. Lima Barreto, dotado de uma lucidez impressionante e que ultrapassa os modelos literários excessivamente formais e estéticos da época para penetrar no tecido social e desvendar mundos e mentalidades não retratados ordinariamente, nos fornece uma descrição irônica e bem humorada dessa fissura na geografia humana da capital, ao comparar a “alta sociedade suburbana” e sua pretensão de “se mostrar” com a ambientação da região central da cidade:

É um alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo... Porque o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne-seca, muito ensopado – aí, julga ela, é que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distinção. Fora dos subúrbios, na Rua do Ouvidor, nos teatros, nas grandes festas centrais, essa gente míngua, apaga-se, desaparece, chegando até as suas mulheres e filhas a perder a beleza com que deslumbram, quase diariamente, os lindos cavalheiros dos intermináveis bailes diários daquelas redondezas (2008, p. 18).

A mentalidade letrada da classe dominante que, desde os tempos de Vieira e Mattos se mostrou afinada com a ideia de separação e ordenamento da diversidade natural, humana e econômica da nação a que dava forma e conteúdo, agora também acompanha o tempo de massificação pelas letras impressas nos trópicos e transfere a mesma lógica dessa cultura da escrita potencializada à paisagem da cidade. Nas cissuras da metrópole na virada do século

57

XX, produto dos dirigentes republicanos ali assentados, as novas técnicas, ao trabalharem com a intenção de dividir e homogeneizar o espaço urbano, deixam transparecer mundos que, apesar disso, se interpenetram na composição de um todo carregado de contradições. A própria função do centro da cidade como irradiador do poder político, econômico e cultural para todo o país, ditando moda e padrões de comportamento, já é capaz de corroborar com mais um dos aforismos macluhanianos, aquele que diz ser a palavra impressa o “arquiteto do nacionalismo” (1964, p. 170). O novo sentido de nação que a República queria dar ao país recém saído da ordem imperial e “atrasada” se fazia agora e mais do que nunca sob o signo da escrita. Os anos que antecederam ao Encilhamento trazido por Pereira Passos – o dirigente que mais se destacou na incorporação do poder explosivo da escrita e da impressão para a transfiguração dessas múltiplas paisagens - já dão mostras de que o Rio de Janeiro caminhava no rumo de uma cidade partida que trazia as rédeas da nação. O mulato escritor, homem da imprensa e da literatura, ao criar o folhetim nos anos seguintes ao bota-abaixo, volta ao início da Belle Époque no Triste Fim para mapear o que se pode chamar de gênese da partição, presente nas várias tensões desdobradas da dicotomia centro-margem, do império à república das letras.

É a partir da descrição do subúrbio que se torna possível discernir os contrastes entre a periferia e o centro cosmopolita. Nas áreas mais longínquas do Rio, a irregularidade e a falta de planejamento são as marcas de distinção. Ruas e casas “parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado..., numa “angústia de espaço desoladora”, onde “marcham ao acaso as edificações..., de todos os gostos e construídas de todas as formas [e de] estilo pouco classificável”. Chalets e casas burguesas se misturam a choupanas de pau-a-pique e às típicas casas de cômodos. Numa delas, “trepada sobre uma colina”, habita o músico Ricardo Coração dos Outros, amigo do major Quaresma, de onde ele avista a “bela, grande e original cidade”. Apesar de reconhecer que “os subúrbios têm a sua graça”, Lima Barreto observa e analisa a paisagem periférica do ponto de vista do letrado: ao procurar ali uma simetria só existente na s áreas planejadas, depara-se com “vias de comunicação” tortuosas e “em estado de natureza” (2008, p. 103-106). Esta última expressão é emblemática na caracterização do subúrbio.

Natureza, aqui, tem dois sentidos: num primeiro momento, é o que está próximo das forças

ativas mantenedoras do meio ambiente, o que inclusive confere à escrita do folhetim alguns momentos de estética naturalista, quando o autor, por exemplo, diz que nos casebres “formiga uma população” e nos “caixotins humanos é que se encontra a fauna menos observada de nossa vida”; num segundo instante, é sinônimo de desordem, algo que não passou por um

processo de idealização, que não foi programado, que não é produto do traço esquemático e não obedece a nenhuma linearidade ou “rigor londrino”. É a geografia do disparate, palavra que o escritor utiliza para adjetivar os edifícios novos, construídos a esmo, sem preocupação estética alguma, principalmente se comparados às habitações do hemisfério norte, em mais uma das várias tensões que marcaram a Belle Époque – a perene comparação dos trópicos com as áreas mais avançadas do planeta, os centros irradiadores de modismos:

Não há nos nossos subúrbios coisa alguma que nos lembre os famosos das grandes cidades européias, com as suas vilas de ar repousado e satisfeito, as suas estradas e ruas macadamizadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e desleixados (BARRETO, 2008, p. 104).

A natureza imprevisível do subúrbio só poderia ter sido percebida desta maneira por alguém habituado a se “dissociar com o olhar frio” dos objetos de preocupação (McLUHAN, 1962, p. 28) e que enxerga o mundo como um panorama: “Logo adiante um vasto campo abre ao nosso olhar uma ampla perspectiva” (BARRETO, 2008, p. 103). A palavra impressa já havia fornecido ao escritor-tipógrafo um treinamento do olhar capaz de reconhecer as inconstâncias da paisagem que se furta à uniformidade, à sequencia e à linearidade como valores do mundo do letramento. Apesar de atravessado pela linha do trem – a técnica reta, precisa e direcionada que vem do centro para a periferia – o subúrbio desobedece a outros traçados e sai dos trilhos, causando certo desconforto no autor, uma vez que “para as sociedades letradas não é fácil compreender por que os não-letrados não podem ver em três dimensões ou em perspectiva” (McLUHAN, 1962, p. 36).

O subúrbio é a metáfora da oralidade. A ligação com o centro da nova metrópole, através dos meios de transporte da era moderna e dos impressos, não consegue esconder outra lógica de vida que ainda se anima e se mantém nos moldes da sociedade tradicional. As relações de compadrio e de reciprocidade que, no tempo do rei, habitavam as áreas centrais, agora se deslocam para o caos suburbano e encontram ali as condições de subsistência, como um lençol freático no subsolo da modernidade.

As casas pequeninas (...) fazem a vista boa e a falta de percepção do desenho das ruas põe no panorama um sabor de confusão democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as habitam; e o trem minúsculo, rápido, atravessa tudo aquilo, dobrando à esquerda, inclinando-se para a direita, muito flexível nas suas grandes vértebras de carros, como uma cobra entre pedrouços (BARRETO, 2008, p. 105).

Quem será que não consegue perceber o desenho das ruas desse panorama: o observador letrado ou o habitante oralizado do lugar? As tecnologias da escrita e da impressão, presentes no subúrbio com a conquista do espaço pela circulação da informação em suportes leves, não teriam ainda conseguido estabelecer “novas relações e proporções” no sensório humano, a ponto de interferir na “ecologia cultural” das áreas periféricas (McLUHAN, 1962, p. 35)? É possível, entretanto, inferir que, à dessemelhança no espaço habitável soma-se uma geografia humana também diferenciada, porém com um traço peculiar, que vem em oposição ao princípio dissociador do letramento: a mistura, o ajuntamento, a aliança e o contato advindos da aproximação e da presença física dos membros da comunidade, na maioria pertencentes ao povo comum, às gentes de ofício e também à marginália expulsa do centro agora higienizado e higienizador do restante da cidade e do país. Para além da pequena burguesia letrada que salpica as áreas periféricas da metrópole e considerada insignificante pelo autor quando comparada à aristocracia central, o subúrbio é o ninho de “operários de tamancos”, “peralvilhos à última moda” e “mulheres de chita”. Na descrição antropológica de Lima Barreto, é possível visualizar uma espécie de retorno à época das esteiras nas portas das casas, ainda que a industrialização incipiente desta vez tenha reduzido o tempo do ócio propício a conversas do operariado em trânsito permanente entre a cidade e o subúrbio: “E assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quase sempre o mais bem-posto não é que entra na melhor casa” (BARRETO, 2008, p. 104).

Precisamente no tempo em que Lima Barreto escreve seu folhetim e Esther dos Anjos supostamente o lê é que mais se compreendem os signos do letramento num outro panorama da Belle Époque: o centro do Rio. Nos vinte anos que se seguiram desde Policarpo Quaresma até Augusto dos Anjos, atravessados ao meio pela régua de Pereira Passos, a região se tornou o umbigo das transformações geográficas, econômicas, sociais e culturais que levariam o selo da modernidade e colocariam o Rio de Janeiro na vanguarda do país. Lima Barreto, ao descrever o centro no domingo, permite uma leitura às avessas dessa área em dias de semana, quando “a agitação, o movimento de carros, de carroça e gente” tomam conta da paisagem da urbe. Os bondes, apinhados de passageiros, chegam apressados ao Largo da Carioca e em meio ao barulho do Largo de São Francisco. A “simplicidade dos humildes, a