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O Rio é todo ouvidos, ou melhor, boca e ouvido

No século XIX, o Brasil era o Rio de Janeiro, da mesma maneira como a cidade da Bahia o fora no Seiscentos, só que com uma diferença: além de ter sido elevada à categoria de metrópole do sistema capitalista português, a cidade, em relação à Salvador, apresenta um salto consistente no que se refere à esfera pública. Os dois romances mostram um ambiente marcado por estruturas de sociabilidade, que se observa num intercâmbio comunicacional maior entre indivíduos e grupos, baseado, sobretudo, na palavra falada e na gestualidade. O compadrio e a considerável circulação de gente de origem e classe social das mais diversas, num espaço de trocas concentrado principalmente no centro da cidade e arredores, revelam a existência de uma Gemeinde25 cuja razão de ser, agir e padecer no mundo se localiza na intimidade dos vínculos que se formam pela palavra falada e o envolvimento dos indivíduos em combates verbais, gestuais e sinestésicos, na interação cotidiana do tempo presente. Desde que o homem se reconhece como sujeito histórico, coautor da própria existência, a linguagem, inserida em toda prática social, o constitui e também molda o ambiente social em que vive (WILLIAMS, 1977, p. 29). E, no Rio de Janeiro do tempo do rei, isso salta aos olhos e ouvidos. Por todo lugar, estão a fala e o gesto, o movimento dos corpos e os sons produzidos

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A palavra alemã significa “grupo de pessoas que se juntam por uma idéia ou interesses específicos”, com uma dimensão menor do que Gesellschaft, que teria um sentido mais amplo e abrangente de classes sociais e relações de vida e trabalho. Cf. Wahrig: Wörterbuch der deustchen Sprache. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1990, p. 338; 346.

para comunicar que, quando estendidos, fazem expandir também a cidade e tornam o tempo memorável. Assim, na nova metrópole dos trópicos, nos últimos anos do período colonial, a linguagem da fala e dos sentidos ligados ao corpo não é apenas elocução, enunciação ou mero instrumento de expressão dos indivíduos e do grupo, mas insere-se no todo da produção material da vida e do sentido que se atribui à experiência (WILLIAMS, 1977, p. 29). A palavra falada, mais evidente manifestação da linguagem, deixa, portanto, de ser um meio em si para se tornar um Urmedium26, o primeiro meio, o meio de comunicação primordial, originário e prototípico, embora se materialize em determinadas tipologias que funcionam como mediações do discurso. Benjamin vai além de Buddemeier, ao dizer que “a linguagem de um ser é o meio em que se comunica sua essência espiritual” (1992, p. 48) e não através do qual esta essência é comunicada. O filósofo enfatiza o caráter constitutivo do ser pela linguagem e pela fala ligada ao som, que nomeia os outros seres e as coisas, e não é apenas instrumento, mas o próprio cerne da existência.

Nosso povo comum “fala pelos cotovelos”, durante muito tempo e “sem interrupção”. Fala com a boca e o resto do corpo, em voz alta e consigo mesmo, e confere sonoridade ao pensamento. São “faladores” e não apenas falantes. Ocupam cada minuto a conversar, a tecer intrigas orais, a investigar e divulgar ideias e atitudes tanto próprias quanto alheias. Conversa- se nas casas, nas esquinas, sentado em “cadeiras de campanha” ou nas esteiras estendidas em frente à moradia; as pessoas falam e gesticulam, em pé, junto à porta ou à janela, onde fazem reuniões compadrescas só para isso; cochicham nas igrejas e procissões, nos velórios animadíssimos de histórias pra contar (ALMEIDA, 2005, p. 47; 64; 167).

A sociedade tradicional do Rio de Janeiro de el-rei, especialista na arte de narrar, é o lugar privilegiado do ócio, no sentido que lhe empresta Walter Benjamin (2006, p. 839-846). A vida contemplativa, desobrigada das relações de trabalho burguesas, porém não menos ativa, aqui é tomada pelo privilégio do tempo que se dispõe para tecer intrigas. “Falo, e falo muito”, diz o mestre de reza, “mas que quer, se me sobra tempo para isso; e demais, bem sabe que não é trabalho que canse. Meus pais eram algarves e eu não quero desmentir a herança”, completa o velho cego (ALMEIDA, 2005, p. 159). A “hereditariedade” da tagarelice, de alguma maneira, tem uma relação com o modo de produção artesanal que permite uma “sobra” de tempo ou uma maneira de administrá-lo e contextos específicos em que é possível

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O vocábulo, utilizado por Heinz Buddemeier, tenta diferenciar a língua falada dos meios elétrico- eletrônicos – telefone, rádio e televisão – e, por analogia, também a mídia impressa, como coisas fabricadas pelo homem para vencer as distâncias do tempo e do espaço. Cf. BUDDEMEIER, Heinz. Von der Keilschrift zum Cyberspace: Der Mensch und seine Medien. Stuttgart: Verlag Urachhaus, 2001, p. 22.

narrar, como o que acontecia nas oficinas de trabalho manual, verdadeiras “escolas superiores” do ofício de contar e entroncamentos da “notícia que vinha de um lugar distante, trazida de volta pelo viandante, com a notícia do passado, como é confiada de preferência a quem ficou em casa”27. Essa “notícia”, de que fala Benjamin, traz uma ideia de novidade

diferente da concepção industrializada de informação. É claro que, tanto para quem conta quanto para quem ouve uma história, existe a expectativa do novo, do curioso e do inusitado. O próprio ato de narrar já é uma atualização, até mesmo para antigas lendas do repertório comunal que, quando recontadas, assumem uma relação nova com o imaginário construído na duração. A relação com o tempo, e principalmente com o presente, é que muda. Nas sociedades tradicionais, o ofício de reportar, associado ao ato de contar, estende o espaço quando o narrador traz novidades de uma terra longínqua ou de um lugar inalcançável por quem ficou em casa, e estende o tempo ao remontar ao passado de uma história. O tempo posterior da informação industrializada, ao imprimir velocidade às narrativas já midiatizadas pela técnica e pelos meios de comunicação a elas correspondentes, vai fazer com que a novidade seja o produto da compressão – e não da extensão – do tempo e do espaço, além de aumentar a quantidade do que é novo até a exaustão e exigir um tipo de processamento da informação calcado nas noções de instantaneidade e imediatismo. As histórias contadas pelo Narrador de Benjamin ainda passam por um tempo maior de elaboração e não se esgotam ou vivem apenas no momento em que se tornam novidade (Benjamin 1989:445-6); elas percorrem um dado espaço e respeitam o tempo do deslocamento do sujeito que conta e do sujeito que ouve, valorizam a experiência passada e transmitida de boca em boca, ainda que permanentemente atualizada no presente da performance do ato de narrar. Processar a informação, portanto, ou seja, produzir, organizar, fazer circular, apropriar-se dela e construir representações de mundo para depois transformá-lo, é, pois, conjugar num só instante o passado, o presente e o futuro da experiência; é revolver a lembrança do que já foi narrado, dar-lhe um sentido novo através da imaginação produtora de novas histórias e imprimir-lhe uma expectativa de transformação da realidade material para onde sempre retorna.

Numa passagem bem ilustrativa de uma época ainda não dominada pela técnica, no sentido de processamento da informação em escala industrial, Manuel Antonio de Almeida descreve os oficiais de guerra que Dom João insistia em conservar no Paço, embora incapazes

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No original alemão: “die Kunde von der Ferne, wie der Vielgewanderte sie nach Hause bringt, mit der Kunde aus der Vergangenheit, wie sie am liebsten dem Sesshaften sich anvertraut. Cf. BENJAMIN, Walter. Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows. In: Gesammelte Schriften: Literarische und Ästhetische Essays. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, Bd.1.2.

de enfrentar o campo de batalha, depois da chegada da velhice (ALMEIDA, 2005, p. 47-48): “Todo o tempo passavam em santo ócio [grifo nosso], ora mudos e silenciosos, ora conversando sobre cousas do seu tempo”. E que tempo era esse? – poderia indagar o leitor burguês de fins do século XIX ou o intelectual do século XXI. “Um tempo de poucas preocupações”, responde Almeida, em que “o objeto de estudo de muita gente” consistia em conversar, caçoar, bulir, cutucar com a voz e o corpo, até produzir ação ou fazer sair do interlocutor uma torrente de palavras e gestos que descortinassem alguma sabedoria e conhecimento do mundo. “Conversar e conhecer”, nos lembra Benjamin, “era sobretudo nisso que consistia, segundo Platão, a felicidade da vida privada” dos antigos e também de “conhecedores e amadores” pré-industriais. O ócio, que herdou o sagrado da contemplação religiosa, transforma-se em “santo ofício” desses “ativos militares” e do povo comum. Na época do rei, ele ainda não se transfigurara em ociosidade burguesa, a ser inundada pela informação impressa, sonora e audiovisual e sua pretensão de demarcar e controlar o tempo livre. O tempo é o tempo de narrar e não o da produção industrial acelerada pela técnica. É o ócio que faz de cada meirinho, barbeiro, quitandeira ou parteira, gente de ofício tradicional, do artesanato e do trabalho prático, detentores do privilégio de gerir o tempo com a arte da narração.

As conversas não conhecem limites geográficos, culturais ou hierárquicos: vão da sala de despachos do rei às casas de prostituição. Fala-se de tudo. Em alguns momentos, a função fática da linguagem dá o tom; em outros, há a necessidade de ter pauta para conversar. O importante é falar, ainda que sem logro, e dar o que falar, como a vizinha do barbeiro “que se gabava de não ter papas na língua”:

- E você, respondeu o compadre enquanto a vizinha tomava fôlego, por que se mete com o que não é da sua repartição?

Ela prosseguiu:

- Hei de me meter; não é da sua conta, nem venha cá dar regras, que eu não preciso de você... (ALMEIDA, 2007, p. 63)

Embora a vizinha se ressinta do controle imposto pelo interlocutor, a comunicação no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX, tem uma gramática própria, ou seja, possui princípios e linhas de força que podem ser reconhecidos (McLUHAN, 1964, p. 15), em que se percebe uma lógica de organização nas tipologias da fala, nas materialidades da narrativa, suas funções, nos agentes e intérpretes, nos lugares de produção discursiva e nas instituições que compõem um verdadeiro sistema de informação, oralizado e tradicional. O

sistema funciona atrelado a aspectos cognitivos e a práticas sociais de indivíduos que produzem, armazenam e fazem circular a informação de modo predominantemente oral, numa época de efervescência política que ainda conservava estruturas arcaicas de dominação e controle pela palavra escrita, este artefato partícipe da construção de impérios, ao longo da história da humanidade. Só que, desta vez, os decretos e leis não demoram muito para chegar da Península Ibérica, como acontecia nos primeiros séculos de exploração colonial; já se produz burocracia estatal na nova metrópole e, como veremos adiante, até mesmo esse tipo de cultura escrita pode ser contornado por apropriações diferenciadas dos textos, sob a gramática do oral.

Há vários tipos e gêneros de fala: as “primeiras palavras”, que anunciam a chegada de uma personagem; a fala de improviso, solta, sem preocupação com o conteúdo; a fala ensaiada, treinada, cercada de cuidados na configuração; os cochichos; os recados e mensagens mandados de boca; os assobios que dizem o que fazer e incitam à ação e reação, e a dissertação, uma compilação oral e, portanto, mnemônica de argumentos selecionados em defesa de uma ideia. Em contextos permeados por uma aura mais cerimoniosa, estão a fala retórica, que impressiona uma audiência atenta e embevecida; a conversa oficial, em comitiva, que elege um orador, representante dos anseios comuns; os relatos exclusivos, distintos da informação ordinária, que já se tornou conhecida, evidenciada e gasta e, ainda, aqueles ditos “apócrifos”, uma espécie de fala não comprovada e, portanto, carente de autenticidade. As reuniões íntimas ou públicas são marcadas pela conferência, hábito comum da época, em voz alta ou em segredo, cujo ritual trata de um assunto relevante ou para quem fala ou para todos os envolvidos na catarse que é o ato de comunicar; as conversas em grupo, em roda, pacíficas, debatedoras, cômicas, tensas, permeadas de desafios; conversas em coro, cantadas, que utilizam a música como artifício de memória, e as conversas em blocos, como “passos de conversa”, que se dividem em quadros temáticos. Quase todo encontro, fortuito ou não, é marcado por uma história tecida no momento presente da interação, que vem de encontro à necessidade do falante de entender a si próprio, sua inserção no grupo e o funcionamento da vida material. A inteligência oral sabe distinguir cada momento e os gêneros que se lhe aplicam, distintos porém entrelaçados. Numa mesma ocasião, passa-se de uma fala a outra, como para lembrar que o mundo da oralidade é o da interação que exige a presença física num tempo igualmente presente, pautado nas reações de quem é convidado a participar do rito ou foi levado a envolver-se nele pelo som e o apelo gestual.

Para cada tipologia, há uma postura ou movimento do corpo, uma gramática do gesto. As primeiras palavras de quem chega, muitas vezes ditas de maneira impetuosa, na ânsia de falar, fazem com que o interlocutor recue dois passos e se coloque numa posição de defesa. O cochicho pede que o companheiro incline o corpo para ouvir, como as comadres de mantilha o faziam no meio da missa, na Sé. Um simples movimento com os tamancos dá o sinal para o início de uma conferência oficial, anima os membros da comitiva a desencadear a fala e acaba com os gestos confusos e atrapalhados de quem não sabe como dizer (ALMEIDA, 2005, p. 169; 225). Em frente à porta da casa ou nos piqueniques frequentes, quando se sentava em roda nas esteiras, certamente a postura relaxada era diferente desta exigida para uma conferência:

Quando a comadre entrou, Dona Maria largou imediatamente a almofada do colo, tirou do nariz e pôs na testa um par de óculos de aros de prata com que trabalhava, e começou logo por tocar no caso que a preocupava. A comadre fez sinal que mandasse retirar Luisinha e as mais crianças; e a conversa caminhou livremente (2005, p. 127).

A necessidade de construir ambientação para os rituais oralizados cotidianos, inclusive na mudança de postura que a cerimônia íntima e familiar exige, é uma espécie de estrutura de sentimento28 que prepara o caminho para, bem depois, os meios de comunicação invadirem ou serem convidados a compor os espaços, a administração do tempo, os usos da linguagem e os conteúdos dos discursos. Os dois romances ambientados no tempo do rei fornecem constantemente pistas que permitem entender as práticas sociais como anteriores aos meios. A comadre, que veio trazer uma informação preciosa à Dona Maria, mais tarde se transmuta no aparelho de rádio dos anos 1940 e na televisão das décadas seguintes: é a “hora do repórter” que se anuncia, da novela que conta uma história de um mundo representado, mas que saiu da realidade compartilhada, e muitas vezes é imprópria para toda a casa; é tempo de parar com a tarefa que não pode ser mais importante do que aquilo que se tem para ouvir e ver, pois isso é também um modo de produção, inserido na vida material, que refigura a experiência comum e lhe dá sentido. O rito da conversa em casa de Dona Maria mostra, ainda, que existe, já no tempo do rei, a formação de uma “consciência prática” do caráter narrativo dos processos de

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O conceito, de Raymond Williams, tem o sentido de uma experiência social ainda em processo, em resolução, de caráter emergente ou pré-emergente, que evidencia formas e convenções ainda não definidas ou classificadas, porém explícitas e reconhecidas metodologicamente, por exemplo, em tipos específicos de arte e narrativa, como a literatura. O autor diz que o conceito é uma “hipótese cultural”, mais frequentemente reconhecida num estágio posterior de formalização e institucionalização da experiência antes vivida. Cf. WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. Oxford: Oxford University Press, 1977.

comunicação, que são vividos no dia-a-dia, ainda sem a mediação técnica. O que se observa, nesse trato cotidiano da informação e da narração, é uma “qualidade particular da experiência e do relacionamento social” e uma “articulação específica na prática material” que, embora historicamente distantes dos meios elétrico-eletrônicos de retorno da oralidade, já articulam significados e valores embrionários que vão se modificar ao longo do tempo até se materializarem em dispositivos técnicos com usos distintos, mas que ainda guardarão uma espécie de presença e de continuidade viva e inter-relativa (WILLIAMS, 1977, p. 130-134).

Há também uma gramática dos sentidos, um aprendizado de escuta, uma educação para ouvir, ver, tocar e sentir. Num tempo em que saber falar, ouvir e gesticular era a garantia de se conseguirem as coisas - dentre elas, alcançar posições no mundo do trabalho prático e manual, produzir idéias na mente dos ouvintes e impressioná-los, discutir o valor de uma informação e nomear e demarcar os espaços da cidade – o ouvido apurado descortinava o mundo para o homem e o homem para o mundo, num processo de constituição recíproca e permanente entre indivíduo e sociedade. Era assim que um patusco, perambulando pelas ruas da cidade com a “viola a tiracolo”, ao ouvir a voz branda que lhe dizia “venha cá, aonde vai?”, “o único remédio que tinha era fugir”, pois o temível Vidigal já dera a entender que o perigo estava por perto. A comadre também não fica atrás na perspicácia: sabe, pela conversa das beatas de mantilha que cochicham na igreja, que dali pode sair informação valiosa sobre o afilhado perdido, e se põe a ouvir (ALMEIDA, 2005, p. 35; 44). É também no meio de uma aventura para escapar do chefe da guarda do Paço que Pedro e Leonardo, príncipe regente e súdito, porém igualados na condição de pivetes e soberanos da rua, precisam refinar a escuta para sobreviver à perseguição:

Bem no meio dos Arcos, sobre a rua das Mangueiras, pararam por um instante, para apurar os ouvidos, e sentiram que o ruído das botas inimigas diminuíra ou silenciara... Mas, e se fosse um truque? E se apenas tivessem tirado as botas para correr melhor?

Pedro e Leonardo esperaram um pouco mais. Na súbita quietude, era possível agora ouvir até o ruído da água dentro do cano... O barulhinho do líquido escorrendo despertou-os para o fato de que estavam há horas sem urinar (CASTRO, 2007, p. 108).

As situações de comunicação que exigem maior habilidade de escuta acabam evidenciando a existência de um “regime de audição”29

próprio das sociedades tradicionais, que não precisa esperar a mediação tecnológica dos artefatos elétricos para apresentar certo grau de refinamento. Mesmo antes de tornar-se “objeto de conhecimento na modernidade”, o som, ao permear a experiência de interação cotidiana do homem, aos poucos deixa de ser “uma forma natural de apreensão do mundo” (SÁ, 2004, p.4; 5) e faz com que a ideia de audição não se restrinja apenas ao sentido humano e se estenda também à condição de atividade construída e permanentemente reelaborada, no âmbito da produção material da existência. Se uma “forma moderna de ouvir”, burguesa e “articulada a uma história dos objetos técnicos” dos meios elétrico-eletrônicos, trouxe um novo regime de audição (STERNE apud Sá, 2004), o aprendizado de escuta, o reconhecimento da riqueza e dos “detalhes sônicos” – presentes nas noções de tom, timbre, ritmo, pausa etc. – já se faziam necessários num sistema de comunicação complexo e oralizado. Percorrer os rastros de uma “genealogia da escuta moderna” (SÁ, 2004, p. 6; 7) pode nos levar muito mais longe do que imaginamos: à sutileza do camponês que distingue o canto dos pássaros e o significado de cada “entoação”; aos barulhos e signos que o esquimó atribui a diferentes fissuras no gelo e ainda, aos estados de espírito da mãe que o homem-feto aprendeu a decifrar a partir dos impulsos sonoros recebidos no ventre. Em toda prática social e socializante há o aprendizado. No Rio de Janeiro do início do Oitocentos, a qualidade da experiência é marcada por hábitos de uma escuta que, de algum modo, mais tarde, vai dispor o sentido, já funcionando em estatuto de “consciência prática”, a novas materialidades e novos usos a serem reinventadas pela técnica.

O refinamento pelo som estende-se também ao requinte dos movimentos do corpo que, junto com a voz humana, compõe a materialidade da comunicação cotidiana oralizada. No mesmo espírito aventureiro do filho, Leonardo Pataca, pai do protagonista homônimo, ao

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A expressão, de Jonathan Sterne, é desenvolvida e aplicada por Simone de Sá para entender a escuta sonora em diferentes artefatos tecnológicos, e significa “o conjunto de possibilidades, costumes, técnicas