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Em busca das raízes de um Brasil oralizado

Exilado no engenho do amigo, o rabino e erudito impressor Samuel da Fonseca, o poeta observa a paisagem. Ali no Recôncavo, um dos centros nervosos da economia açucareira do Brasil colonial, as máquinas de moer cana e gente funcionam a todo vapor. As fornalhas incandescentes lançam ao vento uma fumaça da cor das engrenagens que faziam todo aquele aparato funcionar. Não muito longe, na praia, uma pequena frota de embarcações passava ao largo, talvez com mais uma carga de combustível africano para os engenhos, ou ainda repleta do pó adocicado que movia corpos, mentes e os espíritos das terras d‟aquém e d‟além-mar.

Figura 6: O engenho colonial: máquina de moer cana e gente

No século XVII, o açúcar era o grande produto, a “carga fixa” que permeava toda a vida da Colônia e definia os “padrões óbvios de organização social”, o “pathos”, o “humor” e o “sabor cultural” da terra e suas gentes. McLuhan compara os meios tecnológicos a tais produtos, “que dão forma à vida” de uma sociedade e de cuja influência não dá para escapar (1964, p. 21). O mundo que aqui se impôs e também se fez é, assim, resultado de um empreendimento colonialista que durante séculos baseou-se num produto-chave para a exportação e o enriquecimento da metrópole, na utilização de grandes áreas de terra e no trabalho escravo. A cana-de-açúcar, o ouro, o café, a borracha e, mais adiante, as mercadorias industriais constituíram não apenas matéria-prima da exploração pelos estados soberanos do norte do planeta e do capital estrangeiro, como também se tornaram meios que configurara m o que Giberto Freyre denomina “civilização única dos trópicos” (1959) que, para se formar, teve que lançar mão de seus elementos europeu, africano e indígena e se amalgamar numa coisa nova chamada Brasil.

A cidade da Bahia, no último quartel do século XVII, já dava sinais de uma gestação civilizatória complexa e conflituosa. Quando Gregório de Matos a observa de sua janela, o que ele vê são “pessoas de diversos mundos e reinos distintos”. Aliás, se a Bahia não estivesse fendida também em “dois lados”, como disse certa vez o irmão do padre Vieira, ela não seria barroca (MIRANDA, 2006, p. 10; 40). Um elemento branco, transformado em classe dirigente “exógena e infiel a seu povo”, resolveu se tornar contínuo e permanente, atravessando os séculos e “exercendo sua interminável hegemonia” (RIBEIRO, D., 2006, p. 62). Uma classe exógena, também porque era letrada e encontrou na palavra escrita um uso político, religioso e econômico, que lhe permitiu diferenciar-se do restante da população,

semelhante a ela na natureza humana, mas diferente na cultura e na ideologia – uma população majoritariamente mameluca, índia e negra, ainda fortemente ligada ao mundo oral, apesar de já ter sido atravessada pela escrita da Lei, da Ordem e do Rei. Esta, entretanto, como qualquer outra tecnologia, precisa ser acessada, apreendida e desenvolvida como ferramenta, para ser incorporada à prática cotidiana e tornar-se extensão do homem. Isso não se consegue no amplo espectro da sociedade, principalmente se for considerada uma benesse, um privilégio ou se estiver sob um rígido controle, muitas das vezes de caráter estamental.

Fora do circuito da intelectualidade luso-brasileira, existe uma gente que não é nem substantivo nem adjetivo. Enquanto nas sátiras do poeta encontramos os “entendidos” e, no romance de Ana Miranda, os “letrados”, para o povo comum não há categorização, pelo menos no que diz respeito às mentalidades ligadas ao modo de expressar-se, construir representações de mundo e processar a informação. Também não lhes cabe, já decorridos dois milênios de escrita alfabética e um século de impressão nos tipos móveis de metal que tanto auxiliaram os estados nacionais a estender seu centro de poder à periferia, chamar esse povo de oral, iletrado ou não-letrado, como se negássemos nele a presença dessas duas tecnologias. De várias maneiras, a escrita e a “invenção” de Gutenberg já se faziam presentes nos trópicos, no conjunto de leis, nas mentes dos administradores, missionários e intelectuais da elite dirigente, atuando como media a serviço de el-rei, dando forma e sentido ao domínio ultramarino. De que outro jeito o soberano, estando longe, poderia exercer o controle sobre a nova terra?

Gregório de Matos acha que são ignorantes, néscios, asnotes, bestas, idiotas tão supinos. No romance de Ana Miranda, eles aparecem como uma “gente mecânica” e “de baixa extração”. Assim o poeta denomina o próprio pai que, antes de tornar-se almotacé, tesoureiro do juiz de Órfãos e procurador do Conselho, era lavrador (2006, p. 75). Numa das sátiras dirigidas contra os fidalgos brasilíndios, Matos critica, com o seguinte verso, os que têm pretensão à nobreza, se originam do trabalho manual e depois alcançam a fidalguia: “Bengala hoje na mão, ontem garlopa”, em alusão ao ofício de marceneiro (2004, p. 56). Os “mecânicos” são aqueles que usam de ferramentas para a sobrevivência ou que constituem eles próprios, com seus corpos, ferramentas da engrenagem social, uma vez que, no discurso dos letrados, são eles desprovidos de atividade mental, “sem razão” ou “entendimento”; não são formados nas “ciências”, não se exprimem com conceitos estudados, não aprenderam o grego e o latim e, portanto, estão menos propensos à abstração. O vereador Luiz Bonicho, num diálogo com seu professor de esgrima, Donato Serotino, exemplifica como a

“mecanicidade” do povo contrasta com o sentido de uma formação nobre e letrada, e dá a entender uma condição hereditária comum a essas duas tipologias:

Porque o regente [Sua Alteza, o rei de Portugal] não é totalmente uma mula, Donato, ah, não. Seria uma mula se fosse filho de gente mecânica, como tu. Mas nasceu filho de reis e teve preceptores, mestres, músicos, poetas, filósofos e retóricos para lhe ensinarem a não ser uma mula (MIRANDA, 2006, p. 179).

Esse tipo de gente, entretanto, não foi uma invenção da sociedade colonial brasileira urbana e rural; pelo contrário, existe desde as primeiras divisões do trabalho. “„Quem construiu Tebas das sete portas?‟, perguntava o „leitor operário‟ de Brecht” (GINSBURG, 1987, p. 15). No século que precedeu ao de Gregório de Matos e Antonio Vieira, na França já atravessada pela escrita e a impressão, a historiadora norte-americana Natalie Davis foi buscar uma categorização que desse conta de especificar um público e uma audiência dessas tecnologias, que não eram letrados. Davis chega às categorias povo e popular, e diz que são palavras carregadas de ambiguidade para o uso letrado do Seiscentos e assim permanecem também na nossa concepção: uma hora, “povo” significa “todos os nativos do reino ou o corpo de cidadãos para os quais uma lei é promulgada”; num outro momento, designa “os cidadãos comuns, os não letrados”; o “povinho”, no entender de um intelectual da época citado pela autora, “vivia tanto na cidade como no campo” e eram “aqueles que trabalhavam com a terra e que se ocupavam das tarefas e serviços menores”; há ainda as “petites gens”, que são indivíduos já capazes e habilitados à leitura e ao consumo de livros, as “gens rustiques”, formadas por camponeses semianalfabetos e as “gens mécaniques” da população urbana em geral, todas elas constituintes do chamado “menu peuple”. Esta grande categoria vem dividida em muito alta (boticários, cirurgiões, gráficos), alta (pintores, músicos, taverneiros, artesãos do metal), média (peleteiros e artesãos do couro, artesãos têxteis e que trabalhavam com roupas) e baixa ou muito baixa (artesãos da construção, de provisões, transporte; cultivadores urbanos; diaristas não qualificados) – (DAVIS, 1990, p. 157-185). O

menu peuple francês, talvez mais alfabetizado, porém não menos detentor de uma

mentalidade oral, poderia encontrar seu equivalente tropical no que Darcy Ribeiro chamou de

povo-massa (2006, p. 163), culturalmente definido como excluído da civilização letrada,

todavia perpassado por ela:

Uma camada intermediária de brancos e mestiços livres, paupérrimos, procurava sobreviver à sombra dos ricos ou remediados... Essa gente enchia as casas, auxiliando em todas as tarefas domésticas e no artesanato singelo de panos e redes, de costura e bordado, do fabrico de sabão ou de linguiça e

doces. Alguns artífices autônomos trabalhavam por encomenda, em selas e tralha de montaria, em sapatos de couro, como ferreiros e mecânicos ou nos ofícios ligados às construções. Abaixo vinha a criadaria escrava destinada a abrilhantar a posição dos ricos e remediados, carregando a eles próprios, a seus objetos e dejetos, amamentando os recém-nascidos, servindo-lhes, enfim, de mãos e pés (2006, p. 179-80).

Carlo Ginsburg associa o que chama de “níveis de cultura” à divisão de classes. Cultura, para o historiador italiano, é entendida como “o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento”, além de “ideias” e “visões de mundo”. Às chamadas “classes subalternas” ou “populares”, o autor atribui um nível “predominantemente oral”, embora destaque um “influxo recíproco” entre esse tipo de mentalidade e aquele das “classes dominantes” ou “hegemônicas”, segundo o conceito de “circularidade da cultura” que emprestou de Mikhail Bakhtin13 (GINSBURG, 1987, p. 16-20) e de que falaremos mais adiante. Mas uma coisa é certa, e ela encontra ressonância tanto em Ginsburg quanto em Davis: a compreensão das gentes do “menu peuple” como indivíduos, na acepção histórica do conceito, ou seja, eles não estão meramente submetidos a “influências externas passivamente recebidas”, têm autonomia no ato da comunicação e são capazes de impor usos diversos às materialidades tecnológicas.

Quando se confronta com tal concepção histórica do indivíduo, torna-se difícil e incômodo denominá-lo iletrado, não-letrado, subletrado ou analfabeto. Tampouco pode ser considerado “oral”, principalmente se habita uma comunidade urbana do século XVII que já se organiza em torno da escrita e da impressão, ainda que essas mídias não determinem as formas de pensamento da maioria. Uma palavra formada de um prefixo que denota negação, ausência ou posição inferior não pode servir para enquadrar um indivíduo e colocá-lo em oposição a outro, como se tudo pudesse ser resolvido na base da dualidade. Mesmo no Brasil do estilo e da estética barrocos, a categorização comunicacional de um indivíduo que age no mundo ora pela oralidade, ora pela escrita/impressão, pecaria já na intenção antitética de enclausurá-lo em um desses universos. As expressões “iletrado” e “não-letrado” denotam apenas um estado de negação do letramento, aqui em nossa literatura seiscentista considerado como “entendimento”, “saber científico”, ilustração, erudição, produto dos livros; a palavra “analfabeto”, de um peso ainda mais negativo, mostra a ausência de uma habilidade mais elementar – a de conhecer e lidar com o alfabeto, com as primeiras letras, com a leitura e a escrita – longe de ascender ao olimpo da “verdadeira ciência”. Em ambos os casos, o

13 O mesmo autor aparece em outros capítulos deste trabalho com o nome de Mikhaïl Bakhtine, que conservaremos nas referências bibliográficas, no fim da tese, visto ter sido consultado na tradução francesa.

incômodo se justifica pela impossibilidade morfológica de poder inferir se tais condições foram impostas, construídas historicamente ou até mesmo rejeitadas pelos sujeitos nelas implicados. Talvez o prefixo que originou o vocábulo “sub-letrado” traga algum significado por si só: eu sou mais da voz e do ouvido do que da letra, tenho consciência de que meu universo é o do som e da audição, do som que eu produzo e troco na interação cotidiana com os outros e que me inclui, dos gestos que faço para me tornar ainda mais inteligível, num mundo em que os sentidos me fazem sujeito e objeto da comunicação e me dão uma outra racionalidade, não menos valiosa; todavia, tenho consciência de que, por uma questão histórica, fui colocado ou me coloquei abaixo da letra, em competência linguística, conhecimento e importância.

As denominações parecem não ter fim. Havelock ainda cita outras classificações como essas, cujo padrão são os níveis de letramento, para diferentes tipos de sociedade: a protoletrada, a letrada de ofício (“craft-literate”), a semiletrada e a inteiramente letrada (“fully literate”), todas essas expressões formadas por radicais que funcionam como prefixos, no original inglês (1986, p. 65). A palavra letramento, então, pode ser assim compreendida como uma afinidade maior ou menor com as palavras escrita e impressa, esta última se constituindo como uma potencialização da primeira. Por conseguinte, o letrado é aquele que constrói sua estrutura de pensamento, seu modo de consciência, percepção, entendimento e representação de mundo e valores pelo conhecimento e habilidade em lidar com as letras, em intensidade e grau variados, conforme o esquema proposto por Havelock. Entretanto, outra categorização se faz necessária, quando se depara com uma sociedade que não passou por todas as etapas do letramento e que se estruturou numa dinâmica singular. Nesse contexto, a oralidade tem que ser o paradigma.

O que propomos é a adoção de uma categoria para o sujeito histórico de um tempo e um lugar em que predominam os padrões orais de pensamento e de ação no mundo, ao se considerar a maneira como ele ou ela lida com a informação, constrói uma mentalidade, um modo de ver e ouvir, de expressar-se e criar narrativas do ambiente a sua volta, de posicionar- se no universo dos seres, das coisas e das ideias: o indivíduo oralizado, aquele que tem nos regimes orais de processamento da informação – de produção, consumo, armazenamento e publicização de discursos – a base e a tônica de sua comunicação cotidiana; que faz usos da escrita em função de uma condição de funcionamento social oralizante, capaz de, através de uma racionalidade outra, transmutar a letra em voz, gestos, sons e memória. O adjetivo ainda pode ser empregado para qualificar ou especificar componentes importantes do ato

comunicativo. É possível falar, por exemplo, de uma escrita e de uma leitura oralizadas, estruturadas segundo as regras de composição e difusão orais; de uma memória oralizada, que faz uso de recursos fonéticos, musicais e rituais performáticos para selecionar e armazenar informação; de um meio oralizado, plataforma de permanência da comunicação oral e do uso abrangente dos sentidos humanos para a simulação de uma interação cotidiana etc. O indivíduo oralizado, como categoria, dialoga, portanto, com o que Eric Havelock chama de “oralismo histórico”, expressão que descreve “um modo distinto de consciência que tem suas próprias regras” (1986, p. 40). Isso significa que, devidamente historicizados, sujeito e condição de comunicação e expressão podem se transformar e adquirir contornos específicos e variados no tempo, no espaço e no contexto sócio-econômico-cultural. Então, no século XVII e na terra brasilis, já é possível falar de um contingente oralizado de indivíduos e grupos sociais.

Embora considere fatores históricos tais como a limitação do material de leitura pela Inquisição a livros religiosos católicos e o estudo baseado em livros, “restrito principalmente a uns poucos colonos”, Gilberto Freyre atribui essa condição oralizante da estrutura social no tempo da Colônia a uma “falta de interesse demonstrada pelos brasileiros nos livros, em história natural, ciência natural e até mesmo na arte”, do que “apenas a música era exceção”. Freyre ainda considera uma característica do Brasil entre os séculos XVI e XIX a “ampla falta de ambição pelo ganho material e desenvolvimento intelectual”, que contrasta com o que denomina uma “disposição brasileira em desfrutar da vida e do lazer”. Esses fatores resultariam no que chama de “ritmo de atividade brasileiro, que se expressa mais tipicamente numa combinação de trabalho pesado e lazer”, que acaba se constituindo numa tradição e que mais tarde levará o autor a dizer que não temos necessidade do letramento para alcançarmos a modernização (1959, p.5; 14; 58). Além da intenção limitadora da instituição religiosa, comparsa da lógica empreendedora do mercantilismo europeu, o sociólogo, num tipo de demonstração que lhe é própria e que Luiz Costa Lima vai criticar sob a denominação de “lusotropicologia” (1981, p. 18), busca sentido para essa “disposição”, que se traduz em práticas sociais, no clima tropical e nas sociabilidades dele resultantes:

Parece que o comportamento humano nos trópicos tem que ser considerado, em alguns de seus aspectos, em relação a situações e condições peculiares ao meio ambiente tropical; ao fato, por exemplo, de que o clima tropical é favorável ao contato agradável e informal, em praças públicas... Tal atmosfera – uma combinação de natureza e cultura sob os efeitos do esplendor tropical – com certeza afeta o comportamento dos homens, seu caráter, sua arte, sua filosofia de vida” (1959, p. 22-23).

As quintas onde se reúne o círculo de letrados, o pátio do colégio jesuíta, as imediações do cais do porto, as ruas e ladeiras, o campo e a praia são lugares de encontro, conversa, discussão teológica, jogos variados, dança, sedução, fornicação e até mesmo de composição poético-satírica. Nos poemas e no romance, índios, brancos e mestiços se envolvem em práticas sociais sob o “calor úmido e abafado” dos trópicos (MIRANDA, 2006, p. 116). Tal como os eruditos que visitavam o Brasil no tempo da Colônia, um intelectual alemão, no fim do século XX, enquanto passava boa parte do verão trabalhando como voluntário numa obra social numa cidadezinha localizada entre Rio e São Paulo, chegou a fazer um comentário bem parecido com o que descreve Gilberto Freyre: “Não consigo entender como o brasileiro produz intelectualmente sob um calor tão intenso”14. Se a arte da conversação, a tendência a desfrutar mais de ambientes abertos do que fechados, a valorização do lazer e do entretenimento são variáveis a serem consideradas na tipificação de um Dasein e uma Stimmung15 brasileiros, ligados à configuração de estruturas mentais e que se estendem às práticas sociais, não podem, entretanto, ser limitadores de um entendimento acerca de nossa sociedade que, a bem dizer, deve encontrar explicação mais substancial nas relações de produção aqui implantadas. A configuração de uma brasilidade oralizada, além de uma construção histórica que revela restrições ao letramento e controle das mentes, pode até levar em consideração uma “falta de interesse”, ambição ou desejo de povos subjugados ou não à lógica perversa do colonizador, visto serem eles também sujeitos que, além de padecer, também agem sobre a própria história. Mas, deve-se tomar o cuidado de não embarcar na nau do pensamento da elite dominante, no bom estilo barroco do século XVII, para quem “néscios”, “ignorantes” e “mulas de carga” são indivíduos entregues ao desleixo e o descaso para com “a verdadeira ciência”, até porque esse tipo de ciência é passível de questionamento. E se tal brasilidade oralizada se fez ao matar as matrizes das quais surgiu para criar uma identidade própria, como explica Darcy Ribeiro (2006, p. 115), é interessante verificarmos, do ponto de vista do oral e do letrado, como, através da desindianização, desafricanização e deseuropeização, as culturas se fundem e as mentalidades são colocadas para circular.

No mesmo dia em que disse ao irmão Antonio Vieira, no colégio dos jesuítas da Bahia, que os dois eram diferentes dos homens que habitavam essa terra, talvez em alusão à “ignorância” do povo em contraste com a ilustração de sua família, Bernardo Ravasco ouviu,

14 Informação verbal dada ao autor em janeiro de 1991.

15 As palavras alemãs significam, respectivamente, “estar presente no mundo, existência, vida” e “disposição, ambiente, atmosfera”. Cf. LANGENSCHEIDTS TASCHENWÖRTERBUCH DER PORTUGIESISCHEN UND DEUTSCHEN SPRACHE. Berlin: Langenscheidt, 1982, p. 762; 1082.

a pedido do padre, um menino índio entoar uma cantiga. A escola abrigava muitos deles e o indiozinho que se distraía com um inseto ao lado de Vieira, enquanto os dois irmãos conversavam, era um exemplar dentre muitos outros, capturados nas aldeias para a educação religiosa e o adestramento civilizatório da mídia letrada de Loyola. “A voz agudíssima [que] parecia vir do céu e não da garganta de um pequeno ser humano” (MIRANDA, 2006, p. 41) é o resquício da tribo dentro das paredes de pedra da instituição das letras – um lembrete do poder alienador da palavra escrita e da transformação do indivíduo oral em sujeito oralizado. O índio que ora respondia presença nas aulas do colégio e que talvez um dia se tornasse pai de um dos fidalgos mestiços, alvo do desprezo de Gregório de Matos, foi processado pelo letramento jesuítico que o transplantou de uma comunidade essencialmente oral para uma sociedade permeada pela escrita.

Darcy Ribeiro diz que a condição essencial para desindianizar o índio “é a ruptura das relações da velha transmissão de pais a filhos”, ou seja, a civilização “comandada por eruditos da cidade” tira-o do contexto da tradição oral, insere-o no ambiente regido pela escrita e sua mentalidade, onde terá que sobreviver ou resistir, e, qual mídia, “transforma todo o seu modo