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Uma ilha de letrados cercada de bárbaros por todos os lados

O registro literário do universo de sons que compõem a cidade da Bahia, no século XVII, e que estão presentes nos espaços de circulação do povo comum já ilustra com propriedade o cotidiano de quem faz mais uso dos gestos corporais, do ouvido e da fala para se comunicar e expressar, nas conversas do dia-a-dia, nos ritos carregados de um simbolismo tanto religioso quanto pagão, no trabalho manual e na tendência ou necessidade de entretenimento diante das vicissitudes próprias da rudeza da vida e das condições de sobrevivência, numa nação ainda por fazer-se.

Mas a cidade não é apenas um universo de sons. À janela de onde o poeta avista a paisagem e o movimento das ruas e dos seres vêm juntar-se as celas dos mosteiros, as bibliotecas particulares e as salas da administração colonial como espaços de silêncio e recolhimento de um certo tipo de gente que se coloca para observar o mundo e a si mesmo. A

invasão lusitana nas terras novas da América trouxe consigo na bagagem essa categoria, já devidamente nomeada e estabelecida: o letrado.

Era eu em Portugal sábio, discreto, entendido, poeta, melhor que alguns, douto, como meus vizinhos. Mas chegando a esta cidade logo não fui nada disto, porque um direito entre tortos parece que anda torcido... mal entendido de todos, de nenhum bem entendido (MATOS, 2004, p. 85).

Estamos, pois, diante de dois grupos de pessoas que compõem tanto um “criatório” quanto um “moinho de gastar gente”10

, maquinário essencial ao crescimento e à manutenção do empreendimento colonial-mercantilista implantado na terra brasilis. De um lado, o letrado: advogados, desembargadores, teólogos, filósofos, mestres, missionários, pregadores, eruditos estrangeiros, escritores, poetas, escrivães e homens da administração da Colônia, brancos nascidos na metrópole ou criados nas letras jesuíticas. Quem não entrava nessa lista pertencia ao povo anônimo, sem categorização, mas nem por isso desprovido de adjetivação: a “gente mecânica”, analfabeta, de baixa extração, a ralé ignorante, os asnotes, néscios, idiotas, bestas e mulas de carga, a maioria de brancos degredados ou pessoas na luta pela sobrevivência, trazidas como peças de engrenagem para o povoamento e a geração de riquezas para a exportação, além dos índios, mamelucos e negros, de meia-cidadania ou desprovidos totalmente dela. Dois conjuntos de pessoas que cumpriam o designo estabelecido de antemão pela Coroa portuguesa: a legitimação da colonização, levada a cabo pela necessidade de civilizar os bárbaros, e a manutenção da exploração e da dependência.

Os homens da cultura escrita aparecem diferenciados a todo o tempo do restante inculto, no romance e nas sátiras. Na obra em prosa de Ana Miranda, observa-se mais nitidamente a explicitação da categoria, dividida principalmente entre o direito, o funcionalismo público, a literatura e a teologia: “No outro sobrado vizinho, habitava um letrado”; “Todos os degraus da burocracia judicial, juízes, letrados, escrivães e tabeliães, parecem ter sido cortados do mesmo tecido”; “Desajeitado, o desembargador..., filho de letrado..., formado em direito civil e professor da Universidade de Coimbra..., trazia na axila um livro que escorregava, prestes a cair”. A referência ao magistrado evidencia a formação em Direito como uma espécie de credencial para que alguém se incluísse no rol dos afortunados intelectualmente. O próprio Gregório de Matos fez carreira na área; era advogado, foi juiz, desembargador, procurador e representante da Bahia na Corte: “loquaz, sedutor, um letrado...”. Os religiosos, responsáveis inclusive pela formação dos intelectuais

ibéricos, são igualmente distinguidos: “[O governador] tinha desprezo também pelo jesuíta, com seu ranço retórico e letrado” (MIRANDA, 2006, p. 26; 70; 81; 221; 236). Já na poesia de Matos, o termo letrado aparece com outra sinonímia: ele é o ilustrado, o homem das Letras, doutor, sábio e entendido (2004, p. 42; 84-85; 161; 133).

Entendimento é a palavra-chave em Gregório de Matos, que permite compreender o significado do letramento para alguns elementos da classe dominante do século XVII e suas implicações na construção de representações de mundo de uma elite ilustrada que, desde os tempos da Colônia, se fez detentora dos meios de produção, armazenamento, circulação e publicização da informação.

“Uma só natureza nos foi dada”, diz Gregório de Matos. “Só nos distingue o vício e a virtude”. Num poema em que critica “a ignorância dos homens desta era”, tipificada na figura do “néscio” que zomba dele, poeta, com risos e algazarras, porque “disso não [entende] nada”, ou seja, não sabe falar, satirizar e poetizar, o homem de letras coloca o entendimento como virtude e sua ausência como vício (2004, p. 113).

A palavra entendimento, na literatura seiscentista gregoriana, é sinônimo de saber, e este atributo é prerrogativa do letrado. Enquanto os “pasguates”, os “asnotes” não lhe reverenciam como ele espera que o façam, o poeta se gaba de ser cortejado pelos entendidos. Ele se coloca como mestre e, assim, acredita que tem algo a ensinar num “Brasil empestado”, “terra tão grosseira e crassa”, de “tantas sem-razões” e “barbaridade” (MATOS, 2004, p. 27- 28; 30; 45; 55).

Existe, nos poemas de Matos, uma espécie de ideal, de modelo de letramento, como se desses versos saísse uma cartilha ilustrativa acerca da diferenciação do homem de letras frente à ralé ignorante que enche a cidade – um manual carregado de vaidade e prepotência de quem detém “o entendimento” das coisas, das pessoas, da política e das ideias que fazem o mundo, ao contrário do homem comum imbuído de ignorância. Para diferenciar-se, numa dualidade bem ao gosto e ao modo de ser barrocos, o entendido é aquele que faz uso da razão e se rege pelo pensamento, ao contrário do néscio que inverte os valores: “Quem perde o bem logrado, tem perdido o discurso, a razão, o entendimento: Porque caber não pode em pensamento a esperança de ser restituído” (2004, p. 84; 121).

Para esse letrado, a razão e o pensamento são a medida de todas as coisas e a eles se subordinam a emoção, o sentimento, a intuição e até o prazer. Exemplares dessa concepção são os Vieira Ravasco, personagens do romance de Miranda. O pai da família, Bernardo Ravasco, era secretário de Estado e da Guerra; seu irmão, o Pe. Antonio Vieira, escritor,

educador, filósofo e teólogo renomado no Velho e no Novo Continentes; o filho, Gonçalo, pertencia ao círculo de intelectuais baianos que conspiraram para matar o alcaide Francisco Teles de Menezes. E a Bernardina Ravasco, a filha, só restava lamentar-se de não ter nascido homem, numa sociedade em que a educação formal se limitava aos indivíduos do sexo masculino (MIRANDA, 2006, p. 29).

Uma família cuja força “é a do pensamento e do saber”, da “paixão pelos livros e pela retórica”, “valores e aspirações maiores” que merecem a dedicação de seus membros. Ao invés de inclinar-se a aventuras, um Vieira Ravasco deveria – e isso era colocado como imposição – dedicar-se a “estruturar raciocínios, disputar ideias, criar controvérsias”, pois “a verdadeira luta”, segundo o padre jesuíta, “está nas técnicas de memorização baseadas nos métodos de Quintiliano e Cícero... Vencer é tornar-se convincente nas conversações, saber como levar um assunto adiante”. Gregório de Matos é da mesma opinião. Fisicamente, sente- se “idiota, fraco e delicado”, mas, para compensar, foi “aprimorado em disputas verbais” (MIRANDA, 2006, p. 38; 87).

Figura 2: Vieira, o letrado da empresa colonial

O menosprezo do corpo e da forma física, que chega até a constituir-se numa ideologia de desvalorização do trabalho manual e mecânico, bem condizente com os propósitos da

classe dominante luso-brasileira a serviço da exploração colonial, é mais uma forma antitética barroca que separa as representações de mundo dos letrados das atitudes presentes no restante da população. O homem “dobrado de razão”, segundo Matos, é aquele que diz com “a ideia” e não com o instinto ou a força física, para a qual até se acha debilitado. Essa apologia da abstração é bem condizente com o tipo de mentalidade gerada pela escrita alfabética, ela própria uma abstração por excelência, em que “letras semanticamente sem significado são utilizadas para corresponder a sons semanticamente sem significados” (McLUHAN, 1964, p. 83).

Trata-se de outra mentalidade, uma experiência e um modo de consciência diversos, uma maneira de estruturar o pensamento expressa numa linguagem conceptualista e teórica, no entender de Eric Havelock, oposta ao empirismo ad hoc do mundo oral (1986, p. 15; 29; 40). A mentalidade letrada busca explicação na dissecação do mundo, devidamente separado do contexto original da ação e reação, ou seja, da interação envolvente dos sentidos, para então ser submetido ao pensamento como medida para o entendimento de todas as coisas. Um mundo a ser explicado de maneira clara e lógica, como nas palavras de Vieira: “Apenas os matemáticos puderam achar algumas demonstrações, algumas razões certas e evidentes, quando tudo se explica pela própria coisa” (MIRANDA, 2006, p. 133). Aqui, a função autor no romance nos faz lembrar uma das necessidades do surgimento da tecnologia da escrita, que é a faculdade de calcular. Nos tempos modernos, a palavra “racional” foi automaticamente associada à escrita como tecnologia, como se percebe nas palavras de Matos, em suas sátiras, e nas dos personagens do romance de Miranda. Uma fala desconstruída pela análise lúcida de McLuhan, que localiza historicamente o preconceito em torno dos meios de comunicação que, séculos depois, se fizeram como plataforma de permanência de regimes orais:

“Racional”... há muito tempo tem significado, para o Ocidente, “uniforme, contínuo e sequencial”. Em outras palavras, temos confundido razão com letramento, e racionalismo com uma simples tecnologia. Assim, na era dos meios elétricos, o homem parece ter se tornado irracional na visão convencional do Ocidente (1964, p. 15).

Calcular, observar, analisar, racionalizar, tudo isso sob a rigidez de uma disciplina rigorosa imposta à mente. Num dos diálogos mais interessantes, dos que deixam rastros sobre a presença dos regimes orais e letrados na formação do povo brasileiro, tão bem representados no romance de Ana Miranda, Gregório de Matos, desesperançoso quanto ao progresso do saber na Colônia, encarna o Kohelet hebreu, para quem “na muita sabedoria há muito enfado;

e quem aumenta ciência, aumenta tristeza”11

. O poeta, numa conversa com o rabino Samuel da Fonseca - igualmente douto, “dobrado de razão” e membro, junto com seu filho, do círculo de letrados da Bahia –, no exílio de um engenho do Recôncavo, diz que “o conhecimento é um embuste” na terra de ignorantes. O israelita, contrariando o pessimismo de seu antepassado Salomão e também do contemporâneo Matos, fornece elementos interessantes que permitem compreender as duas faces do conhecimento e das representações de mundo: o conceptualismo letrado e o empirismo oral, segundo a explicação dos “entendidos”:

Não, doutor Gregório. Como disse o filósofo Vieira, o ignorante vê a Lua e acha que é maior do que as estrelas. O sábio distingue o verdadeiro do aparente. É preciso provar que o ar existe, embora o respiremos, é preciso poder calcular as probabilidades, ou que há mesmo um anel de luz em volta de Saturno; é preciso fazer as poéticas experiências dos hemisférios de Magdeburg (MIRANDA, 2006, p. 273).

Um tipo de letramento baseado na dualidade das coisas e das mentalidades e, acima de tudo, na separação. O letrado que aqui se planta, pouco, raro, exótico e ambíguo, sem intelectualidade própria nativista e “fanaticamente identificado seja com a etnia do colonizador português, seja com sua variante luso-jesuítica” (RIBEIRO, D., 2006, p. 120- 122), ocupa um lugar distanciado, de crítico-observador da realidade: Vieira diz que nunca mais sairá de seu refúgio – os livros e a escrita dos sermões; o irmão, Bernardo, na maturidade, pensa em entrar para a Companhia de Jesus, lugar de intelectuais descontentes com o mundo e a terra em que habitam (MIRANDA, 2006, p. 40). Num poema dedicado a seu mecenas, o Conde do Prado, Gregório de Matos, afastado da cidade, numa praia distante, atribui seu isolamento ao “enfado infinito” causado pelos néscios que o rodeiam na Bahia. No refúgio, o poeta é visitado por um lavrador, “sincero, simples e liso, que entra co a boca fechada, e sai co queixo caído” (MATOS, 2004, p. 82-86). O distanciamento que o letrado impõe a si e aos outros é geográfico, cultural e classista. O homem rude não tem nada a lhe acrescentar; só resta ao menos afortunado intelectualmente calar-se diante do ilustrado e admirar sua erudição. Estão posicionados em lugares distintos, divididos por um rio sem uma terceira margem, conforme insiste Bernardo Ravasco com o irmão, o padre Vieira:

“Sou diferente deste mundo, somos diferentes dos homens que habitam esta terra.”

“Não creio que sejamos diferentes. Apenas estamos do outro lado.” “Não, Antonio, somos diferentes. Por isso estamos do lado oposto...” (MIRANDA, 2006, p. 40).

11 Eclesiastes 1:18. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida rev.atual. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, p. 679.

Mas Antonio Vieira, mais tarde, haveria de concordar com a existência desse “lado oposto”, um lugar de isolamento proporcionado pela palavra escrita. O escritor, filósofo e teólogo jesuíta se via “estrangeiro em qualquer terra” e “homiziado em si mesmo” (MIRANDA, 2006, p. 134). A tecnologia do alfabeto, instrumento de construção de uma maneira de ver o mundo e nele se posicionar, contribuiu para que esses primeiros intelectuais do Brasil adquirissem certa liberdade para se desprender de uma comunidade caótica, barulhenta, desordenada, embora tenha sido essa matriz cultural híbrida que, no decorrer da história, deu ao povo brasileiro sua unidade e especificidade, em meio a tanta diversidade. Essa experiência letrada, calcada no individualismo e no isolacionismo, mostra um desejo de ruptura com a tentativa de uma retribalização miscigenada de culturas e consciências que formaram o Brasil no Seiscentos, inevitável à própria configuração do povo e da Nação, conforme se reconheceria mais adiante, na duração histórica.

Novamente, estilo de colonização e estética literária se cotizam para definir uma mentalidade letrada nascente. Assim, Vieira e Matos, brancos, ilustrados, a serviço da máquina mercantilista lusófona, embora muitas vezes críticos da situação colonial, são dois indivíduos que construíram para si próprios um ideal de representação que somente lhes fazia sentido pela observação distanciada da sociedade com a qual tiveram que se deparar. A tônica que envolvia a classe letrada parca e dispersa, que ainda não constituía um sistema intelectual, residiria tanto na criticidade quanto no desenraizamento que, na visão de Luiz Costa Lima, é “a sensação de estar no lugar errado”, esse desconforto tantas vezes expresso nas palavras do padre e do poeta. Nossa intelectualidade nascente ainda é repetidora de padrões europeus, a serviço de uma cultura – entendida aqui como produção letrada - que “se impôs de cima, como parte de uma política de terra arrasada [e] se fez privilégio do branco” (1981, p. 4), em detrimento de uma alteridade diferenciada por classe, etnia, raça e práticas sociais. Num poema bem ilustrativo do inconformismo de Matos para com a exploração colonial, o escritor deixa entender o não-lugar em que habita, de onde percebe o mundo em volta: “Entretanto eu sem abrigo, e o povo todo faminto” (2004, p. 117) – expressão poética perfeitamente inteligível sob o raciocínio lúcido de Costa Lima: “Somos críticos quanto ao que vemos em torno, não porque o visto não seja criticável, mas porque nos sentimos com direito a viver noutro lugar” (1981, p. 5). Essa estética, compreendida no campo do embate de civilizações, presente no que Darcy Ribeiro chamou de estilo barroco, é para Eric Havelock - ele também um intelectual de uma colônia do Novo Continente – uma “colisão transcultural”, que se deu, de um lado, no nível pessoal e social, “quando as armas de fogo dos invasores confrontaram

os arcos e flechas dos invadidos” e, num segundo momento, na colisão ideológica, porque envolveu a escrita alfabética como tecnologia de conquista e de consciência (HAVELOCK, 1986, p. 35).

Uma tecnologia sacralizada pelos poucos que a detêm e dela fazem uso. No trecho de um soneto em que, a exemplo de Camões, o poeta canta as façanhas dos Lusíadas, ele explica que o faz não a partir de “ideia sonhada”, mas de uma “escritura sagrada”, matriz desses primores “que em prosa os compôs Vieira, traduziu em versos Matos”. A literatura só ganha legitimidade como representação de mundo porque se serve dessa tecnologia capaz de produzir “santos escritores: se não alego doutores” (MATOS, 2004, p. 132-133).