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Dom João reina, mas não governa: os senhores do Rio são os mestres da oralidade

Os mesmos sentidos humanos que asseguram a existência são também determinantes na organização da sociedade, suas instituições, agentes e lugares de fala. No romance de Almeida, uma personagem se destaca por aglutinar ao redor indivíduos que desempenham papel de grande valor na configuração de um sistema de comunicação oralizado, no Rio de Janeiro do tempo do rei: Dona Maria, a portuguesa abastada, chefe de um clã de agregados no mínimo inusitado aos olhos contemporâneos. Cuida de Luisinha, a sobrinha, rege um “batalhão de crias”, que saem com a ama em séquito pelas ruas a apurar informações e disseminar intrigas, tem o próprio mestre de reza e uma espécie de advogado para cuidar da parte escrita das demandas judiciais, com que preenche o tempo de conversas e lhes imprime conteúdo. A “rainha de Sabá” da época em que o Rio ganhou ares de nobreza, se não é protagonista do romance, pelo menos o é da sociedade de informação baseada principalmente nas trocas orais30.

As negrinhas de Dona Maria, como quaisquer escravos, não têm nome e seu lugar de fala é conjunto: cochicham, mandam recados, acompanham a dona e recebem disciplina, correção e surra “por atacado”. Provenientes de um mundo tribal a que se sujeitaram, dentre outros motivos, pela proibição de ascender à condição minimamente letrada, os escravos são considerados um grupo perigoso e que necessita ser vigiado o tempo todo. Criados pelos senhores, como bem ilustra a construção literária da personagem de Manuel Antonio de Almeida, muitos já detinham uma “fala aportuguesada” e não estavam restritos apenas aos dialetos africanos. O domínio da língua do colonizador já os instrumentalizava para a inserção na sociedade de informação, até porque tinham boca e ouvido, um corpo que se movimentava e entendiam a gramática da linguagem e do pensamento oralizados. Na “maior concentração urbana de escravos existente no mundo desde o final do Império romano”, que era o Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, a força motriz das cozinhas, dos estabelecimentos comerciais, do porto, do Paço e da Quinta, do transporte público e particular, por “entranhar

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A noção de informação, utilizada para definir um sistema de produção, estocagem e circulação de histórias, ideias, valores e representações de mundo, será explorada mais adiante em análise das configurações narrativas.

os lares, no âmago da vida privada” e circular pelos espaços da cidade em ebulição, mas principalmente por falar e ouvir, tornava-se “elemento de instabilidade que carecia ser estritamente controlado” (ALENCASTRO, 1997, p. 18; 24; 32). Uma ameaça constante da qual nem mesmo a Corte escapava: “Por futricas dos escravos, todos sabiam que Miguel [o irmão mais novo de Dom Pedro] era filho do Manel, jardineiro da Quinta do Ramalhão, perto de Sintra, onde Carlota passava a maior parte do tempo” (CASTRO, 2007, p. 79).

Quando a fala ganha autoridade e confere uma posição de destaque ao intérprete que a detém, esse agente da palavra acaba virando uma instituição, entendida, aqui, como uma forma básica e organizada do tecido social. Pelo menos é essa a palavra empregada por Almeida para nomear o mestre de reza, uma das “instituições [grifo do escritor] muito curiosas no Rio de Janeiro” do tempo do rei. Conta o autor que tais mestres eram “sempre velhos e cegos” e “andavam pelas casas a ensinar a rezar aos filhos, crias e escravos de ambos os sexos”. O ensino era oral, como o dos mestres de escola, até porque a inoperância de um dos sentidos no corpo e a ausência da imagem teriam que ser compensados pela fala, a audição e o tato. As aulas se baseavam na repetição exaustiva de orações cantadas em coro, tinham periodicidade, regularidade, com hora para começar e terminar. Mas os mestres de reza, metáfora antecipada do rádio, que “viviam em grande atividade”, não restringiam a diligência à pedagogia da igreja e sua dureza materializada também no uso da palmatória; eram também emissários, repórteres orais, “medianeiros” entre um e outro autor da fala. Faziam um circuito de comunicação entre as casas que atendiam, ao levar o que ouviam de um canto a outro da cidade e se posicionarem como embaixadores de uma causa que porventura lhes tivesse sido confiada: “Se o devoto”, disse a comadre, “como é homem que muito gira por toda esta cidade, souber por aí notícias de meu afilhado Leonardo, queira vir dar-me parte”. O mestre de reza é uma das peças ilustrativas desse circuito que Robert Darnton define como “o fluxo de informação pelo interior de um sistema social”. É também um meio que a sociedade oralizada da época encontrou para buscar, reunir, armazenar e divulgar itens noticiosos e narrativos (2005, p. 41; 51). As informações por ele repassadas produziam ação no mundo, e um exemplo disso é que, entendedor profundo dos “arranjos” da narrativa, o velho se consolidara como um “bom arranjador de casamentos”. A ideia de mediação, constante no romance de Almeida, que dialoga com a noção de circuito de comunicação, está presente na atitude das personagens de, chamados ou não a uma conversa, posicionarem-se como intermediários, a exemplo do mestre de reza e da própria Dona Maria que, certa feita, percebendo a fúria de um dos participantes de uma discussão, “fez-se

medianeira” para acalmar os ânimos dos falantes (ALMEIDA, 2005, p. 94; 135-137; 158- 161).

O trabalho de mediação, também considerado como um modo de produção da vida material e devidamente historicizado no contexto da sociedade fluminense do início do Oitocentos, ganha, então, contornos específicos. Mediar implica, por assim dizer, as seguintes variáveis: Primeiro, a existência de uma alteridade, de um outro do discurso e da prática sociais como aquele a quem se destina a mensagem e de quem se obtêm informações e narrativas de vida; depois, é preciso considerar as idéias de tempo e movimento que a noção de fluxo abrange, afinal, mediar é mover-se como sujeito e também fazer circular alguma coisa, no espaço e no tríplice presente - o presente do passado, a memória; o presente do presente, a atenção; e o presente do futuro, a expectativa – momentos coincidentes no ato de tessitura de qualquer intriga (RICOEUR, 1983); este movimento é impulsionado pela

confiabilidade e pela transferência de responsabilidade no trato narrativo da experiência, ou

seja, uma espécie de credenciamento para a configuração de histórias, a partir das escolhas em cima de um mundo igualmente dado a narrar e seu retorno à realidade material como produto da imaginação criadora do homem. Faz-se necessária, ainda, uma materialidade da mediação, que, no caso das instituições oralizadas da época, encontra-se no corpo - e principalmente na voz - dos agentes da comunicação e no produto de seu trabalho: as conversas, conferências e demais ritos de fala, presentes no dia-a-dia das gentes de ofício; as cerimônias sociais, religiosas e políticas, que vão do púlpito da igreja e das procissões nas ruas ao beija-mão no Paço; e, por último, mas não por fim, as aulas itinerantes dos mestres de reza e as lições fixas dos mestres de escola, para citar apenas alguns dos suportes materiais ou meios utilizados por essa grande comunidade para dar sentido à existência.

Inseridas no complexo da comunicação oralizada do tempo de el-rei, as escolas são lugares de mediações próprias de uma cultura auditiva, que atravessou os séculos desde Gregório de Matos e ainda insiste em nos perseguir31. O cenário de uma dessas casas particulares de aprendizagem, que Almeida reconstrói no romance, lembra um quadro de

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O termo “cultura auditiva”, utilizado por Luiz Costa Lima e explicitado no capítulo anterior, embora se relacione de alguma maneira à oralidade, tem mais a ver com um antiteoricismo da formação intelectual brasileira, de base retórica, colonialista e causadora de impressões e sensações, do que com a “racionalidade” e o modo de processamento da informação próprios da mentalidade oral ou oralizada. Nosso pensamento vai de encontro ao do autor de Dispersa Demanda, quando ele parece reconhecer que os tais “progressos” trazidos por Dom João VI não conseguiram grandes transformações na herança cultural auditivo-jesuítica, talvez por faltar uma estrutura de sentimento que favorecesse o letramento da sociedade associado ao livro como suporte, em escala significativa. Diz Costa Lima que “muito menos se poderia pensar que a chegada da corte houvesse, sequer indiretamente, habituado um maior número de leitores à prática da consulta aos livros. Nos mais diferentes pontos do país, os mais diversos viajantes são unânimes em acentuar o descaso em que acham as raras bibliotecas ou a nenhuma frequência a elas”. Cf. COSTA LIMA, op.cit., p.6.

programa humorístico radiofônico da década de 1940 que a televisão absorveu e hoje é provável que componha o menu do desesperador domingo audiovisualizado.

A casa é “pequena e escura” e muitos pedagogos diriam, com certeza, que o ambiente em nada lembra uma escola. O breu do cômodo de ensinar já é um indício de que ali se requer mais o ouvido do que o olho para a busca e transmissão do conhecimento. A escola é uma câmara sonora: os alunos se instruem (ou não) em meio à cantiga dos passarinhos, a tabuada também é cantada e os pupilos gostam de aprender pelo canto que, para o autor do romance, é “monótono e insuportável”. A audiência é comparada a uma orquestra, regida por um professor com ouvido apurado e alerta, perspicaz na identificação dos erros advindos do desvio melódico e cognitivo. O aprendizado das primeiras letras e das operações matemáticas básicas é lento, pausado e sofrível, da mesma maneira custosa com que a outra instituição – a do mestre de reza – tenta levar a cabo a tarefa de ensinar pela repetição musicada. O treinamento, ou melhor, a arte de “desasnar”, essencial para “arranjar-se” na vida, ainda que sob ritmo e compasso da palavra entoada, é árduo e requer artifícios mnemônicos ligados à música (ALMEIDA, 2005, p. 27-28; 51-53; 66-68; 158), como prova de que um Homero – esse filho privilegiado de Mnemosina - é um ser que se faz e que se aprende; ele é técnica e prática social, natureza e cultura indissociáveis. Entre o povo comum, poucos são os que têm sucesso na escola e, se mais tarde não conseguem ganhar dinheiro ou um lugar na sociedade, que são o principal objetivo do ensino na cultura auditiva da época, pelo menos podem sair-se bem na retórica e, quem sabe, chegar um dia à Meca dos povos colonizados pelos Lusíadas. Assim pondera o barbeiro sobre o futuro do afilhado, depois de a personagem “dar uma aula” sobre o menosprezo com que tanto o trabalho manual quanto o letramento atrelado às leis e à burocracia são vistos pela gente de ofício:

Seria talvez bom mandá-lo ao estudo... porém para que diabo serve o estudo? Verdade é que ele parece ter boa memória, e eu podia mais para diante mandá-lo para Coimbra... Mas também que diabo se fará ele em Coimbra? Licenciado não: é mau ofício; letrado? Era bom... sim, letrado... mas não; não, tenho zanga a quem me lida com papéis e demandas (ALMEIDA, 2005, p. 27-28) .

Na esteira dos meios e mediações que formam o circuito de comunicação do Rio de Janeiro pós 1808, Dona Maria, vidrada nas tais demandas e “que morria por conversas”, é uma espécie de chefe de reportagem da mídia oral. Além das negrinhas escravas de recado e do próprio mestre de reza, tinha também à disposição um “letrado” só seu. Guardião da palavra escrita, ele era o especialista ligado à função do Direito que relatava para ela as causas

e cuidava dos trâmites burocráticos, numa instância que não era a das ruas onde ela caminhava em comitiva e tratava dos trâmites orais das demandas, das quais tomava conhecimento pelo ouvir e que depois cuidava de disseminar nas conversas e embaixadas que empreendia. Embora pudesse ler cartas e soubesse “todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo” de modo que nem mesmo os procuradores a conseguiam enganar (ALMEIDA, 2005, p. 92-94; 177; 229), a presença do letrado particular sugere que esses termos lhe haviam sido traduzidos ou explicados de antemão, talvez porque seu grau de letramento não lhe permitisse aventurar-se mais a fundo num tipo de escrita que não permeava as práticas cotidianas e, por isso, carecia de mediação. Essa escrita que atravessa os regimes orais acaba se transformando numa outra narrativa que, só depois de ser organizada numa textualidade sonora e gestual, pode circular pela cidade. Afinal, não é só Dona Maria que morre por notícias.

Na tentativa de juntar-se aos agregados da casa e casar-se com a sobrinha da portuguesa, aparece José Manuel, a personagem que Almeida toma como representativa do Rio de Janeiro da época. É o novo comensal de Dona Maria que vai, também, utilizar-se do mestre de reza como espião e informante, para saber o que se passa na casa, nos momentos em que não está fazendo a corte à menina. A descrição que lhe faz o autor é bastante reveladora da estrutura de sentimento construída por uma maneira de pensar e agir e pelos valores e representações de mundo atrelados à oralidade de um sistema de comunicação emergente:

Entre todas as suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência. José Manuel era uma crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias. Debaixo do mais fútil pretexto tomava a palavra, e enfiava um discurso de duas horas sobre a vida de fulano ou de beltrano (2005, p. 110-111).

O ontem e o hoje do autor, na citação, correspondem ao trabalho de memória que empreende na reconstrução de um tempo e um lugar. A caracterização de José Manuel é uma das poucas ocasiões em que Almeida se ressente da época anterior à escritura do romance - que sairia em folhetim nos anos de 1852 e 1853 - e da qual carrega uma nostalgia permanente. Abstraindo-se a carga negativa da palavra maledicência, a função estereotípica que assume a personagem desvenda um modus faciendi de narrar a própria existência e de construir a

realidade material que tem na fala a razão de ser e estar no mundo. O maledicente é, antes de tudo, um dizente, alguém que se faz pela palavra falada, acompanhada do rico sensório humano, e que com ela também configura a experiência. A “crônica viva” do Rio do início do Oitocentos era também o dono de um repertório rico e variado e de uma habilidade de “contar uma história com todos os detalhes” (ALMEIDA, 2005, p. 114-115).

Ora, se “a linguagem é pura e simplesmente a essência espiritual32

do homem” e se a essência da linguagem, como diz Benjamin, está naquilo que no espírito humano é comunicável, ou seja, se este espírito encontra sentido na existência pelo ato de comunicação em palavras, quando dá nome aos outros seres e coisas, à semelhança do processo divino de criação pelo verbo (BENJAMIN, 1992c, p. 30-49), José Manuel é a dimensão potencializada do ser que somente produz sentido à existência própria e alheia na linguagem e no ato de falar. O povo comum sabe disso e daí vem a avidez por histórias contadas pela materialidade da voz de um corpo que também comunica. O que o sistema de comunicação oralizada do Rio de Janeiro do início do século XIX pode revelar é, mais uma vez, uma estrutura de sentimento que explica o porquê de nossa gente, na contemporaneidade, desejar e se prender tanto às narrativas produzidas em plataformas de permanência da oralidade. Quando o acidente que causa a morte de um ídolo da mais importante corrida de carros ou a via-crúcis de um líder nacional que encarnava o retorno à vida democrática são narrados à exaustão pelos meios elétrico-eletrônicos da modernidade, a indagação sobre o que faz a audiência se fixar nas materialidades da comunicação por horas a fio é menos a manipulação do tempo e das mentes pela “entidade midiática” do que a sede de contar histórias e ouvi-las; como se no ato de narrar, em que se incluem o agir e o padecer da grande História, se devesse e se desejasse buscar a ordenação e o sentido para o caos da existência humana.

Assim era a cidade que el-rei encontrou: falante pelos cotovelos, artista da tessitura de narrativas oralizadas e não menos hábil em fazê-las circular. Nas palavras de Almeida, para quem a personagem de José Manuel era uma crônica “não só de todos os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias”, está presente, ainda, a ideia de uma incipiente rede de

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O termo espiritual, que no original alemão é expresso pelo adjetivo geistig, tem um sentido mais totalizante do que aquilo que se refere apenas à parte humana do ser que se relaciona com o transcendente. Geistig significa, portanto, espiritual, mental, anímico e intelectual ao mesmo tempo, respeitadas as variações no contexto do uso da palavra, é claro. Cf. Langenscheidts Tachenwörterbuch der portugiesischen und der deutschen Sprache. Berlin u. München: Langenscheidt KG, 1990, p. 837.

comunicação formada sobretudo nos laços de conhecimento, parentesco e compadrio que compunham a cidade33.

A nova metrópole nascia pequena, porém vibrante. Vibrante como Teotônio, o bardo, o menestrel, o profissional das habilidades orais, guardião da fala e do gesto, que garante a animação nas cerimônias públicas e privadas da cidade. “De jaqueta branca e chapéu de palha”, ele é o protótipo do bicheiro e do malandro carioca, figuras posteriores das tais “espirituosas sociedades” do Rio. Teotônio, como mais um dos braços da mídia oral, conhece a gramática dessa modalidade de comunicação: suas performances obedecem a uma ordem de apresentação e são divididas em blocos. Num “script” memorizado, organiza em sequencia a viola, o canto, a dança do fado, a imitação da “língua de negro”, os arremedos, as adivinhações e, para encerrar o rol das habilidades, “tendo já esgotado todas elas, ia recorrer à última, que era a das caretas”. O programa de variedades circula nas reuniões das gentes de ofício, entretém a audiência e conquista o primeiro lugar no “ibope”: “Quem dava uma súcia em sua casa, e queria ter grande roda e boa companhia, bastava somente anunciar aos convidados que o Teotônio se acharia presente” (ALMEIDA, 2005, p. 209-215).

A existência de um repertório organizado e variado, em que se inserem diversos números, gêneros e formatos, aponta para a compreensão da necessidade de uma estrutura do espetáculo, que ao mesmo tempo se repete e se abre ao improviso, para atingir um fim proposto e negociado anteriormente, qual seja, o de entreter uma audiência que requisitou a presença do intérprete e da obra que o acompanha. No trecho descrito acima, Teotônio parece lembrar de mais uma atração, a das “caretas”, depois de ter achado que esgotara todas as suas competências. O espetáculo só faz sentido porque é calcado na presença física de Teotônio, no seu corpo que é o suporte da informação que vem pela música, o canto, a dança, a mímica e o diálogo, capaz de se transmutar ainda em várias personagens, de incorporá-las e delas se despir em seguida, segundo as expectativas do público que acaba moldando o roteiro memorizado que serve de base à apresentação. Aqui se encontra o princípio mesmo da performance oral: a adaptabilidade às circunstâncias, ao momento da interação do intérprete com a audiência, da comunicação que só faz sentido no grupo, no conjunto, na reunião. Teotônio é o “elocutor concreto” de Paul Zumthor (1993, p. 71), que não fala apenas com a

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Asa Briggs e Peter Burke remetem o uso das palavras „rede‟ e „web‟ ao século XIX, provavelmente no hemisfério norte, indicando que os termos não são uma invenção da sociedade em rede que surge com o advento e a crescente popularização da internet, na segunda metade do século posterior. Cf. BRIGGS, Asa e BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 17. Tentaremos exemplificar, mais adiante, como o sistema oralizado de comunicação do Rio de Janeiro do início do Oitocentos pode incorporar essa ideia.

voz, mas com todo o corpo, sustentáculo da situação de performance e de um ambiente de comunicação que tem relação com o mundo também concreto que existe a sua volta. A dança do fado e o arremedo da língua de negro, por exemplo, sinalizam o diálogo com a realidade cotidiana de um Rio de Janeiro inundado por portugueses já instalados ali e outros tantos recém chegados com a transferência da Corte e de uma capital majoritariamente negra do