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Nos traços da cidade o risco das letras

Uma estrutura que teve como modelo arquitetônico e intelectual a Paris da segunda metade do século XIX, tempo em que Pereira Passos, um engenheiro de trilhos e ruas, visitou a capital europeia e ali assistiu às reformas urbanas promovidas pelo “artista demolidor”, o Barão Haussmann. Com meio século de atraso, a metrópole burguesa dos trópicos tentaria imitar a capital francesa e, das pranchas dos “estetas urbanos”, como foram chamados pejorativamente por Lima Barreto os arquitetos diplomados engajados na Regeneração do prefeito Passos (2004, p. 98), nasce outra linguagem para a cidade: a da inteligência letrada. De todos os canteiros de obras – e não eram poucos – brota uma geografia diferente e, com ela, uma lógica distinta de perceber o espaço, o tempo e a dinâmica social. Em termos mcluhanianos, a abertura da Avenida Central é a gestação de um novo medium. Nas palavras do flâneur Olavo Bilac, que caminha pelo boulevard no dia de sua inauguração, é a “reforma material da cidade” que vai operar na população uma “revolução moral e intelectual”. A “inteligência nativa” da “simples e rude gente” seria remexida pelo que a cidade dava a ler com sua nova arquitetura, e uma transformação sensorial iria, pelo bem da civilização, instruir o povo comum: “A melhor educação é a que entra pelos olhos”, disse o poeta enquanto ouvia as conversas nas ruas dos que estudavam com o olhar atento a grande mudança no cenário urbano (BILAC, 2005, p. 173).

As cidades desenvolvem suntuosamente uma linguagem mediante duas redes diferentes e superpostas: a física, que o visitante comum percorre até perder- se na sua multiplicidade e fragmentação, e a simbólica, que a ordena e interpreta, ainda que somente para aqueles espíritos afins, capazes de ler como significações o que não são nada mais que significantes sensíveis para os demais, e, graças a essa leitura, reconstruir a ordem. Há um labirinto das ruas que só a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem (RAMA, 1985, p. 53).

Bilac era um habitué de Paris. Na cidade-monumento, erigida para ser contemplada, o escritor “levava um livro debaixo do braço” enquanto caminhava e observava em perspectiva, com “o olhar de quem vê tudo reduzido, ar de quem sempre olha para longe” (MIRANDA, 1995, p. 12; 63; 91). E na nova metrópole brasileira, o decalque e a extensão da matriz europeia, não haveria de ser diferente. O que Pereira Passos e Bilac viram e vivenciaram em Paris, em suas viagens, foi uma cidade estruturada na lógica das tecnologias da escrita e da impressão e nos modos de representação delas originados, ou seja, uma rede física e concreta

de prédios, ruas, avenidas e monumentos carregados de símbolos e sinais que apontam a um ordenamento do mundo típico de mentes letradas.

A “capital do século XIX” era uma cidade “lisa e ordenada”, para fazer fluir a circulação de pessoas e suas máquinas de transportar, que exigiram uma geografia diferente daquela que as sufocara desde os tempos medievais. Por todo o lado, a busca de simetria e de equilíbrio entre norte e sul, leste e oeste, marcou o planejamento da nova metrópole europeia. As grandes percées, as aberturas que possibilitaram a passagem e a perspectiva em linha reta prolongada, assimilavam-se ao movimento da impressão de tipos móveis que fizeram surgir, ali, já nessa época, uma comunicação de massa. As vias de circulação ganhavam regularidade e ordenamento e, com elas, os edifícios que a acompanhavam. Num projeto urbanístico geométrico, “o respeito pela proporção é a regra para todos os espaços públicos” e torna-se imperativo facilitar o deslocamento da multidão. Há uma regra em Paris, uma obrigação regulamentar: “Um prédio só é concluído quando estiver integrado à cadeia ininterrupta de fachadas. Os prédios parisienses só adquirem sentido quando apertados uns contra os outros, como livros numa biblioteca”. Ou ainda, iguais às letras em sequencia na página impressa que, como se não bastasse a abstração do alfabeto que convencionalmente as conecta a determinados sons, precisam se unir para dar sentido ao todo da frase, “os edifícios podem ter sua personalidade, sua cara, mas não podem sair da fila, [da série], nem escapar ao ordenamento geral da cidade” (NEUMANN, 2009). Precisam ser bem talhados e aparentarem o mesmo tamanho, como o material do tipógrafo para compor a página: a cornija lhes limita a altura e dá ao olhar do transeunte a impressão de regularidade, continuidade e homogeneidade, também para lembrar que, na nova hierarquia do espaço, a rua tem prioridade. A capital do mundo no Oitocentos ganha abstração e simbolismo.

O Rio não fica atrás, apesar de um trabalho de modernização na base do que Lima Barreto chamou de “improviso catita” da “megalomania dos melhoramentos apressados, dos palácios e das avenidas” (BARRETO, 2004, p. 100; BARRETO apud SEVCENKO, 2003, p. 20). Um Bilac, bem mais integrado, não poupa elogios à “região de sonhos” que se descortinava a seus olhos, ao observar “uma boa avenida” dotada de simetria, rigor e elegância (2005, p. 172; 227). Mas, tanto lá quanto cá, a transformação do espaço público foi acompanhada de mudanças também “do modo de vida e da mentalidade carioca, segundo padrões totalmente originais” (SEVCENKO, 2003, p. 43). A mesma superfície corrediça dos prédios parisienses foi observada pelo escritor mulato brasileiro nos edifícios de “fachada lisa e monótona” da Avenida Central. Lima critica ironicamente a incoerência da simetria forçada

numa cidade de relevo acidentado: “o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas” (BARRETO, 2004, p. 99). Não estaria a modernidade construída à força pelos homens de letras infringindo um alinhamento, uma uniformidade e um sentido de continuidade da lógica das palavras escrita e impressa numa geografia humana e social há séculos construída numa paisagem comunicacional heterogênea, que mais obedece às curvaturas e assimetrias do som e do gesto?

É interessante observar como as mudanças na paisagem urbana, tanto na concepção do espaço público quanto na das novas edificações que o compõem, vão dialogar com um tipo de mentalidade e maneira de se situar no mundo e de representá-lo, ligada aos regimes de processamento da informação, a oralidade e a cultura escrita. No tempo do rei, a arquitetura colonial-imperial era comandada pela figura do mestre-de-obras, o “elemento popular e responsável por praticamente toda a edificação urbana” (SEVCENKO, 2003, p. 44), posterior e severamente criticado por Olavo Bilac, que lhes atribui a criação de “verdadeiras monstruosidades arquitetônicas” no período que antecedeu à República. Bilac, com o olhar abstrato, ordenado e linear do letramento, sublinha a “incapacidade” desses antigos construtores e vê com o desdém de um espírito ilustrado a adoção de formas arquitetônicas que chamou de “irracionais” e inadequadas à cidade, erigidas sem “leis rigorosas para as construções”. Bilac desqualifica o mestre-de-obras como um profissional “pé-de-boi, nada amigo de novidades, aferrado às tradições – e desprovido de diploma” (2005, p. 225-229). A capital do império, onde antes habitava uma sociedade tradicional e as práticas de comunicação eram mais do que nunca calcadas na oralidade, se posicionava, portanto, num “espaço não-pictórico [não-visual], em que cada coisa simplesmente ressoa ou modula seu próprio espaço”. Os prédios desordenados, as ruas estreitas desprovidas de alinhamento, em um miolo urbano que mistura todo tipo de gente inserida numa comunicação em rede horizontal e igualmente não-linear, facilitavam o contato humano, o contínuo esbarrar-se, os encontros, as patuscadas, o “interagir dos sentidos numa sinestesia tátil” (McLUHAN, 1962, p. 16-17); enfim, tipificavam a vida num mundo “descentrado, horizontal e ambivalente que entra em conflito radical com a nova imagem de mundo que esboça a razão: vertical, uniforme e centralizado” (BARBERO, 2001, p. 144). A abstração na concepção do espaço e sua ligação com a mentalidade letrada é um tema explorado por McLuhan quando analisa as mudanças no sensório humano perpassado pelas tecnologias da escrita e da impressão.

Longe de ser um modo normal de visão humana, a perspectiva tridimensional é uma maneira de ver adquirida convencionalmente, assim

como as técnicas de reconhecimento das letras do alfabeto, ou da narrativa cronológica e sequencial (McLUHAN, 1962, p. 16).

A tentativa de racionalizar a nova urbe que nascia como a manifestação mais evidente do processo civilizatório idealizado pela elite dirigente letrada, tanto em Paris quanto no Rio de Janeiro, vai conceber o espaço urbano e uma forma arquitetônica que chamam ao redirecionamento do olhar, a partir de um ponto “parado”, o mesmo ponto de vista visual fixo exigido pela abstração da leitura e da decifração dos caracteres escritos ou impressos. Não é à toa que os responsáveis pela reconstrução da nova cidade com pretensões à la parisienne eram detentores de diplomas acadêmicos, planejavam e executavam suas obras segundo “leis rigorosas”, ou seja, eram orientados pelo que fora sistematizado pela escrita para organizar a sociedade e disciplinar os usos do tempo e do espaço.

Bilac, tal como o “homem da multidão” de Edgar Allan Poe e o flâneur benjaminiano que circula sem obstáculos pela multidão no dia da inauguração da Avenida Central, é o indivíduo que, numa relação ambígua com o fluxo humano, ao mesmo tempo se mistura e se separa dele, o que lhe permite admirar de longe a obra-símbolo da nova cidade das letras. Afeito à “arte do olhar”, que para ele e para tantos outros havia se tornado uma necessidade, o poeta se isola em mais uma de suas “experiências óticas, como aquelas provocadas tanto pelas seções publicitárias de um jornal quanto pela circulação em uma grande cidade” (BENJAMIN, 2000, p. 360-361), e volta-se para admirar a Avenida. Esse entusiasmo difere da percepção de Lima Barreto, que enxerga na grande via “elegâncias idioticamente binoculares”. A crítica de Lima Barreto às avenidas e boulevards, que nasceram das pranchetas dos arquitetos diplomados e não foram concebidas pela tradição de gente do ofício, é bem ilustrativa da mudança sensorial que os novos urbanistas imprimiram. As vias de circulação que ora se destinam aos dois olhos (“binoculares”) e onde existe foco com profundidade de campo, mostram uma cidade para a circulação e a contemplação, também nos trópicos. Numa crônica em que condena a destruição do Convento da Ajuda, o escritor- jornalista critica a mutilação infringida ao centro urbano no que chamou de “funil elegante”: o trecho ocupado pelo Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Clube Militar e a Escola de Belas Artes. O Convento, obra da Colônia e, portanto, do tempo das tradições, ficou fora do eixo do boulevar e deve ser “mutilado”; afinal, o tubo do funil que deságua na Baía de Guanabara precisa fechar, em grande estilo, a perspectiva da Avenida (BARRETO, 2004, p. 98; 166).

“No espaço da cidade, tudo se torna um signo”. O plano-cortado no ângulo de esquina dos edifícios de Paris é “um elemento de escritura” (NEUMANN, 2009): talha-se um pedaço do prédio e reafirma-se a primazia das vias de circulação. Na capital da República brasileira, não foi diferente. Entre o Largo de São Francisco e a Rua Sete de Setembro, o “maior estabelecimento varejista no Rio de Janeiro”, a “casa modelo no comércio de tecidos, modas e confecções diversas, [precursora] do sistema de preços fixos” (COHEN e GORBERG, 2007, p. 40-41), ocupava todo um quarteirão e ostentava uma fachada de plano-cortado com uma espécie de torre no ângulo de esquina. Au Parc Royal traduzia, no estilo de construção e no nome, a forma e os valores de um espaço urbano arquitetado no molde francês. A língua de Molière, estampada na fachada desse edifício, se estendia a tudo o que dizia respeito às sociabilidades: à denominação de lugares públicos e estabelecimentos privados (o cais

Pharoux, a Garnier, o Petit Trianon, a Cailteau), às atividades sociais (um bal masqué num

palacete burguês), à descrição física das pessoas (“Esther tinha um corpo espúmeo de ambrosia frappée”), à adjetivação de objetos e lugares (uma “barbearia fin-de-siècle”), à nomeação de doenças (“Pobre papai, vítima de surmenage”), e o que não dizer da moda e dos produtos que chegavam da bela e civilizada Paris (MIRANDA, 1995, p.65; 67; 167-8; 171; 276).