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A minha relação com a Balada da Praia dos Cães é muito anterior à escrita do livro. É mesmo anterior à minha (irreversível) amizade com o José Cardoso Pires. Explico: em 1958, depois das nefastas sequelas da campanha eleitoral do General Humberto Delgado, encontrei-me em desesperos que se desejavam revolucionários num grupo de jovens – ao tempo, inusitadamente, de ambos os sexos – que partilhavam a mesma frustração suicida. O que então aconteceu e não aconteceu já foi con- tado e não é uma história para aqui. Mas vem a propósito mencionar que um dos que nesse tempo esteve connosco se veio tornar persona- gem literária da Balada, metamorfoseado no “arquiteto Fontenova”. O qual, comenta José Cardoso Pires na sua Nota Final ao romance, datada de Setembro de 1982, tal como os outros personagens, é uma ficção “dissertada” de uma figura real. E conclui:

De modo que entre o facto e a ficção há distanciamentos e apro- ximações a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo au- tónomo e numa confluência conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência.

Recordo a “figura real” do futuramente “dissertado” arquiteto Fon- tenova como a de um visionário voluntarioso, a insistir em acções ar- madas que, mesmo aos vinte e poucos anos, nos pareciam desesperada- mente insensatas. Digo mesmo, dementes. Mas o José Cardoso Pires talvez o tenha entendido melhor do que eu então teria podido entendê- -lo quando cita, como factualmente acontecida no verão de 1980, uma conversa em que o fictício arquiteto teria dito:

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“Eu creio que o medo é uma forma dramática de solidão. Uma forma-limite também, porque corresponde à ruptura do equilí- brio do indivíduo com aquilo que lhe é exterior. Mas o pior é que essa ruptura acaba por criar uma lógica de defesa, eu pelo menos apercebi-me disso, a lógica do medo vai estabelecendo certas relações alienadas de valores até que um ponto em que se sente que o medo se torna assassino.”

Sim, agora também reconheço esse medo assassino como sendo uma outra face da frustração suicida que partilhámos em 1958.

Dessa vez os acontecimentos que não aconteceram – “leitor que não te habituas a que não aconteça nada” já tinha dito o Alexandre O’Neill como um aviso aos incautos – resultou em futuros diferentes para cada um de nós. Alguns difíceis, com torturas e prisões reais, e todos eles a seu modo complicados.

O meu iria ser em Londres onde, depois de várias andanças mais ou menos precárias, acabei por ter uma carreira académica no King’s Col- lege, onde reencontrei o José Cardoso Pires como Professor Visitante e aonde ele depois regressou como Escritor Residente.

A certa altura surgiu a oportunidade de a Balada da Praia do Cães ser publicada na Inglaterra. Sabemos como é difícil, apenas 3% das obras literárias publicadas neste país foram escritas noutras línguas. Um Prix Goncourt não garante tradução. Não foi portanto apenas pela inegável qualidade do livro nem pelo Grande Prémio do Romance da Associação Portuguesa de Escritores que uma boa editora inglesa, a Dent, decidiu publicá-lo. Mais relevante terá sido que, em 1986, Portu- gal ainda não voltara para as brumas da memória e que essa “disserta- ção sobre um crime” teria podido ajudar a entender melhor o país que havia sido o segredo mais bem guardado da Europa, “Europe’s Best Kept Secret” do anúncio turístico usado como irónica metáfora logo na primeira página do livro.

O susto causado pelo “Verão Quente” de 1975 tinha sido grande. A invasão de Portugal por tropas da OTAN, recomendada pelo dúbio Dr. Henry Kissinger, só não foi avante graças à intervenção pessoal do

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não menos dúbio, mas melhor informado, Embaixador Carlucci junto ao tropeçante presidente Ford dos Estado Unidos da América. Curio- samente, Portugal não figura no livro de memórias do Dr. Kissinger. O susto tinha sido grande e por isso terá achado melhor esquecê-lo. Ou então não só os portugueses têm memórias curtas.

Já mencionei, noutro contexto, as circunstâncias da tradução do li- vro feita por Mary Fitton (mais versada em espanhol do que em portu- guês mas em contacto frequente com o autor e com Suzette Macedo, excelente tradutora da nossa poesia). Para desembaraçar tão embara- çada meada, a persistente senhora, uma inglesíssima lady à antiga, tele- fonava semanalmente com uma lista de dúvidas e perguntas. Às vezes a necessitarem de respostas embaraçosamente cómicas. Por exemplo: ela própria tinha um cão, o Lord Byron, e, por mais voltas que desse à imaginação, não conseguia entender o que aquele cão bassé estava a fazer a uma mulher debruçada à janela na página 150 da edição portu- guesa. “Oh”, comentou quando finalmente lhe foi explicado, “o nosso querido Lord Byron nunca faria tal coisa!” Mas sabe-se lá, com esse nome.

A edição inglesa foi lançada no Instituto de Artes Contemporâneas, o carismático ICA. Sala cheia, várias celebridades das letras locais, o autor vindo expressamente de Portugal, a tradutora justamente orgu- lhosa, e eu a fazer uma apresentação em que procurei acentuar que se tratava de uma obra de extraordinário mérito literário e não do romance policial descartável que a horrenda capa fazia parecer, com uma idió- tica imagem de rafeiros anoréticos a devorarem fragmentos que nem humanos pareciam. E nós que nos queixamos das nossas capas em Portugal! Não menos idioticamente, a Dent tinha publicado o livro nos Everyman Paperbackse não com as devidas honras de uma edição car- tonada, a hard cover que na Inglaterra distingue o trigo literário do joio comercial dos paperbacks. Resultado, o livro esgotou-se rapidamente mas foi largamente ignorado pela crítica.

Ironicamente, a Balada da Praia dos Cães teve assim na Inglaterra o destino oposto ao do Memorial do Convento do José Saramago –

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Baltasar and Blimundana tradução inglesa – que tinha sido publicado em Portugal no mesmo ano e que não teve o prémio da APE que foi para o José Cardoso Pires. A tradução do Memorial começou por se vender pouco, mas a reputação literária do seu autor foi aumentando na Inglaterra, as suas outras obras foram sendo traduzidas e publica- das e, mesmo antes do Nobel, tornou-se no único escritor português contemporâneo de facto reconhecido em língua inglesa.

O notório desinteresse dos ingleses por culturas de outras línguas é, no entanto, um problema lá deles. O nosso problema é mais grave, porque é um desinteresse por nós próprios. Tal como os ingleses, nós também viajamos pouco, mesmo quando julgamos que estamos a via- jar. Já o disse e volto a dizer aqui: somos um país com uma longa História e com memórias curtas. É perverso, é empobrecedor mas, actualmente, o José Cardoso Pires – o indubitável pioneiro da moderna ficção portuguesa – está a tornar-se num esquecimento de nós próprios. Relendo agora a Balada da Prais dos Cães, trinta anos depois da sua primeira edição, o impacto não é menor, mas é porventura de uma ordem diferente do que teve então. A empolgante narrativa, a brilhante análise social, a criação de inesquecíveis personagens, a mordente co- micidade que faz rir aleijando – tudo aquilo, em suma, que justificou o seu sucesso imediato – mantém-se ou terá mesmo sido retrospectiva- mente acentuado por contraste com o sentimentalismo piegas de muita da ficção portuguesa actualmente em voga. Mas, nesta releitura, o que sobretudo ressaltou para mim foi a extraordinária mestria que torna este livro numa obra prima literária que transcende o efémero e o circuns- tancial. E essa é a mestria de uma escrita que se serve, como os grandes clássicos de qualquer literatura, do que possa haver de mais específico para representar o que pode haver de mais intemporal.

Uma das grandes limitações da literatura é não ser capaz de dar em simultâneo significações diversas ou contraditórias. Só a música o consegue, como nas óperas de Mozart ou de Verdi. Ou, por vezes, os maiores poetas também o conseguem, como quando Camões escreveu o verso “errei todo o discurso de meus anos” para, com as mesmas pala-

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vras, significar erro e errância, discurso literário e decurso existencial. Cardoso Pires, um amigo de poetas que fez a sua aprendizagem literária com os surrealistas dos anos 40, criou na prosa da Balada da Praia dos Cãesuma equivalente simultaneidade de perspectivas diferenciadas em diversos tempos simultâneos, sejam eles o tempo dos acontecimentos que estão a ser policialmente investigados, o das personagens que vi- veram esses acontecimento, o do relatório factual onde esses aconteci- mentos foram registados, ou o tempo psicológico do polícia que faz a investigação. E, não menos, o tempo criativo do próprio autor da obra literária em que tudo isso se integra e em que tudo isso é comentado e transformado numa significação totalizante.

Trinta anos depois da primeira publicação da Balada da Praia dos Cãeschegou a altura de ler de novo pela primeira vez esta obra simul- taneamente inovadora e perene da nossa literatura.

Londres, Agosto de 2012

Balada da Praia dos Cães – 30 anos