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É muitas vezes no mal que a solidão se partilha. E, na partilha po- sitiva, tantas vezes também em mal vem a dar. É o que parece dizer Covas, o inspector da Judiciária – e só quem o conhece bem o trata assim, homem que às vezes parece afundar-se em zonas ínvias do pen- samento, mas podem ser só os degraus do raciocínio pesquisador. E di-lo no termo do inquérito ao crime do Guincho, estranho sucesso de Abril de 1960, que encheu jornais e fomentou imaginações. E medos, que tantos eram na altura. Um cadáver que aparece na areia aboca- nhado por cães. E a vítima gostara de cães! Mas Covas, ou seja Elias Santana, na “Nota Final” que a si alude, cabe na “solidão vertical” que pode ser a sua, pelo que a seu respeito se diz: modo de viver, pensar, reagir. Mas que é antes um isolamento aprazível, liberto, independente, e por isso observador criativo e conjecturante de vidas e problemas. Daí que lhe calhe a profissão detectivesca sem grandes riscos, antes apreen- siva quanto ao que da vida fazem os que lhe são cometidos, e ele cerca: de perguntas, rodeios. Forte da companhia de seu lagarto Lizardo, e do Tejo que tem na janela, ali mesmo junto à Sé, poiso de amar Lisboa.

Isolamento aprazível porque sem dono (donos, só os do mundo, do país!), o do sozinho Santana, que gosta do jardim do campo de seu nome, outro lugar lisboeta onde poisa em suposições inferenciais. Cu- riosa personagem que vive os crimes que investiga mas deles se dis- tancia, em pessoal juízo e aplicado (deliciado?) exercitar do poder de

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análise. Arguto profissional. Ocasionalmente acompanhado. Com o agente Roque, em Elvas, no rasto do grupo que incluía os criminosos e o “excrito” (termo que contrapõe aos “escritos” documentais que lê e elabora, e que Cardoso Pires integra na estrutura do romance), não disfarça o prazer que lhe dá o caminho no comboio, “campos fora” (a intertextualidade domina-lhe as convocações de sentido, juntamente com estribilhos de operetas, sendo cantor lírico de formação), e, situa- do, por empatia com o triste sucesso, “no fundo do abismo” (cito do capítulo I), abre-se a encantos do ambiente rústico, em sensual capta- ção da vida viva: “é primavera de cheiros, faz sol”.

Partilha-se então a solidão, ao imaginá-la aqui, mas em partes de- siguais: da observação do cadáver que os cães estraçalharam chega-se à constituição de um grupo, de hipotéticos intentos político-revolucio- nários: três homens e uma mulher. Eles, militares agrestes, agressivos, capciosos; que a esperança, reduzida à espera, e infrutífera, desespera. Ela, fumando, em belo corpo de apelativa maturidade, alternando com a sombra intrigante de uma cabeleira platinada (disfarce? a outra?), imagem feminil erótica muito anos sessenta: ora de bikini na relva, em fundo de pavões, ora de saia rodada, rabo de cavalo e sapato de chinela. Ou seja: primeiro, em fotos (quase tantas quantos os documentos e re- latórios existentes); depois, quando a detêm. E Mena (contra-agressivo nome a dulcificar o do amante assassinado, Dantas Castro, o nervoso – ou empedernido? – “anjo castrense”), resiste, recolhe à enxovia, e vê os sonos interrompidos por chefe Elias Santana que, junto a ela sentado, ao fim ou a meio das noites, catedraticamente lhe irrompe no despertar, avaliando saberes e responsabilidades no alvorecer da vigília forçada. Tortura? Companhia? Desejo? Perseguição? E a pergunta a fazer, pelo leitor e não só pelo chefe, é uma destas: quem acompanha quem, nas solidões e medos encontrados na via dolorosa? Quem se interroga, quando se inquire um prisioneiro? Quem é, afinal, destruído, se acon- tece morrer entre amigos e parceiros? Abocanhado por cães amados, ou por amigos canibais? Qual a solidão mais dura, a do isolamento ou a da companhia? Elias Santana não é tanto um psicólogo, é mais

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um explorador. E um bom leitor. Dos que páram a meio do livro para pensar. Ele, que adorou achar livros no local do crime, e romances de geração.

Leitora, eu também, não esperava a sensação de novidade, de aten- ção na leitura concentrada, presa da variabilidade do texto tão desdo- brada e forte, nesta releitura que faço de Balada da Praia dos Cães. É a minha 4.a, catorze anos após a 3.a (1998), destinada a estudo pe-

dagógico e a selecção de excertos para leccionar na Universidade de Chicago. Fi-la, então, na tradução inglesa, e comparando com o origi- nal, e só agora calha revelar o choque que foi deparar com tantos cortes do texto, em passos basilares e sem qualquer sinalização, ou justifica- ção, que identificasse a cirurgia então praticada no romance. Havia (há! se não houve edição posterior, e mesmo assim. . . ) supressões até no in- terior de períodos, sendo a obra desfigurada na sua escrita constitutiva. Arrepiante, já que o livro nem é longo, e que qualquer atitude edito- rial de tal tipo requere, de tradutores ou entidades que publiquem, uma palavra de respeito justificativo quanto a alterações efectuadas. Fica registado o meu protesto, veemente.

Mas, reatando as impressões da releitura actual, vinco, então, a ca- pacidade de resistência deste texto literário nos seus trinta anos de vida, sobretudo tendo em conta que romanceia uma ocorrência verídica que entretanto se apequenou, recolhida à História. Pois se tratava do seu contrário: um romance de actualidade. E vinco, em especial, a força expressiva do estilo adoptado (coloquial, monologante, judicativo, sal- titando nos registos da língua: jurídico, analítico, psicologizante, indi- vidualista, irónico, desimplicado, desafiador), além das inovações pros- seguidas na construção do texto (inclusão de escritos não poéticos – recortes de imprensa, relatórios da polícia, depoimentos, testemunhos, etc., quer autênticos, quer os que se adivinham forjados pelo autor), sendo certo que, se perderam entretanto o alcance da novidade proces- sual na composição em literatura, perduram como sinais de adequação de uma forma nova ao tipo de romance, muito singular também então, que se concebia.

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É essa estrutura que, então como hoje, faz do romance uma forma ficcional diferente, que vários escritores depois adoptaram. E, se ser diferente não significa ser novo (o autor actualizava aí processos que, quarenta anos antes, John dos Passos usara), tal diferença composi- cional conjuga-se com figurações temáticas (o grupo de homens e a mulher, fechados na casa, esperando sinais, em alucinante huis-clos) no delineio de uma forma ficcional de sensibilidade que é nova, por atenta, a par disso, a indiciações e sentimentos, a modos de luta e si- nais de desespero, que se afastam já do universo sartriano, alcançando o modo peculiar de Cardoso Pires na efectivação da descida aos infernos: da colectividade, do grupo, do núcleo resistente que porém soçobra, e da consciência atenta que a acompanha, compreensiva mas desafecta, mantida à tona só na observação que é a da escrita. Com a força da actuação directa. Pois a interferência dos dados escritos exteriores à li- teratura, nela incluídos, se integra na edificação narrativa, em conjunto coeso que conforma a mensagem de teor político ao sentir colectivo que progressivamente se elabora, e, mais admirável ainda, a partir do sentir singular, na existência anónima do cidadão que é comum antes de vir a ser notícia. A Balada é um dos nossos primeiros romances a encenar a poética da mediatização.

Mas um romance que não esquece a lição clássica. Que fala na “doce França”, tanto como ecoa a canção popular “Auprès de ma blonde” (meros exemplos, de tantos possíveis), propondo níveis di- versos na compreensão do texto, que vão do épico (“La Chanson de Roland”) ao popular acarinhado pela média burguesia culta. E sem predomínio francês: o livro talvez mais presente é um de Jack London. Clássico ainda na estrutura interna, com o esquema básico ocidental: personagens, intriga, tempos, espaços. E um narrador, sim!, desarticu- lado: pois se o inspector da “Judite”, Elias, domina, de perfil coeso, são também parceiros de observação e reconto os seus superiores e coad- juvantes; os suspeitos do homicídio cometido; os comparsas, persona- gens secundárias ou centrais de aparência breve. Todos se medindo por atitudes características, flagrantes de aspecto, modos de agir próprios.

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Romance de tipo realista, não fora a excepcionalidade de quase tudo, cortando a relação com o quotidiano para exibir uma intriga na qual antes avulta a caracterização abstracta e construída da novela policial. A qual trava com o romanesco do seu tempo (o pós-modernismo que então marca fundo a literatura europeia) a relação que lhe evidencia o carácter inovador.

Continua a ser um grande livro, a Balada da Praia dos Cães. Um dos poucos que, no nosso século XX, levou a extremo grau de apura- mento o romance de género. De vários géneros. Porque o policial, o político, o psicológico, o amoroso, o de mistério, todos eles praticam aqui transferências de imagens da vida de todos os dias para a textua- lização. A extrema exigência com a linguagem a que o autor de O Hóspede de Job nos habituara torna esse apuramento quase secundá- rio, em exame apressado desta obra. Mas a excelência não abunda, e, quando existe, é preciso sublinhá-la. Sublinharam a excelência de Car- doso Pires os três grandes mestres da estética literária da 2.a metade

do século XX: Jacinto do Prado Coelho, Óscar Lopes, David Mourão- -Ferreira. Esta é a ocasião para o fazer de novo, em relação a este texto de perfeição que é a Balada.

Recapitulando . . . A Balada, de