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Sempre que me interrogo acerca do lugar e da relevância de José Cardos Pires na ficção portuguesa do último meio século, há dois ou três textos relativamente recônditos que me apetece citar. Um desses textos é a nota que o escritor estampou no final d’O Hóspede de Job (1963), para clarificar o que quis fazer. E diz assim: “Seria, antes, (. . . ) uma ‘história de proveito e exemplo’ – um romance, no sentido tradicional do termo, destinado unicamente a ilustrar uma legenda, uma moral ou um clima humano, para lá de qualquer imediatismo de tempo e de lugar histórico”.

Quem isto escreve não está só nem isolado. Por esse tempo, em 1961, Alves Redol publicara Barranco de Cegos, aquele que, sendo certamente o seu grande romance, representa talvez o último suspiro exalado pelo neorrealismo português, movimento literário que, com propósito de coerência, mas também com contradições internas, domi- nara a literatura portuguesa por mais de duas décadas. Por essa época, um ano antes d’O Hóspede de Job, aparecera Rumor Branco, da auto- ria de quem foi então uma fulgurante revelação, Almeida Faria; neste caso, o neorrealismo já nem estava em causa, a não ser pela sua refuta- ção, nos planos formal, temático e doutrinário, como bem evidenciou a ardente polémica vivida entre Alexandre Pinheiro Torres e Vergílio Ferreira, “patrono” (mas não sem alguma má consciência) do breve e inovador romance (ou antirromance) de Faria.

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Como se situava Cardoso Pires neste cenário? E o que poderia nele fazer adivinhar uma evolução literária que haveria de desembocar no romance publicado há exatos trinta anos, ou seja Balada da Praia dos Cães? Aquela nota final d’O Hóspede de Job é bem significativa. Soli- dário, no plano ético, com os seus predecessores neorrealistas, Cardoso Pires manteve com eles uma cumplicidade explícita: quando, em 1965, evocou a publicação de Gaibéus ocorrida um quarto de século antes, foi claro: “Cabe agora perguntar se da revelação desse novo romance [o neorrealista, entenda-se] e dessa nova corrente não viriam a benefi- ciar até os escritores de outras tendências. E eu penso que sim. Que beneficiaram esses e mais ainda, como é natural, os jovens da minha geração”. E a isto acrescenta: “Os defeitos das primeiras experiên- cias foram a lição prática que recebemos todos nós. Os que viemos depois”2.

Aquilo que O Hóspede de Job fazia era precisamente recusar o “imediatismo de tempo e de lugar histórico”. Configurando um ro- mance de ação bem inserido na realidade social e económica de um Alentejo que fora espaço privilegiado pelos neorrealistas, O Hóspede de Job resolvia-se em registo de alegoria, de evocação simbólica e de alusão moral (mas não moralista) e até bíblica, conforme o título su- gere. Noutros termos: trata-se aqui de um certo Portugal rural e de portugueses que nele viviam humilhados e ofendidos, mas sem cedên- cias à retórica da complacência e do paternalismo ideológico que outros haviam cultivado.

Um outro testemunho, igualmente desses anos 60 de tantas e tão drásticas mudanças, encontra-se no álbum de fotografias Gente, de Eduardo Gageiro. Para esse volume escreveu Cardoso Pires um texto onde podemos ler: “Lá vai o português, lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica

2 “Uma incomodidade deliberada”, em Dispersos 1. Literatura. Lisboa: Dom Quixote, 2005, pp. 91-92.

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logo com oito séculos”3. Como quem diz: há uma grande personagem

deste álbum (e também, já agora, das ficções que o escritor escreveu) que é uma figura coletiva, inserida na História, uma História com a qual esse que trabalha de sol-a-sol se relaciona de forma enviesada e ambi- valente, porque ela é uma herança tão inevitável como pesada. Mas uma História que o romance não pode ignorar, conforme as ficções meta-historiográficas pós-modernistas bem mostraram, em Portugal e não só.

José Cardoso Pires não modelou ficcionalmente a História nos mes- mos termos que encontramos em José Saramago, em Mário Cláudio, em António Lobo Antunes, em Lídia Jorge ou em Mário de Carvalho, estes todos e outros mais escrevendo o que tinham que escrever sem re- ferência rígida a um mesmo e convencionado padrão romanesco. Para Cardoso Pires enquanto “espectador” das fotografias de Gageiro, a rea- idade histórica só faz sentido desde que apreendida nos termos que o seu texto anuncia: como efeito decorrente de “um olhar crítico através do cristal duma Rolleiflex”4. E assim, às vezes parece que alguma da ficção cardosiana está fora da História. Nada mais enganador.

Estamos agora muito perto do que veio a ser o grande romance de José Cardoso Pires e um dos grandes romances de toda a nossa litera- tura, O Delfim, publicado no ano a vários títulos mítico de 1968 – e só isso bastaria para surpreendermos, neste admirável relato, um pulsar histórico bem singular. Para além disso, é ainda pela referência mo- delar à imagem, ao cinema, à instância do olhar e à relativização do conhecimento das coisas e das pessoas que O Delfim se faz o extraordi- nário romance que realmente é; a par disso, o que esse relato como que in fierinos diz é que aquele conhecimento é feito de lenta indagação, de paciente investigação, de dúvida e de incerto avanço por entre depoi- mentos às vezes contraditórios. Como se o autor (ou o Autor, conforme ironicamente no romance se lê) tivesse perdido de vez o seu estatuto de demiurgo e de ideólogo. E assim é, efetivamente.

3Em E Agora, José?, 2.aed., Lisboa: Dom Quixote, 1999, p. 21. 4Loc. cit.,p. 25.

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Sem este momento decisivo da história literária de Cardoso Pires (e, já agora, da história da literatura portuguesa) não existiria Balada da Praia dos Cães que, aliás, é o romance que se segue a O Delfim. Para que conste: outros títulos existem entre O Delfim e Balada da Praia dos Cães(crónicas, contos, teatro, também a fábula Dinossauro Exce- lentíssimo, de 1972). Mas enquanto romancista, o Cardoso Pires de Balada da Praia dos Cães provém, em linha quase reta, do grande ro- mance de 1968 protagonizado pelo marialva decadente Tomás Manuel da Palma Bravo.

A propósito de Balada da Praia dos Cães cabe recordar, antes de mais, o seguinte: trata-se de um dos casos mais expressivos de êxito editorial de toda a literatura portuguesa contemporânea. Para isso con- correu, é claro, o facto de Balada da Praia dos Cães ter sido a primeira obra galardoada com o então recém-criado Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores; durante anos e até cair na relativa penumbra em que hoje se encontra, aquele que chegou a ser o mais destacado prémio literário português marcou a agenda cul- tural e suscitou controvérsias e debates, encómios e críticas, ao sabor dos gostos, da relatividade dos juízos críticos e até das cumplicidades pessoais. No caso de Balada da Praia dos Cães, não era caso para me- nos: sem esquecer a qualidade do relato e o prestígio do autor, convém lembrar que, naquele primeiro ano do prémio, ele competiu nem mais nem mesmo do que com Memorial do Convento (José Saramago, de resto, seria uma espécie de romancista mal amado pelo Grande Prémio de Romance e Novela, que só na décima edição lhe seria atribuído, com O Evangelho Segundo Jesus Cristo).

Mas a projeção pública do romance em apreço – que hoje conta com mais de vinte edições, traduções, estudos académicos e uma adap- tação cinematográfica por Fonseca e Costa – assenta também nas suas qualidades intrínsecas, nos sentidos temáticos que cultiva e nos efeitos narrativos que delineia. Sendo a história de Balada da Praia dos Cães conhecida – história de crime e de clandestinidade, de investigação e de conflito passional –, vale a pena recordar brevemente que nela se

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recupera um episódio verídico, ocorrido em 1960: o assassínio de um militar oposto ao regime e envolvido numa conspiração para o derrubar. A partir daí e em função do desenvolvimento de dois níveis narrativos, questiona-se a própria natureza da ficção, na sua relação com a Histó- ria, até porque os acontecimentos que suportam o relato estão situados naquele limbo indeciso entre a notícia, que já não é, e o evento histó- rico, que ainda não se consolidou como tal.

Entre o facto e a ficção (a facção, termo bizarro que “importo” do inglês faction, para designar algo híbrido entre o fact e a fiction), desenrola-se uma investigação tendo em vista uma verdade sempre fu- gidia e escorregadia, verdade porventura nunca atingida na sua pleni- tude. Provavelmente assim tinha que ser, para mais num cenário (esse mesmo do princípio dos anos 60 em Portugal) propício às meias pala- vras, aos gestos escondidos, à censura das ideias e à vigilância de todos sobre todos. Trazendo consigo alguma coisa do fascínio de Cardoso Pires pelo romance policial (coisa que bem se observa desde logo em O Delfim), Balada da Praia dos Cãesconstitui um contributo notável, no panorama da nossa ficção dita pós-modernista, para reavaliar e re- dimensionar os géneros narrativos, o estatuto da ficção, a condição da personagem ficcional (Elias Santana é uma das grandes personagens da literatura portuguesa) e os processos de construir o relato. Tudo isso e também as fronteiras, afinal bem porosas, entre a literatura e a vida.

A Balada da Praia dos Cães