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Mais do que em O Delfim (1968), Balada da Praia dos Cães (1982), primeiro romance de José Cardoso Pires publicado após o 25 de Abril de 1974, permite-nos detectar o triplo realismo de que se compõem os romances deste autor1.

Em primeiro lugar, um realismo de base como orientação estilística e semântica do texto, vinculada a acontecimentos históricos. Este tipo de realismo praticado por José Cardoso Pires corresponde ao lugar his- tórico de que a intriga diegética se tece, permitindo a inserção espacial e temporal do texto narrativo no grande texto social da História, um realismo fundado classicamente na verosimilhança e na fidelidade ao real, projectando continuamente pontes de contacto com o movimento da sociedade, pelas quais o leitor se sente literariamente abrigado, re- conhecendo o envolvimento social da história narrada.

Neste sentido, José Cardoso Pires, em Balada da Praia dos Cães, história de um assassinato na década de 1960 e da sua posterior inves- tigação policial, prossegue a inspiração realista queirosiana da criação do texto literário: este deve estender as suas diversas raízes à realidade exterior ao autor. Porém, o que em Eça se evidenciava como moda lite- rária europeia da segunda metade do século XIX (Stendhal, Balzac, Zola, Flaubert), uma forma de actualização da literatura portuguesa

1 Porque obrigatório, inspirámo-nos na leitura da tese de doutoramento de Pe- tar Petrov, O Realismo na Ficção de José Cardoso Pires e Rubem Fonseca, Lisboa, Faculdade de Letras, 1996 (texto policopiado).

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face à literatura francesa, conseguida em perfeição na sua obra, em Cardoso Pires, diferentemente, porventura influenciado pela sua inicia- ção neo-realista, manifesta-se, não como opção cultural ou literária ge- ral, mas como deliberada opção estilística de escrita, condicionadora do universo semântico e lexical, pelo qual, enumerando os objectos da realidade, multiplicando-os descritivamente, prestando densidade às personagens através do ilhéu de objectos que o circundam e definem enquanto rasto de biografia, José Cardoso Pires encontra o seu estilo singular no panorama da literatura portuguesa contemporânea. Não no sentido do romance-documento, teorizado por Zola e, de certo modo, seguido pela doutrina neo-realista portuguesa, mas no sentido de deixar o texto ser invadido pela realidade, ter esta como suporte contínuo da- quele, decidir – é uma decisão voluntária – não olhar para dentro, para o interior, mas olhar para fora, sempre, buscando no horizonte exterior o sustentáculo de cada linha escrita. Neste sentido, em Balada da Praia dos Cães, o fio condutor da narrativa tira uma linha de prumo à reali- dade, isto é, respeita (ainda que de um modo descontínuo – o terceiro tipo de realismo de Balada da Praia dos Cães) a dupla categorização do espaço e do tempo e a inserção dos factos na representação geral da sociedade. Dito de um modo não teorético, José Cardoso Pires, como autor, tem o realismo no sangue, é-lhe instintual, presente em todos os seus romances como moldura enquadradora e fundamentadora da história narrada.

Em segundo lugar, o realismo de José Cardoso Pires é, igualmente, um realismo do pormenor, da minúcia bem descrita e bem narrada, da fisionomia circunstanciada das personagens, nomeadamente de Elias Cabral Santana, desenhada ao detalhe, a ascendência, a carreira profis- sional registada com o zelo de um relatório, os hábitos: neste sentido, leia-se a página 152, observe-se a decisão autoral da transformação das formas de narração ficcional numa lista ou inventário de objectos, in- tercalados com o sinal de ponto e vírgula. Esta, a enumeração, é uma das formas mais relevantes que este segundo realismo assume na ficção

2José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães, Lisboa, O Jornal, 1982, p. 15. www.clepul.eu

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de José Cardoso Pires, como se pela inventariação dos objectos o texto manifestasse uma superior fidelidade ao real, apostando numa espécie de labirinto da realidade condicionador e bloqueador das possibilidades evolutivas das personagens e da história narrada. Não se trata, porém, em José Cardoso Pires, de um realismo objectual, de reduzir a visão estética à simples inventariação de objectos, como o tinham feito, nas décadas de 1950 e 60, os próceres do “Nouveau Roman”, que Cardoso Pires não desconhecia. Trata-se, sim, de prestar ordem aos objectos, isto é, à realidade, através da ancoragem dos objectos numa persona- gem ou numa específica situação social. Daqui o subtítulo de Balada da Praia dos Cães: “Dissertação sobre um Crime”. Dissertar significa prestar ordem lógica, frásica, argumentativa aos factos, isto é, a colec- ções de objectos. Dito de outro modo, significa prestar sentido humano, neste caso estético, aos factos e objectos inventariados ou enumerados pelo narrador. Não se trata, portanto, de um realismo lírico ou de um realismo fantástico. A inventariação de objectos e a descrição ou nar- ração de factos só se tornam importantes para o todo do romance desde que revelem o sentido narrativo das suas personagens ou dos seus epi- sódios mais marcantes. Assim a biografia das diversas personagens de Balada da Praia dos Cães, sempre reportada a factos e sempre ani- mada de um complexo de objectos, que retratam semanticamente cada personagem. Factos sem argumentos (razões intradiegéticas de prévia selecção dos objectos) não existem em José Cardoso Pires: “factos” significa “realidade”; “argumentos” significa “movimento narrativo da realidade”. Deste modo, José Cardoso Pires, em conjunto com Ferreira de Castro e descontando os escritores neo-realistas, de ideário estético conforme o seu emblema político, deve ser porventura o escritor portu- guês mais realista do século XX.

Finalmente, em terceiro lugar, José Cardoso Pires pratica outro tipo de realismo: o realismo estrutural. O zelo no estabelecimento de uma forma ou estrutura condicionadora da posição e do papel de cada capí- tulo, de cada acontecimento e de cada personagem no todo da narrativa torna-se permanente em todos os seus romances. Para além da ins-

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piração realista do texto (1.o tipo de realismo) e da inventariação ou

enumeração como sentido determinante do texto (2.otipo de realismo), existe igualmente o realismo da estrutura total do texto. É o realismo do Todo ou da Forma, reitor das Partes ou do Conteúdo. É este o rea- lismo explorado abundantemente por Petar Petrov, na tese referida em nota de rodapé, como sendo de “feição exclusivamente subjectiva e ex- perimental” (p. 82) e é justamente por via deste realismo “formal” que José Cardoso Pires supera o seu lastro estético neo-realista em O Del- fim, repetindo-o em Balada da Praia dos Cães e em Alexandra Alpha (1987). É justamente este elemento de subjectividade, aplicado mais à estrutura do que aos elementos desta (acção, intriga, personagens, cate- gorias de espaço e tempo. . . ), bem como os temas escolhidos, que dife- renciam fortemente o estilo deste autor dos seus antigos companheiros neo-realistas, introduzindo características experimentais na ordenação das partes segundo o todo da narrativa.

Se cruzarmos o segundo e o terceiro tipos de realismo teremos tanto o exacto retrato estético do lugar singular dos romances de José Car- doso Pires no panorama da literatura portuguesa contemporânea quanto o exacto modo como este autor superou o legado neo-realista donde proviera.

Azenhas do Mar, Sintra, 1 de Julho de 2012

A Balada e o seu compositor