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Mena, a das “coxas soberanas”, que ele “não se cansava de admi- rar”2. Mena não precisa de recorrer ao bazar ortopédico, da Rua da

Madalena, que tanto atrai Elias. Elias ou o Autor? É este quem o faz passar do Largo do Caldas para este “outro lado”, que vale a pena olhar. Essa feira tão especial, “aí nunca falta que ver nem que meditar” (sublinho). Assim, por exemplo, na voz do narrador:

Calçada a pino, cada loja com o seu carrinho de inválido exposto à porta como se estivesse à espera da ordem de partida para um rally-surpresa. Vista do cimo da rua, aquelas cadeiras resplande- centes parecem prontas a rolar a qualquer momento pelo plano inclinado abaixo, ganharem velocidade, altura, e desaparecerem 1Universidade Nova de Lisboa [Nota dos organizadores].

2 Citarei sempre de: José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães. Mem Mar- tins, Círculo de Leitores, 2003 [Nota do Editor: esta edição tomou por base o texto da 16.aedição, Publicações Dom Quixote, 1995, o último revisto pelo Autor], p. 33.

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como máquinas loucas sobrevoando os telhados da cidade. Ao pôr do Sol recolhem domesticadamente, [. . . ]. Exibem [as mon- tras] membros articulados, espartilhos dramáticos que lembram palácios de tortura, pescoços de metal, Próteses & Fundas Me- dicinais3.

E ao acompanhar-lhe o olhar, ainda antes de chegar ao carro da mão decepada, por via de um advérbio – domesticadamente – invade- -me o “Sentimento dum Ocidental”: raramente, amareladamente4. É

também Noite Fechada em Lisboa e estamos, afinal, ao pé “da velha Sé”, calçada a pino ou “íngreme subida” e, em vez dos “sinos dum tanger monástico e devoto”, temos, agora, “os sacrários dos ex-votos no caminho de quem passa”.

Regresso a Mena, a das “coxas soberanas”. E, então, por efeito do bazar ortopédico, vejo não só as “ancas opulentas” das varinas de Ce- sário, mas também, sobrepondo-se-lhe, a perna amputada de Tristana numa cadeira de rodas. Tristana, Catherine Deneuve. E já não Galdós mas Buñuel, Luis Buñuel.

E agora, José? E, agora, senhor Autor5? Foi o Senhor quem me levou por estes caminhos porque ontem mesmo o li (reli) a dirigir-se a

3Ibid., p. 74.

4 (Re)ler todo o poema. Em Obra Completa de Cesário Verde, 4.aedição, orga- nizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa, Livros Horizonte, 1983, dispo- nível para consulta em http://cvc.instituto-Camoes.pt/ poemasemana/ 1/01.html. Só para recordar: “Semelham-se a gaiolas, com viveiros, / As edificações somente ema- deiradas: / Como morcegos, ao cair das badaladas, / Saltam de viga em viga os mes- tres carpinteiros. / [. . . ] Num trem de praça arengam dois dentistas; / Um trôpego ar- lequim braceja numas andas; / Os querubins do lar flutuam nas varandas; / Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! [. . . ] / E num cardume negro, hercúleas, ga- lhofeiras, / Correndo com firmeza, assomam as varinas. / Vêm sacudindo as ancas opulentas! [. . . ] / À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, / Chora-me o coração que se enche e que se abisma. / [. . . ] / E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente, os cães parecem lobos.”

5 Sobre a designação a dar à voz que escreve, uma das questões mais intrigantes deste romance magistral, não cabe aqui apresentar as reflexões que me levam a optar por chamar-lhe O Autor e não O Narrador. É o mesmo que, na capa do livro, se

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Goya e a fazer esta confissão que a muitos pode surpreender:

Mas hipótese de sonho, o sono está tão vizinho do pesadelo que engendra monstros – e dito isto estamos a ouvir, lá de longe, Don Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828).

Verdade, magnífico visionário. Muitos dos vossos Caprichos e Disparates, muitas das vossas Aparições, Don Francisco, encon- tram-se hoje aqui, neste retábulo peninsular. Encontram-se tam- bém em Buñuel, vosso dilecto discípulo – eu sei; mas é do pe- sadelo português que estou falando, e esse é exacto, não tem metáfora: transporta o grotesco dentro dele sem precisar de ima- ginação que o visite6.

Continuo, por isso, a ver a perna amputada de Tristana no bazar ortopédicoda lisboeta Rua da Madalena. Buñuel, ele, não põe a cadeira de rodas de Tristana a voar, Goya sim poderia ter posto. Estes voos do Autor virão de outros caprichos. . . Agora, o que me assalta é a perna do manequim do Ensayo de un Crimen de Buñuel a entrar no forno. (E não será esta Balada, também ela, um Ensaio – de um crime?).

De mão a mão

Ali, na feira dos ortopédicos, o meu Autor faz-me ver, e insiste, uma mão:

[. . . ] a tal mão pousada no volante, de borracha plástica, morena e quase terrosa e com um pulso peludo que termina num punho de camisa sem manga. Tem tudo, a mão, rugas, unhas, pêlos implantados nos poros; no dedo próprio vê-se uma aliança de casamento7.

identifica como José Cardoso Pires, que na ficha técnica é indicado como tal e que, por exemplo, é assinalado no corpo do livro como tradutor do texto da folha da revista Erotika: “O texto (tradução de J.C.P.)”, p. 114.

6 Em “Lá vai o português” [1972], E agora, José?. Mem Martins: Círculo de Leitores, 2003, p. 16.

7Balada. . ., p. 75.

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Não é a mão cortada do Perro Andaluz, não é. Mas esses “pê- los implantados nos poros” levam-me à mão com formigas de Buñuel. Surrealista, dizem. “Alucinações em torno de uma mão morta” é um argumento de Buñuel para uma sequência utilizada por Robert Florey no seu filme The Beast with Five Fingers (1946). . . Que ele depois uti- lizará como mão cortada e já não morta no seu El ángel exterminador (1956), para muitos e sábios espectadores buñuelianos, a melhor cena do filme. (Até num “blog” encontro a frase: “el motivo de la mano cortada constituye un motivo esencial” no cinema de Buñuel.)

Em “A reconstituição. 8 de Agosto de 1960” do crime investigado (?) na Balada, o nosso Autor:

O arquitecto pegou-lhe no pulso para orientar a pontaria, com a outra mão envolveu a dela [. . . ]. Mena nunca mais se esqueceria da frieza macia que respirava essa mão e do apagamento com que ela se lhe ajustou aos dedos. Por isso a olhou e não ao alvo no acto de disparar. Tinha tudo de homem, a mão; mas tão des- tituída de peso, tão vencida e quase irónica. Era como que uma luva feita da pele da mão que nos tivesse sido roubada8.