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Aprovado em sessão plenária do II Congresso de Escritores (1981), o Grande Prémio de Romance e Novela foi instituído pela APE no ano imediato, sob coordenação do director Carlos Eurico da Costa, que ti- nha consigo uma Comissão Executiva integrada por relevantes autores. Procurou-se, desde o início, distinguir um livro, não o conjunto da obra de qualquer dos candidatos, e, desse modo, criar instâncias consagratórias que contribuíssem para, de edição em edição, assinalar junto da comunidade cultural realizações de elevado merecimento.

Para o efeito, garantidos apoios monetários, que aumentariam com o tempo sem nunca se tornarem bastantes, foram sendo decisivos os critérios de escolha e funcionamento dos júris, formados por persona- lidades reconhecidas pela competência, isenção, seriedade e ética no modo de apreciar os acervos postos à mercê dos seus veredictos.

Preocupações nucleares, que ao longo do trajecto até hoje se acen- tuaram, na designação dos cinco membros de cada elenco eram e são, para lá dos atributos pessoais, a independência relativamente aos gru- pos de pressão (editorial, estética, mediática), a diversidade de prove- niências (académicas, geracionais, geográficas) e um labor esmerado na busca do resultado final.

Não estranha, por isso, três décadas volvidas sobre a primeira ex- periência, que este Grande Prémio continue a afirmar-se como o mo- mento por excelência de celebração da Novela e do Romance, como outros Grandes Prémios projectam trabalhos em distintos géneros, as- sim estabelecendo uma dinâmica que muito importa enquanto difusão e alargamento de públicos.

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Sublinhe-se o seguinte: da hora augural à actualidade, coube sem- pre às instituições do Estado Democrático, através do Departamento que tutela a cultura, um apoio, não só financeiro, sem o qual nada te- ria sido assegurado, mesmo não esquecendo patrocinadores cuja acção persiste, da Imprensa Nacional / Casa da Moeda à Fundação Calouste Gulbenkian, do Instituto Camões à Câmara Municipal de Grândola, para referenciar os que se destacam e não desvaliando, no pretérito, a peculiar colaboração da Torralta.

A cerimónia pública de entrega do Grande Prémio contou sempre com o Presidente da República, entidade suprema na estruturação do poder, ainda que, como recentemente, mediante o mecanismo da repre- sentação oficial. António Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sam- paio e Aníbal Cavaco Silva, eleitos pelo povo, estiveram entre narrado- res, poetas, ensaístas, profissionais da comunicação social e convida- dos numerosos. E, di-lo o meu testemunho, rodeados com gosto pela idoneidade cívica, o apreço e o contentamento de todos, à margem de naturais discrepâncias ou do pluralismo das opções, jamais manietado ou empobrecedor.

Tudo começou em 1982.

Óscar Lopes, Álvaro Salema, Jacinto Prado Coelho, Maria Lúcia Lepecki e Maria da Glória Padrão atribuíram o Prémio, ao cabo de três reuniões de estudo e debate, a Balada da Praia dos Cães, de José Car- doso Pires. Para se ter ideia do ocorrido, bastará recordar que, entre os concorrentes, se incluíam Memorial do Convento (José Saramago), O Rio Triste(Fernando Namora), O Bosque Harmonioso (Augusto Abe- laira) e, para não cair num arrolamento exaustivo, Cais das Merendas (Lídia Jorge), destinatários de uma recepção calorosa.

O primeiro confirmava, após curto percurso bibliográfico, um fic- cionista fulgurante, visível em Manual de Pintura e Caligrafia e Le- vantado do Chão, que empolgava e viria a ser Prémio Nobel, o único português, em 1998.

O segundo retrazia o contista e romancista de Retalhos da Vida de Um Médico, O Trigo e O Joio, Domingo à Tarde, ao alto mérito que

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lhe garantia posição sem paralelo no reconhecimento dos leitores e na projecção internacional.

O terceiro, numa fase de plenitude de Abelaira, que, sem aban- dono das suas coordenadas elementares, apurara, ao limite (na esteira de O Triunfo da Morte, apresentado por Fernando Namora), as poten- cialidades do seu pendor efabulatório em que história, divertimento, transgressão e questionamento filosófico se cruzavam.

O quarto, na sequência de O Dia dos Prodígios, consolidava uma voz que, pela frescura, pujança, novidade, engenho e impulsão conta- giante das suas apostas, atraía o aplauso da crítica que contava.

Independentemente das inclinações de raiz, os jurados confluíram para o voto unânime na “obra excelente” de José Cardoso Pires, que detinha “uma capacidade de combinar imagens, contrapor registos de falas, transformando-se numa alegoria (no melhor sentido) de toda uma época”, conforme afirmou Óscar Lopes na altura em que se noticiou a deliberação.

José Cardoso Pires lançara, a partir de Os Caminheiros e Outros Contos(1949), títulos que haviam impressionado por um temperamen- to incisivo, de feição urbana e contenção formal, que, sem perda da autonomia compositiva e da rede de recursos que o personalizavam vigorosamente, se cumpria no espaço aberto por Ernest Hemingway, Horace McCoy, Elio Vittorini, Roger Vaillant. Jogos de Azar (1963) e Burro-em-Pé (1979), contos, O Anjo Ancorado (1958), O Hóspede de Job(1963) e O Delfim (1968), a sua obra-prima nos termos de certo consenso, romances, Cartilha do Marialva (1960), ensaio, O Render dos Heróis, teatro, Dinossauro Excelentíssimo (1972), sátira, revestida de escândalo pela reacção de alguns beleguins da ditadura, afirmavam-no como um dos nomes de referência da nossa literatura à entrada de 80.

A Balada, construída tendo como base um caso real no contexto da oposição ao fascismo, agregando trama policiesca e uma arquitec- tura tributária das estratégias cinemáticas, de uma relojoaria preciosa no labor redactivo, impregnada de oralismo e dos calões lisboetas, in-

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teressou sobremaneira a um júri que, na sua heterogeneidade, se movia sem embaraços ou zonas de inapetência no quadro da docência e da judicação crítica.

Se “os padrões de valorização literária são intrinsecamente discutí- veis” e abrem para o espaço do desacordo, como aconteceu e é, afinal, salutar, Óscar Lopes, que averbou o proviso, teve o ensejo, na alocução que proferiu no acto do dia 8 de Abril de 1983, de proceder a uma aná- lise aguda do romance premiado, das suas evidências criativas e impli- cações. Como aquelas que Maria da Glória Padrão assinalou: “A ironia do decifrador J. C. Pires, o equilíbrio e a sobriedade da desmontagem e da reconstituição de um crime que de facto passa a símbolo, a acumula- ção de quadros ao mesmo tempo individuais e colectivos participantes do ludíbrio, do pequeno mito, da denúncia e do drama, o lugar discreto do narrador histórico e ficcionista, a variedade dos gestos e dos registos de linguagem em absoluta conivência com os respectivos produtores e ainda o que não fica dito – e que é tudo – criam a atmosfera da triste balada de que talvez ainda tenham sobrado cães”.

José Cardoso Pires, com o humor e a irreverência que lhe eram próprios, sustentou, no instante de receber o Prémio (estou a ouvi-lo, papéis na mão, um leve sorriso) que “um tipo que se põe a escrever um livro nunca sabe no que se mete”. Referia a boa fortuna da sua Balada, mas igualmente, com clarividência, a índole e as vicissitudes da criatividade, da qual participamos: “o livro quando é rico por dentro se escreve a cada leitura”. Um livro é tantos livros quantos os leitores que tiver e o fizerem. Por isso sou um outro quando volto a relê-lo e me apercebo de que, não tendo envelhecido porventura em nenhum dos seus traços eidéticos, amplamente justifica a conclamação a que se dá corpo nesta memória que saúdo e partilho.

Lisboa, 30 de Setembro de 2012

A grande montagem