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Poucos romances terão sido tão aguardados quanto Balada da Praia dos Cães. Implicitamente, cabia-lhe a tarefa enorme de mostrar todas as potencialidades de uma literatura sem a tutela da censura. De um autor que nos tinha dito, em O Anjo Ancorado, que “Quando um país não dá para agir, contentamo-nos em pensar”, esperava-se agora uma literatura que fosse ação sem deixar de ser literatura. Obviamente, não podia senão falhar. Mas a deceção foi afinal um alívio, aliás direta- mente proporcional ao enorme triunfo que o romance constituiu em termos de público, crítica e prémios. O que Balada da Praia dos Cães provou imediatamente é que os reagenciamentos de estilo num autor com território textual consolidado se devem mais aos problemas espe- cíficos levantados por cada obra em particular do que à existência ou não de censura. José Cardoso Pires era inteiramente reconhecível no seu novo romance, e quase se poderia sublinhar a azul o que a censura cortaria se ainda existisse. Não havia pois um outro José Cardoso Pires cuja existência a censura tivesse impedido, havia apenas o José Car- doso Pires de sempre, agora integral e imediatamente legível, sem nos exigir esse esforço suplementar de trazer ao texto o que lá teria estado desde o início. Nada disto diminui ou diminuiu a gravidade da cen- sura em geral e da censura literária em particular, apenas nos aliviou de termos de reconstruir uma literatura totalmente outra para histori- camente fazermos justiça à produção literária havida durante o Estado Novo. Nesse sentido, Balada da Praia dos Cães foi o episódio final

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dessa breve e algo perversa novela acerca da literatura que estaria na gaveta por motivos censórios, ou da literatura que teria sido outra se outra tivesse sido a liberdade do escritor. Salvo as exceções que sem- pre existem nestes casos, as gavetas portuguesas estavam vazias e os escritores continuavam o seu percurso sem ruturas que se pudessem di- zer análogas ao que socialmente acontecera com o 25 de Abril, como quatro anos antes tinham já mostrado Augusto Abelaira, com Sem tecto entre ruínas, e Carlos de Oliveira, com Finisterra.

Encerrado esse episódio, ainda hoje tenho bem vivo o incómodo que senti com Balada da Praia dos Cães. Um voyeurismo forçado, um obrigar-nos ao ponto de vista de um inspetor que fazia a parte do que toda a leitura deve ser – inteligente, minuciosa, reconstruindo na imaginação, inventando coerências que se antecipam à própria reali- dade, guardando o que sobra depois das explicações possíveis –, mas que era também, não apesar dessas qualidades mas dir-se-ia que, per- versamente, com essas mesmas qualidades, de uma miséria pulsional que não se media tanto pela cedência aos estereótipos de época mas no deixar vir ao de cima de uma sexualidade que se construía sempre a uma distância securitária do seu objeto de desejo, isto é, de uma sexua- lidade que fruía com a sua própria impotência e com o seu narcisismo triste e não-ostensivo, como era próprio da libido do Estado Novo.

Creio bem que Balada da Praia dos Cães não teria triunfado sem esse incómodo, afinal o preço a pagar por entrar na forma mentis de um regime. Mais a mais um incómodo que tinha a vantagem suplementar de se incomodar com algo a que bem poderíamos chamar “realidade”: os factos existiram, as personagens existiram, o caderno referido no romance existiu. Essa existência não “prende”, antes pelo contrário, exige interpretação. Ou dizendo de outra maneira: quando os factos já não são censurados, pode-se imaginar livremente a partir deles a com- preensão da realidade. Em larga medida, aliás, a realidade não é outra coisa que a compreensão dela, e nesse sentido a força de Balada da Praia dos Cãesmede-se também por esses outros livros que suscitou, por essa necessidade que outros sentiram de voltar a ou de re-interpretar

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esses mesmos acontecimentos: O Drama da Praia do Guincho. Teste- munho do Cabo Gil, de António Gil, que sendo o relato de um inter- veniente, parece afinal ter “aprendido” no romance aquilo que deveras viveu; e Um Requiem Português, de Mafalda Ivo Cruz, o romance de estreia de uma das nossas grandes autoras.

Durante alguns anos convivi largamente com Balada da Praia dos Cãesem seminários de licenciatura e de mestrado. Os focos de atenção eram vários: a questão genológica (o sub-título “dissertação sobre um crime”, a sombra de Capote, as aproximações ao pós-modernismo); a possível homologia entre romance policial e regime policial (um es- paço fechado e vigiado, o medo de todos face a todos); a sexualidade e a desocultação do político (o machismo e a impotência do Major como machismo e impotência do regime, a sexualidade de Mena como contra-enigma do feminino e ação política). De certa maneira, a di- mensão do trabalho analítico era suficientemente ampla para diferir a pergunta acerca do modo como Balada da Praia dos Cães “ajuizava” o tempo da sua diegese e o da sua receção. Não se tratava apenas de o romance resistir, como qualquer grande romance, a uma síntese esta- bilizadora do seu sentido. Tratava-se também de um “fim de partida” entre as promessas com que nos tínhamos imaginado como sociedade a chegar à liberdade e o desencanto com o que o futuro dessa mesma liberdade vinha ao nosso encontro a partir dos países civilizados. Le- vámos tempo a perceber que o país sitiado da Balada não era apenas o país do salazarismo mas já também o país da democracia e da Europa – e não deixa de ser tristemente irónico dizê-lo hoje, porque o “sitiado” desse tempo dizia respeito à dificuldade em aceitar-se uma realidade aquém das promessas da revolução, não ao cerco da crise com que agora é ameaçada a sobrevivência de uma parte substancial da Europa. Hoje, trinta anos depois, Balada da Praia dos Cães começa deci- sivamente a sua pós-história, aquele tempo em que numa obra procu- ramos não o seu contexto inicial específico mas a imagem do humano que ela transporta. Para esse recomeço proponho como guia esta frase de Arthur Koestler: “Se o poder corrompe, a inversa é também ver-

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dadeira; a perseguição corrompe as vítimas, embora talvez de modos mais subtis e mais trágicos.”

Balada da Praia dos Cães e a solidão